As redes sociais hoje em dia cumprem o papel que em tempos idos era reservado à conversa de vizinhos nas cadeiras postas na calçada. Falava-se basicamente da vida dos outros e de um ou outro acontecimento que houvesse chamado a atenção no povoado ou cidadezinha (afinal, qualquer cidade de há mais de setenta anos seria hoje uma cidade pequena). Nas décadas imediatamente passadas o assunto passou às novelas e noticiários da tevê, tornando comum o assunto em todas as vizinhanças. Hoje, finalmente, voltou-se de uma certa maneira aos assuntos “bestas”, que tenham chamado a atenção das pessoas sem necessariamente terem sido objeto imediato de noticiários televisivos, mas a conversa hoje opera-se via celular, nas redes sociais. Mesmo quem ainda põe a cadeira na calçada fica ali, vidrado, conversando mesmo com quem está ao lado pelas redes sociais.
E isso, a multiplicação e a “viralização” de notícias pelas redes sociais, além de ter acabado de eleger um presidente, fez com que as grandes redes de mídia perdessem enorme parcela de seu poder. Quem pauta a mídia hoje são as redes.
Uma pauta de há poucos dias, um caso que despertou o que há de pior e de melhor em muita gente, foi a bárbara morte de um cachorrinho vira-latas, exatamente igual a tantos outros lamentáveis casos que ocorrem a cada dia. O segurança de um mercado, aparentemente obedecendo ordens superiores, foi “livrar-se” do pobre totó que chateava clientes envenenando-o, e acabou concluindo o canicídio a pauladas. Normal. Acontece toda hora. Desde que este pobre cachorro morreu, com certeza mais de uma dúzia passou pela mesma coisa Brasilzão afora. Mas este caso viralizou.
E, tendo virado tema do momento nas famosas redes sociais, o que não faltou foi gente falando besteira. Desde os que rasgaram as vestes como se a morte do cachorrinho fosse comparável a, sei lá, os ônibus de criancinhas que a Arábia Saudita explode regularmente no Iêmen, com auxílio americano, aos reclamões de sempre, que se escandalizam com o escândalo alheio e cobram, por exemplo comparando a morte do cachorro com o hediondo assassinato igualmente a bordoadas de uma pobre senhorinha de 106 anos de idade por conta de umas poucas dezenas de reais, acusando quem se escandalizou com um de não ter-se escandalizado o suficiente com o outro. É uma acusação gratuita (afinal, quem mede o nível de escândalo dos demais?!), mas que tem uma base de realidade por vir do escândalo – este sim verdadeiro – de quem percebeu que se deu ao cachorro mais valor que o que ele realmente tem. Afinal, cachorros são animaizinhos maravilhosos, mas são meros animais irracionais. Bestas-feras, como se dizia antigamente. Não têm alma imortal, por serem desprovidos de razão. Não vão para o céu. Cachorro, exatamente como a galinha ou a lesma, é um mero figurante no filme da eternidade. Eles entram em cena quando são concebidos, como nós, mas sua participação é muda e se conclui com a sua morte.
O valor da vida de um animal não é absoluto, como o valor da vida de um ser humano, concebido à imagem e semelhança de Deus. A vida de um animal vale mais por ser vida que por ser a vida dele. Seria criminoso erradicar os cachorros (ou as ararinhas azuis…), mas não matar este ou aquele exemplar da espécie. Toda vida merece respeito, mas esse respeito é diferente no caso de um animal irracional e no caso de uma pessoa. Seria um monstro quem matasse uma galinha lenta e cruelmente, depenando-a viva. Mas é um profissional honesto que as degola às centenas por dia numa granja. É um monstro quem tortura qualquer ser vivo; aliás, a crueldade gratuita contra animais é um indício de psicopatia. Mas não há nada de errado em matar uma galinha ou um cachorro. Galinhas são mortas aos milhões para alimentar-nos, que é exatamente a razão pela qual elas existem, assim como amar-nos e nos fazer companhia, proteger, etc., é a razão de ser dos cães.
O mal está não em matar o animalzinho, mas em fazê-lo desnecessariamente sofrer. A vida do bicho não é, como a vida humana, uma preparação para a vida eterna. O animal tem valor por ser estimado, por prestar “serviços” (inclusive de amor e carinho; escrevo com o Esnupe, um meu cachorrinho muito amado, tentando me lamber a mão), e, no máximo, por ser uma criatura divina. O respeito que lhe é devido é genérico. Respeita-se todo bicho deixando-o viver, ajudando-o a se livrar de doenças quando for o caso, dando-lhe comida quando tem fome ou quando é de nossa responsabilidade, mas não se pode comparar bicho e gente. E, certamente, não se pode comparar a morte dum com a morte doutro.
O cachorro mais caro do mundo, o cachorro mais amado do mundo, o melhor cachorro (que é sempre, claro, o nosso) não vale uma vida humana. O pior ser humano tem uma alma imortal; o pior ser humano vive no mundo como preparação para uma vida eterna que pode ser de glória ou de punição. Há sempre a esperança de ele tomar jeito e se tornar uma boa pessoa, e mesmo de ir para o Céu. O cachorro não. Assim, qualquer ação em relação a um ser humano tem um peso infinitamente maior, por ser infinita a sua expectativa de vida: temos vida eterna. O homem tem começo, mas não tem fim. O cachorro tem começo e fim. Se formos forçados um dia a escolher entre um ser humano – qualquer que seja ele – e o cachorro que amamos, teríamos que ser ainda mais monstruosos que o sujeito que mata um cachorro a pauladas se escolhêssemos o cão e não o homem. É a escolha entre o finito e o infinito, entre um figurante no filme da eternidade e a única criatura feita à imagem e semelhança do Criador.
O escândalo com a morte do pobre totó no supermercado é correto? É, sim, claro. Afinal, foi uma crueldade desnecessária. Há momentos em que um animal pode e deve ser sacrificado, mas antes disso deve-se sempre procurar um lar que o acolha, a cura de sua doença, o que for; não conseguindo, que a morte do bichinho seja feita de maneira indolor. Eu mesmo tive a tristeza de sacrificar dois cachorros há pouco tempo, e antes na minha vida já tive outras vezes este desprazer. É horrível, mas não havia outra opção; esta há de ser sempre a última opção. Fi-lo sem que os bichinhos sentissem dor alguma, e mesmo assim aquilo me partiu o coração. Mas não há comparação entre sacrificar um cachorro ou matar um frango para a janta e assassinar um ser humano.
E vivemos num país que tem 65.000 assassinatos por ano. Muitas guerras são mais seguras que a vida cotidiana no Brasil. Neste contexto, chega a ser tristemente engraçado que se faça tanto escarcéu por um mal comparativamente tão minúsculo quanto a morte a pauladas de um cãozinho de rua. É errado o que foi feito? Sim, certamente. Mas não confundamos as coisas. Pode-se botar cachorros em carrinhos de bebês, e até mesmo fazer com eles a crueldade de tratá-los como crianças mimadas, deixando-os neuróticos apenas para saciar um desejo desordenado de maternidade de seus donos. Mas independentemente do que lhes faça, cachorros serão sempre apenas isso: animais irracionais, cuja vida tem começo e fim. Cachorro não vai para o Céu. Cachorro não é gente, nem filho de seu dono.
Cachorro é apenas tudo de bom. Que os deixemos viver.
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