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Como na semana passada a confusão no Capitólio americano resolveu estender-se além do prazo de entrega desta coluna, não me foi possível abordá-la. Diziam os antigos, todavia, que há males que vêm para bem, e alguns dos muitos acontecimentos desde então acabam de completar o quadro que pretendo descrever aqui. A confusão política tende a nos prender dentro de visões extremamente limitadas, como bem sabe quem quer que tenha tido um dia a curiosidade de perceber a enorme diferença entre o que é reportado como notícia num dado momento e o que a história descreve ter então ocorrido. Os grandes movimentos de fundo perdem-se na confusão das emoções do momento, e a floresta passa despercebida por quem mal consegue ver galhos inteiros, que dirá árvores.
Algumas coisas, contudo, têm o potencial de tornar-se momentos simbólicos, mesmo quando, em termos práticos, nada vem diretamente deles. É o caso da Queda da Bastilha na Revolução Francesa, em que a invasão duma cadeia quase vazia (e que abrigara até poucos dias antes a bizarra figura do Marquês de Sade) veio a tornar-se símbolo da passagem do poder da nobreza decadente do Antigo Regime para a burguesia sequiosa de sangue da era que hoje estamos vendo chegar ao fim. Imagino que as cenas fellinianas contrapondo invasores que mais pareciam a Carreta Furacão à sobriedade do Sanctum Sanctorum do Capitólio americano possam um dia ter o mesmo peso. Em todo caso, a situação é em muitos aspectos semelhante: tanto a invasão da Bastilha quanto a do Capitólio foram atos completamente irracionais, ações de turbas mais semelhantes a estouros de gado (um dos personagens, inclusive, fantasiava-se de vaca pintada!) que a batalhas célebres ou a grandes viradas históricas.
Não que tenham sido tremendamente racionais, claro, os atores políticos de primeiro plano, os indivíduos que participam, no mais das vezes sem saber, de eventos históricos tremendamente além de sua compreensão ou mesmo de seu interesse. Cada um via apenas a própria vaidade, os próprios ódios, os próprios interesses de curtíssimo prazo. Dizem que a vítima maior de toda a palhaçada, Trump, teria ficado exultante quando seus fanáticos começaram a adentrar o Capitólio. Mas por quê? Por achar que aquilo levaria a algo que lhe fosse favorável? É evidente que não. Um golpe de Estado, como ele foi acusado de tentar, é feito com tanques, não com idiotas fantasiados de Clarabela. Ele ficou animadinho por perceber-se amado, simples assim. Nem sequer deu-se conta num primeiro momento, perdido em sua incomensurável vaidade, de que aquilo evidentemente seria usado – como foi – para eliminar sua última chance de ver apresentadas num contexto formal suas queixas legítimas.
Tanto a invasão da Bastilha quanto a do Capitólio foram atos completamente irracionais, ações de turbas mais semelhantes a estouros de gado que a batalhas célebres ou a grandes viradas históricas
A coisa toda, claro, foi o maior presente que o Partido Democrata poderia ter recebido. O vice de Trump, tentando manter-se em cima dum muro finíssimo e bambo como cerca velha de bambu, havia dito que não recusaria os resultados dos estados onde a roubalheira foi comprovada. Mas também disse que as queixas teriam seu “dia no Congresso”, versão derradeira do “dia no tribunal” da lenda americana, de que já tratei em outro texto. Vários congressistas do Partido Republicano tinham objeções preparadas, que tentariam apresentar ao plenário para que a evidência finalmente, podendo ser vista, forçasse ao menos os membros do próprio partido a tomar posição contra a aceitação dos votos duvidosos. Tudo isso, contudo, foi jogado no lixo pela Carreta Furacão botando os pés sujos de lama em cima das mesas dos sacrossantos congressistas. Mutatis mutandis, aquilo lembrou o dia em que os adeptos dum padre apóstata tornado político no Haiti invadiram a residência de um bispo e saíram pelas ruas fazendo bagunça vestidos com os paramentos episcopais. Acabou naquele instante a ficção do cristianismo do ex-padre.
A adesão de Trump à religião cívica americana, claro, bem como sua fidelidade aos imperativos morais categóricos da direita de lá, sempre foram completamente da boca pra fora. O deus de Trump sempre fora Mammon, ou antes a profaníssima dualidade de Mammon e Narciso. Seu papel na história, todavia, é algo para o qual a adesão subjetiva a isto ou aquilo não importa. O que importa é o que ele representou, e de certa forma ainda pode representar se o establishment não o impedir de concorrer novamente na próxima eleição. Apresentados os personagens da farsa em que a história se repete, podemos recuar um pouco e ver a situação dentro de um quadro bem mais amplo que o político, necessariamente limitado às próximas eleições.
