Nossos descendentes provavelmente estudarão o século 20 como a epítome da selvageria em escala industrial. Inaugurado com a colonização brutal da África na virada do século 19 para o 20, em que cortar os braços de crianças para castigar supostos malfeitos dos pais era coisa normalíssima, o horror chegou ao seu auge com os genocídios do século passado. A maior diferença entre eles e os demais morticínios de que infelizmente a história é cheia não é apenas de meios. A repulsa que nos causam os mecanismos de matar indivíduos no atacado, como os campos de extermínio alemães ou cambojanos, ou ainda os gulags soviéticos, não devem nos cegar para a novidade principal: quem matava era o próprio governo. Não se tratava de chacinas de inimigos vencidos, mas de morticínios multitudinários de civis inocentes cometidos pelas mesmas autoridades que em tese deveriam protegê-los.
A razão única por trás disso tudo – da fantasia de superioridade “racial” à negação da humanidade de judeus, ciganos, kulaks ou míopes – é a ideologia. A certeza sem qualquer razão de ser de que logo ali à frente espera um futuro glorioso, e só o que dele nos separa é a recusa da realidade de submeter-se ao Plano. À Razão. À Ideia. O inimigo está firmemente delineado na ideologia – os judeus, os proprietários dos meios de produção, o suposto primitivismo dos africanos – e basta eliminá-lo para que todas as peças se encaixem e chegue a Utopia: o Comunismo, o Reich de Mil Anos, o que for.
Tendo felizmente chegado ao fim a capacidade do raciocínio (sic) ideológico de hipnotizar massas críticas da população, ele hoje só sobrevive pela força. Onde sobrevive. Estamos todavia numa posição em muitos aspectos semelhante à daqueles que, como Santo Agostinho, viveram o fim de Roma. A dita Pax Romana estava longe de ser pacífica, mas ao menos era previsível. Finda tal ordem, o que virá? Não há como saber.
A repulsa que nos causam os mecanismos de matar indivíduos no atacado, como os campos de extermínio nazistas ou comunistas, não devem nos cegar para a novidade principal: quem matava era o próprio governo
O que surgiu imediatamente após a derrocada do que se convencionou chamar “as Grandes Narrativas” ideológicas, abrangendo provavelmente a totalidade das opções não ideológicas nos planos políticos e administrativos, foi simplesmente o caos. Não é à toa que até mesmo a feitiçaria tenha deixado de lado seus arcanos rituais para brincar com chaos magick, a “magia do caos”.
No campo da política tupiniquim, isto se mostrou bem claro quando Lula, cansado de bater a cabeça no seu teto ideológico de pouco menos de um terço da população, fingiu deixar de lado a rigidez dogmática da ortodoxia esquerdista para tornar-se “Lulinha Paz & Amor”. Esta figura caótica – perfeitamente descrita pelo grande Polzonoff (num texto que nem ele mesmo se lembra mais de haver escrito) como “aquele tio cafajeste que olha o bumbum das sobrinhas na piscina, bebe demais nas festas, mas é o cara certo para se telefonar quando se vai parar na delegacia com um baseado” – conseguiu o prodígio de empurrar a carcaça do dinossauro ideológico para o Planalto, de onde só saiu quando as (igualmente caóticas) manifestações-em-busca-de-um-tema de 2013 tornaram inexorável o impeachment da Governanta que lhe mantinha quente a cadeira.
Impedido pela Justiça (quiçá divina) de concorrer nas eleições presidenciais passadas, ele não pôde testar a medida do fracasso da persona que o levara ao trono. Representado pela patética nulidade da dupla Haddad e Manuela, mesmo com as extremamente confiáveis e certamente seguríssimas urnas eletrônicas (apud Alop e Cia. Ilimitada), sua derrota foi fragorosa. Derrota diante de quem? Um estadista, ou melhor, Estadista com “E” maiúsculo, como a precária situação do Bananão requeria e ainda requer? Não. Quem ali ganhou foi o Caos, a mais perfeita representação do deserto de homens e ideias do século 21.
