Alguns patrões de gosto duvidoso pregam nos locais de trabalho um cartazinho dizendo “não falte ao serviço, ou poderemos descobrir que você não faz falta”. O desabastecimento – especialmente de combustível – causado por uma greve de 11 dias dos caminhoneiros mostrou que, por mais que seja de péssimo gosto, a frase é verdadeira. A ausência de estradas de ferro mostrou que elas fazem falta. O vício em estradas de rodagem e no transporte feito por caminhões, a custos muitíssimo mais altos que o das ferrovias, mostrou que sem elas o país não tem como funcionar direito.
Para saber disto antes da greve, bastaria dar-se ao trabalho de cruzar a Via Dutra, a principal artéria do país, ligando as suas duas maiores megalópoles, e perceber que não apenas ela não tem nem um terço das pistas que seriam necessárias para o tráfego atual, como que o tráfego nela é majoritariamente de caminhões. Viaja-se atrás de um caminhão, ao lado de outro e diante de outro, no limite legal de velocidade, com uma distância perigosamente pequena entre os veículos. Motos e carros mais leves dançam o tempo todo ao ritmo do deslocamento de ar de tantos caminhões.
E não são caminhões que saem daqui e vão ali para o lado, não. São caminhões que saem de algum lugar numa ponta do país e vão para a outra, com tempo contado e exíguo – daí o uso de drogas, daí o vício de tantos caminhoneiros em anfetaminas (“rebite”) e mesmo cocaína, daí inúmeros acidentes evitáveis. São caminhões que gastam pneus caríssimos, além de queimar enormes quantidades de diesel a cada vez que perdem o embalo e precisam retomar a velocidade. São caminhões que estragam as estradas por circularem sobrecarregados, para tentar diminuir um pouco o prejuízo de tantos consumíveis. São caminhões de que o Brasil é refém, dirigidos por caminhoneiros que são reféns dos políticos e de suas “soluções” mágicas que, quase sem exceção, jogam nas costas dos motoristas toda a responsabilidade por problemas que na verdade são causados por uma política de transportes que não é nem política nem é de transportes. Trata-se, na verdade, da soma de inúmeras politicagens canalhas: de impostos, de armações ilimitadas com empreiteiras para fingir que as estradas existem tal como estão no papel, de truques sujos de importadores e fabricantes de peças e mesmo de caminhões, de sistemas de logística “just in time” que já contam com caminhoneiros drogados dirigindo horas sem descanso para a fábrica funcionar…
O que se tem, na verdade, é um ecossistema pútrido e fétido que, mal e porcamente, supre as necessidades de transporte de carga do Brasil à custa de muitas vidas desperdiçadas – pois que vidas são mais desperdiçadas que as perdidas porque um caminhoneiro, alucinado de rebite para conseguir cumprir o prazo e alimentar sua família, desviou de algo que a droga o fez ver, algo que simplesmente não existia, e assim invadiu a pista contrária, morrendo e levando consigo toda uma família de viajantes inocentes? Casos como este há muitos.
E ao mesmo tempo, como vimos, é um sistema de podridão financeira e econômica que desperdiça anualmente uma fortuna incomensurável. Só os pneus gastos pelas multidões de caminhões que nunca deveriam ter estado no lugar de um trem já são um gasto absurdo. Some-se a isso o combustível extra, as peças e todos os demais custos, e o que se tem é o equivalente de carga aos engarrafamentos quilométricos de carros de passeio com lugar para cinco pessoas e bagagens carregando apenas o motorista, absurdos igualmente comuns nas nossas megalópoles, mas em escala muitíssimo maior.
Enquanto isso, no interior de muitos estados cada cidadezinha tem uma estação ferroviária abandonada, transformada em museu disso ou daquilo, rodoviária (amarga ironia!) ou o que quer que se consiga fazer com um prediozinho térreo e comprido. Conheço uma que virou escola de belas-artes. Igualmente, milhares de quilômetros de trilhos ainda estão espalhados, sem uso, pelo chão Brasil afora.
Mas trilhos têm uma desvantagem muito grande em relação ao asfalto, para os políticos: não dá para jogar uma camada fresca de asfalto em cima nos anos eleitorais e lucrar uns votinhos fáceis. A manutenção da ferrovia é invisível, ao contrário da manutenção da rodovia. Pudera nossas ferrovias terem crescido no tempo do Império e decaído no tempo da politicagem eleitoreira que se faz chamar de república, comprovando ainda hoje as palavras de Ruy Barbosa, arrependido de seu republicanismo.
A greve dos caminhoneiros mostrou o outro lado desta mesma e única politicagem: assim como com um caminhão de asfalto ganham-se votos, perdem-se facilmente muitos votos com uma greve que, ao contrário de quase qualquer outra, é capaz de estrangular completamente a economia nacional. Comparável, em desespero da população, aos 11 dias de greve dos caminhoneiros só os períodos de greve da Polícia Militar, neste país que desarmou cuidadosamente toda a população de bem, respeitadora da lei, ao mesmo tempo armando e municiando a pequeníssima parcela criminosa da população. Sem a PM, esse porcentual de criminosos contumazes, que não deve chegar a 1% da população, domina, pela força das armas que só eles (e a PM…) têm, as ruas das cidades. Sem os caminhoneiros, não há nada à venda. Nem gasolina, e não duvido que tenham faltado munições e drogas para os traficantes, ou que ao menos tenham subido de preço.
O Brasil é refém de um sistema que têm nos caminhoneiros, na verdade, as vítimas principais. Todo mundo, menos eles, ganha dinheiro com isso: do recauchutador de pneus ao intermediário de fretes, passando pelo empreiteiro que reforma a estrada, o político que faz conchavos com o empreiteiro, e quem mais quiser. É um sistema monstruoso, gigantesco e pútrido, que substitui um sistema ordenado de transportes por uma confusão irredimível de leizinhas eleitoreiras, conchavos políticos, lobbies e demais subsistemas encarregados de tornar mais cara e mais difícil a vida do brasileiro médio.
Um governo de verdade, um governo que pensasse para o futuro, não apenas para a próxima eleição, cobriria este país de malha férrea e oleodutos, e deixaria o asfalto para o que deveria ser a sua função precípua: as viagens curtas, em veículos leves, e a distribuição local de mercadorias trazidas de longe por ferrovia. Mas isso não daria votos. Ao contrário, aliás.
Continuaremos reféns enquanto não houver como um governo pensar além da próxima eleição. E agora os interessados em fazer má política já sabem que parar os caminhões funciona. Preparemo-nos, pois isso há de se tornar acontecimento regular.