O que estamos vendo é uma etapa pela qual todo sistema passa em sua decadência. A diferença maior entre os acontecimentos hodiernos e, digamos, o fim do Antigo Egito é que a Modernidade passou pelo mundo como uma tempestade de verão, fazendo enorme estrago, mas durando pouquíssimo. Tudo nela, assim, é acelerado e exagerado, o que o panóptico da mídia torna ainda mais evidente. Este momento é mera repetição acelerada do que se vê nos estertores de cada sistema: a hora em que o que fora uma lógica subjacente ao sistema, o esqueleto que a mantinha de pé, passa a ser, ao contrário, um exosqueleto, um gesso de fora para dentro a tentar manter em pé o que na verdade já é um cadáver.
É comum, por exemplo, que os ignorantes achem que a Inquisição Espanhola tenha sido um fenômeno medieval. Ora, nada mais errado; ela foi, justamente, um fenômeno moderno. No Medievo simplesmente não faria sentido, não haveria razão alguma para aquilo tudo: a catolicidade para o medieval era como a água para o peixe, que nem sequer percebe estar molhado. Mas num momento em que a ordem antiga já desmoronava por toda parte, em que todo tipo de nova religião e de loucura se levantava por todo lado, ela foi uma tentativa de escorá-la. De fazer com que um cadáver permanecesse de pé. E, realmente, ela o conseguiu por um bom tempo, jogando para adiante os problemas que ocultava. Até, claro, que tudo explodiu e a Espanha se viu numa guerra fratricida em que as facções modernas que haviam crescido no escuro engalfinharam-se até a morte.
Agora, nos EUA, está acontecendo coisa muito parecida, facilitada pelas loucas aventuras da Carreta Furacão no Capitólio: tudo está (ou estará a partir do dia 20) em união, tanto o Executivo quanto o Legislativo, tanto a mídia tradicional quanto os monopólios digitais, tanto as Forças Armadas quanto as incontáveis agências da Inteligência americana. O próprio Trump foi calado sem cerimônia alguma, mesmo ainda sendo em tese o presidente. Foram-lhe simplesmente cortados os meios de dirigir-se ao povo, e não me espantaria em nada que ele venha a ser impichado ao apagar das luzes e ainda preso por alguma razão inventada. A rede social de direita Parler não só foi desligada como uma lâmpada, como tornaram-se subitamente públicos os dados pessoais de todos os seus membros. E isso tudo antes mesmo de tomarem posse os novos eleitos; em tese, o governo ainda estaria nas mãos do Partido Republicano! É extremamente provável que o clima feche feio depois da posse dos recém-confirmados. A profética boutade atribuída ao político populista americano Huey Long, segundo a qual o fascismo chegaria aos EUA dizendo-se antifascismo, parece estar a cumprir-se.
Então estaria o Partido Democrata com a faca e o queijo na mão? Mais ou menos, porque um gesso de corpo inteiro não é um esqueleto e não traz à vida o cadáver engessado. Está faltando um elemento, um pequeníssimo elemento da religião cívica americana contra a qual os trumpistas foram (com razão) acusados de sacrilégio. O seu Bereshit, seu In principio creavit Deus: o We, the People. Assim como a Escritura começa dizendo que no início criou Deus todas as coisas, o preâmbulo da Constituição dos EUA (o documento-base do experimento social maçônico que ora chega a seu fim) começa com “Nós, o povo”. Ora, onde está o povo?
A adesão de Trump à religião cívica americana e sua fidelidade aos imperativos morais categóricos da direita de lá sempre foram completamente da boca pra fora. O deus de Trump sempre fora Mammon
Parte dele – os que Hillary Clinton apelidou de “deploráveis”: gente pobre e cafona, de origem norte-europeia, dada a armas e bíblias e ganhando a vida com as mãos, não com a cabeça; em suma, exatamente o que foi chamado “Nós, o Povo” quando foi escrita a Constituição – foi vista aos magotes circulando no rarefeito ambiente olímpico do Capitólio, sujando os belos mosaicos e tapetes... Uma das razões por que Trump foi abraçado por eles é justamente a (em grande medida correta) percepção de que agora são considerados indesejáveis no país que até umas poucas gerações atrás lhes pertencia. Uma tremenda confusão mental, mistura de picaretagem fundamentalista, teorias da conspiração, racismo aberto ou velado, releituras bíblicas, escatologia popular, influência israelense e medo do Islã abriu caminho para o Homem-Abóbora escarrapachar-se no Salão Oval. Tudo isto não lhe deu, todavia, nem as chaves do cofre nem qualquer medida de controle daquilo a que ele e seus seguidores se referiam como “o Pântano”: aquela parte fundamental e oculta do governo, que perdura apesar dos presidentes e congressistas, que define o que é realmente importante que seja definido. Num país de origem maçônica, convenhamos, seria absurdo se não houvesse uma instância superior secreta, e os quatro anos de impotência de Trump comprovaram cabalmente sua existência.