Quem teve os votos da maioria esmagadora dos brasileiros não foi Jair Messias Bolsonaro, nascido em dia incerto da sofrida esposa de um prático dentista, mas o Bolsomito. Aquele personagem com oclinhos escuros de 8 bits, aquele meme vivo, aquela metralhadora fecal cuja retórica tem o dom de disparar sempre bolsotiros no próprio bolsopé. Ele foi eleito, é bem verdade, não por ser alguém, mas por não ser o Lula. O mesmo ocorreu nos EUA, aliás, que também elegeram um avatar do caos pela qualidade insuperável de não ser a Hillary Clinton.
Bolsonaro gozou de sua propriedade de não-ser-o-Lula em tal medida pela imbecilidade e pela falta de senso de ridículo que sói dominar a esquerda. Primeiro, tentaram fazer dele – contra não apenas a realidade, o que já seria grave, mas contra a própria plausibilidade – um monstro tamanho que a coisa virou piada. Bolsonaro seria nazista (daí as suásticas garatujadas por esquerdistas em campi universitários Pindorama afora). Bolsonaro abriria campos de concentração para todo mundo que não fosse homem-branco-heterossexual. Bolsonaro forçaria todo mundo a virar crente e pagar o dízimo pro Edir Macedo. Bolsonaro substituiria a polícia por duelos de fuzil no metrô. Bolsonaro revogaria a Lei Áurea. E – absolutésima cereja do bolo – ainda conseguiram dar-lhe uma facada, com o agressor sendo preso sem ser linchado; com seu álibi nada mais nada menos que na Câmara dos Deputados sendo revelado, mas jamais investigado; com advogado milionário surgindo no ato na delegacia; e, finalmente, o cara indo para um hospício e ficando tudo por isso mesmo. Melhor que isso seria difícil, em termos de firmar a bolsopersonalidade como o mais perfeito Não-É-O-Lula que jamais surgira na vida política brasileira.
Já o Bolsonaro real, como aliás escrevi à época, nada tinha disso tudo. Na verdade, ele poderia ser substituído por um taxista aleatório e não haveria diferença alguma. Tratava-se de um sujeito que dizem ter sido saído do Exército sob alegações tenebrosas de supostos planos terroristas, conseguindo em seguida eleger-se como uma espécie de sindicalista dos praças e, em seguida, ampliando o leque para ganhar um eleitorado cativo de policiais e milicianos cariocas. Um sujeito que persistira lá no fundão do baixo clero da Câmara por mais de 30 anos sem fazer diferença prática alguma, mas conseguindo manchetes aqui e ali com sua inegável capacidade de dizer coisas que arrepiam as almas sensíveis da imprensa de esquerda. Seu único trunfo inicial era não ter rabo preso com o PT; não fosse a apavorante possibilidade da volta do PT ao poder após um breve interlúdio de normalidade democrática com Temer, Bolsonaro seria apenas outro Levy Fidélix.
Bolsonaro gozou ao máximo de sua propriedade de não-ser-o-Lula graças à imbecilidade e à falta de senso de ridículo que sói dominar a esquerda
Dadas as circunstâncias, contudo, ele se tornou rapidamente o homem errado no lugar certo. Tremendamente ajudado pela imbecilidade galopante da esquerda, que em sua bolha realmente achou que exagerar seu antiesquerdismo faria mal, não bem, à sua reputação, eis que Bolsonaro tornou-se o invencível Bolsomito, o Taxista Aleatório no poder. Já mencionei neste espaço em que minhas mal-traçadas vão à luz já há quase 11 anos que os gregos, cansados dos demagogos, um belo dia substituíram as eleições por sorteios entre os cidadãos – forma a meu ver interessantíssima de escolha democrática de governante. Pois bem: fizéssemos o mesmo, o que se teria seria isso aí. Um Taxista Aleatório no poder.
Confesso meu espanto ao ver como tanta gente ficou desapontada com o desempenho do Bolsotaxista. Até mesmo gente inteligente que conheço realmente esperava mais dele, não a sucessão de trapalhadas, as reiteradas enfiadas de pés pelas mãos, os tiros no pé que – ora, bolas – sempre haviam sido sua marca registrada, na sua comprovada capacidade de passar 30 anos na Câmara sem conseguir fazer rigorosamente nada que não provocar o escândalo farisaico das toupeiras da esquerda. Alguns chegaram a acreditar nas besteiras da mídia, como pintar de “genocida” um mero incompetente. Um mero Homem Errado no Lugar Certo.
Pois eis que – nesta nossa pós-modernidade em botão – temo-lo no lugar certo. Não há opção, na verdade, e nem poderia haver. De um lado do ringue, o Borg omni-devorador e ultracentralizador do cadáver insepulto da esquerda ideológica do século passado, que fez da Petrobras um fundo de apoio a ditadores latino-americanos e jamais pretendeu largar o osso. Do outro, o equivalente daqueles reis de França d’antanho, tão incompetentes e tão vagabundos que passaram à história como les Rois Fainéants, os Reis Vagabundos. Foram eles que permitiram, pela mais pura incompetência, que o território franco se organizasse de maneira orgânica, de baixo para cima, com autoridades reais, surgidas onde delas houvesse real necessidade. Findo seu período, foi o Mordomo do Palácio (Pepino, o Breve – era baixinho –, casado com Dona Berta dos Pés Grandes e pai de Carlos Magno) que fez ressurgir um Reino de França, que veio depois a tornar-se o Sacro Império Romano.
Sabemos todos o que significaria a volta do PT ao poder. Como os Bourbon, “nada aprenderam e nada esqueceram [do que se lhes foi feito]”. À sanha estatista e burocratizante e à sôfrega ganância pelo dinheiro dos contribuintes unir-se-ia um espírito revanchista que em nada deixaria a dever ao dos argentinos contra os milicos lá deles (que, convenhamos, foram muito além do tolerável). Não duvido nada que viessem a usar, sei lá, a listagem de assinantes deste nobre órgão de imprensa ou os róis eleitorais (se, claro, nossas pujantes e indevassáveis Urnas Eletrônicas Perfeitas e Incorruptíveis® não impedissem liminarmente tal malfeito! Toma, papudo!) para elaborar longas listas de inimigos do regime, a sofrer devassas fiscais, pontos na carteira de motorista, cassação da carteirinha de atirador e o que mais conseguissem inventar em sua sanha vingativa.
A opção, claro, é o Caos. Ou, melhor dizendo, a ausência da falsa ordem ideológica, que como uma plantação de eucaliptos cria um deserto verde e aparentemente muito ordeiro, com suas fieiras sem fim de árvores exatamente iguais. A sociedade humana é – só pode ser – algo desenvolvido organicamente, como uma floresta de verdade, em que não só não há duas árvores iguais como não há sequer folhas iguais numa mesma árvore. Em que vastas copeiras dão sombra em que crescem arbustos, cujas frutinhas alimentam os pássaros que polinizam as flores e fazem surgir árvores médias e pequenas, de que surgem frutas sumarentas e flores multicoloridas cuja beleza só será vista pelos anjos que ali pararem para descansar. Em que cipós crescem em tramas imprevisíveis, mais contorcidas que a mente de Salvador Dalí. Em que folhas caem e formam um escuro substrato vegetal, em que crescem invisíveis vastidões fungais unindo e possibilitando a comunicação das gigantes sobranceiras que lentamente crescem por milênios sem fim. Em que insetos de todo tipo sobem, descem, cavam, comem, procriam, fertilizam e dão vida, numa ordem – esta, sim, real – cuja complexidade é tamanha que a olhos pouco sagazes parece apenas... caos.
A personalidade caótica e o desgoverno de um Bolsotaxista, tenha ele sido eleito por não ser o Lula ou escolhido em sorteio pelo número do CPF, impedem que aquele refugo varguista que é o Estado brasileiro sufoque ainda mais a vida do pobre cidadão. A ausência de políticas de Estado dá espaço para o funcionamento real da sociedade subestatal, e destarte para o retorno de alguma ordem, ao longo de toda a sociedade brasileira. Dizem que o Brasil só cresce à noite; pois é a santa e abençoada bolsoincompetência que faz tardar a alvorada e adianta o crepúsculo, permitindo que cresça a indústria, que aumentem os micro e pequenos negócios, que diminua a oligopolização fascista tão amada pelo PT e pelos seus cupinchas.
Sabemos todos o que significaria a volta do PT ao poder. À sanha estatista e burocratizante e à sôfrega ganância pelo dinheiro dos contribuintes unir-se-ia um enorme espírito revanchista
Fala-se muito de como no Império o Brasil era grande, e é verdade. Até hoje jaz inerte a vastíssima malha ferroviária construída então, por exemplo. Enquanto o imperador caçava borboletas em Teresópolis, visitava as pirâmides, estudava aramaico, encantava-se com a inventiva de Graham Bell, fazia cafezinho para Vitor Hugo, que sei lá eu. O Brasil era grande então porque não havia um pulha com mania de grandeza, como tantos tivemos depois, arrogantemente convencido de saber O Caminho Certo. O que havia era alguém – dom Pedro II – que percebia o óbvio, ou seja, que o Estado central é apenas o último recurso, e só lhe compete tentar resolver aquilo em que todas as instâncias inferiores tenham fracassado. Mais ou menos, aliás, como em tese seria o Supremo, que só deveria cuidar de averiguar a constitucionalidade de dispositivos legais, mas hoje faz de um tudo, menos isso.
Melhor, muito melhor, um incompetente ou um caçador de borboletas que uma alma sebosa como um Zé Dirceu (que com razão afirmou, quando ainda mandava, que conquistara “o governo, mas ainda não o poder”). Melhor, muito melhor, que possamos, eu e você, aqui e ali, encontrar soluções locais para problemas locais que termos em Brasília um suposto iluminado, guiado pelo espírito de Mao Tsé-tung, aplicando medidas “universais” ditadas pelo leito de Procusto ideológico do século passado.
Não creio que o Lula consiga ir além do seu antigo teto ideológico nesta eleição. Aliás, é provável que nem mesmo aquele teto de antes volte a ser alcançado, em virtude de “injustiças” e “falhas” de que se ressintam membros de facções daquele enorme saco de gatos que é a esquerda brasuca. Quem votou no Lulinha Paz & Amor por achar que não era mais comunista tomou asco dele, e hoje afirma que além de comunista é mentiroso e ladrão. Justo. Vou mais longe ainda: num segundo turno contra qualquer outro candidato que não o Bolsonaro, incluindo o Cabo Daciolo e o Eymael, o Lula provavelmente perderia. Já contra o Bolsonaro – que não é mais Bolsomito, exatamente como o Lula não é mais Lulinha Paz & Amor, a despeito do que façam e digam os marqueteiros – será uma disputa de níveis de rejeição. Vai-se votar num contra o outro e no outro contra o um, com poucos votando a favor de qualquer um deles.
Creio, todavia, que em tal segundo turno ganha o Bolsonaro, que continua imbatível no quesito Não Ser O Lula. Conheço muita, mas muita gente mesmo, de todas as classes sociais e níveis de escolarização, que pretende tampar o nariz e votar nele apenas para impedir a volta do PT. Inclusive gente que votou nulo ou em branco no segundo turno passado. Como podemos esperar da mídia esquerdista um grande auxílio no sentido de lembrar a todo mundo que Bolsonaro decididamente Não É O Lula, a chance é ainda maior. Bobeia até algum neoconstitucioniilista mandar calar a bolsoboca ou mesmo prender o Bolsoboquirroto por conta de “fake news” ou bobagem do gênero, e a imprensa ajudar, avisando todo mundo que ele está sendo martirizado e perseguido. Quem sabe? Sonhar não tira pedaço.
Só sei uma coisa: pra melhorar ainda mais, sugiro que depois das eleições alguém dê de presente ao eleito o melhor console de videogame do mundo, uma farta adega e agradável companhia feminina. Tudo para distrair o homem, para que ele acorde tarde e deixe o Brasil voltar a crescer. Como um bom Rei Vagabundo; já tivemos um, e foi ótimo!
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