Mas o fato é que o domínio de todas as instâncias de poder formal e informal está agora concentrado nas mãos desse pessoal, mas o tal We the People, que em tese seria a base de seu poder na mitologia da religião cívica, não só não está, mas também escapa-lhes completamente à percepção, logo à compreensão. O deplorável não é compreensível, e é apenas como causa de nojo que é perceptível. Não são boas notícias, veja bem, meu solitário e entediado leitor. Se um governo fascista, como os da Europa nos anos 1930, já conseguia fazer um estrago danado na sociedade contando com o apoio maciço da população (o que infelizmente foi a regra), um que não o tenha só pode governar à força. Na marra. Calando – cancelando, prendendo, ou os dois – quem lhe desagrade, martelando cada prego que sobressaia. Os elementos mais perigosos do projeto maçônico original (o anticatolicismo, a expansão permanente, a guerra de agressão permanente, a cobiça tomada por princípio civilizatório) continuam e continuarão. Quem tem jazidas de petróleo continua na mira das armas americanas.
Mas a falta da base interna e, mais ainda, a efetiva desistência de assegurar um verniz de legitimidade ao poder nu e cru fazem com que seja cada vez mais provável que a violência que costumava ser usada apenas contra o Outro (o índio, o católico, o espanhol, o russo, o árabe) seja mais e mais usada contra os próprios cidadãos, numa inversão marxianamente farsesca da religião cívica original. Mais ainda: o avanço tecnológico eliminou completamente o mecanismo previsto pelos arquitetos do projeto original para conter os excessos do governo – um povo armado. Por mais fuzis que tenha um caipira americano, ele não tem como defender-se de robôs assassinos voadores ou de bombas atômicas.
Quando a isso se junta a expansão (majoritariamente pacífica e feita pelo comércio, não pelas armas) do poderio chinês, o cada vez mais rápido abandono do dólar como moeda de troca internacional (lembremos que é basicamente disto que os EUA vivem, pois já quase nada produzem domesticamente) e, finalmente, a combinação da necessidade financeira e ideológica americana da guerra permanente com a crescente irrealidade em que vivem seus poderosos, torna-se mais e mais possível que os EUA comecem uma (outra) guerra que não têm como ganhar nem terão como abandonar. Não importa se a vítima do ataque sorrateiro inicial (que a esta altura pode até prescindir duma falsa bandeira) for a China ou o Irã, ou mesmo a Rússia: os EUA não têm como ganhar de nenhum dos três, e menos ainda dos três juntos. Desde a Segunda Guerra suas Forças Armadas não conseguiram ganhar nenhum conflito real, apanhando até do Exército do Vietnã do Norte, e a dependência tecnológica crescente só faz piorar a situação. O objetivo das Forças Armadas americanas já é há um bom tempo movimentar a economia, não mais ganhar guerras.
O que temos, portanto, é o terreno pronto, arado e preparado para uma implosão do cerne da Modernidade. Sem este a Europa Ocidental não tem como sustentar-se enquanto conjunto de Estados nacionais modernos, mesmo por ter escancarado as portas a gente de outras culturas e nações, sem amor algum aos projetos europeus. A Oceania anglo-saxã não piscará duas vezes antes de atirar-se amorosamente no leito chinês. Todo o sistema moderno, assim, desabará ainda mais rapidamente que se construiu, e gente que já nasceu ainda verá o começo de outra coisa.
Que coisa será essa não há como dizer; é provável que seja algo menos antinatural, pois a efemeridade da Modernidade decorre justamente de sua antinaturalidade. Não se tem como saber em que medida perdurarão ou mesmo avançarão as tecnologias que permitiram e aceleraram a passagem do Moderno ao Pós-Moderno (ou Hiper-Moderno) e sua derrocada final. Afinal, outro dos tantos absurdos da Modernidade tardia e Pós-Modernidade é justamente o consumo insustentável e o vício em energia. Algo terá de mudar; na verdade, pouco que não o que é da natureza humana tem qualquer garantia de continuar. É hora de preparar-se para os eventos e tentar ao máximo não depender do que em breve desabará: sistema bancário, megalópoles (outro fenômeno moderno), poderes (ora) constituídos. Tudo o que é sólido já se desmancha no ar.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos