São Paulo escreveu aos coríntios um belíssimo hino à caridade – muitas vezes traduzida “amor” –, que em português tornou-se até mesmo música de sucesso no vozeirão de Renato Russo. Ela é o que resta após tudo desaparecer, ensina ele. E é verdade. Todos os dias tenho ocasião de perceber isso um pouco, quando saio à rua na minha cadeira de rodas: raras são as ladeiras que tenho de subir, raras são as ruas que tenho de atravessar, sem que surja um Bom Samaritano que faça de mim o seu próximo e me empurre a cadeira. Alguns, mais abusados, quase me provocam um enfarto ao empinar-me a cadeira por trás sem avisar. Mas a intenção é boa. Isto é caridade.
Um amigo, todavia, comentou com razão outro dia que a moda atual, especialmente nos países mais ricos monetariamente e mais pobres espiritualmente (o que parece vir junto), é negar totalmente o valor da caridade. “Não dê esmola, dê cidadania”, chegam a pregar no Brasil mesmo alguns energúmenos. Ora, bolas, esmola e cidadania são coisas radicalmente diferentes. Isto não parece ter sido percebido por um pobre rapaz, pertencente a alguma denominação protestante, que acaba de publicar obra hedionda mandando que seus leitores não deem esmola. Segundo ele, ao que consta, após um período “infiltrado” entre mendigos ele teria descoberto que – ó horror! – os mendigos não usam a esmola apenas para comer e beber, mas sim, também, para saciar outras fomes: beber cachaça, comprar algo que querem, o que for.
Não vejo necessidade alguma de fingir ser mendigo com o fim de descobrir isso, que mal que bem é perfeitamente dedutível da própria natureza humana; já cantou outro poeta que “a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte; a gente quer saída para qualquer parte”. Nem, muito menos, poderia eu, que sou humano também, negar aos pobres mendigos seus goles de cachaça. Se eu lhes dou dinheiro, o dinheiro é deles, pombas. Caridade de verdade não tem cordinhas amarradas. Aliás, poucas coisas mais asquerosas que dar presentes e tomá-los de volta, ou dar presentes com amarras: “não vá gastar isso em cachaça, hein?”
Tentar negar a caridade para inflar o valor da cidadania é simplesmente uma mentira
A esmola, na verdade, é uma graça que é feita não a quem recebe, mas ao caridoso. É ele quem tem a chance de fazer um bem, e assim tornar-se uma pessoa um pouquinho de nada melhor. Ele lucra infinitamente mais que o alvo de sua caridade. É claro, entretanto, que não é a quantia que faz a caridade; já disse, com toda a razão de quem vivia imersa plenamente nisso, a Santa Madre Teresa de Calcutá que “caridade só é de verdade quando dói”. Ou seja: a pessoa que, no calor brasileiro, empurra minha cadeira, quase correndo, por um quarteirão inteiro ladeira acima está, no seu derramar de suor e na dor que fatalmente há de lhe acometer as pernas, fazendo caridade muito maior que a de Bill Gates e seus bilhões doados, que contudo não lhe fazem mossa alguma na sua imensa fortuna, não modificam o seu padrão de vida em nada, e por aí vai. Aquela dói; esta não. Esta tem pouco valor, apesar das cifras, e aquela tem valor imenso.
O mendigo, na verdade – mesmo eu, que nem estou mendigando ajuda, só tentando subir a ladeira –, ao mesmo tempo merece e não merece a caridade que lhe é feita. Ele não merece – nós não merecemos – como seres humanos que somos, o que aparentemente foi descoberto com horror pelo pobre protestante. Somos filhos de Adão e Eva, e nada do mal nos é estranho. Somos orgulhosos, mesmo os mendigos; bebemos cachaça, sofregamente por vezes; cobiçamos a mulher do próximo, porque afinal como um próximo feiozinho desses foi-se casar com aquele portento, aquele monumento à feminilidade pura e pujante?! Mas, por outro lado, exatamente por sermos seres humanos, cada um de nós merece a caridade, e, mais ainda, merece recebê-la e, com Ele e n’Ele, abençoar quem a dá. Afinal, somos conaturais de nosso Criador. Afinal, o próprio Cristo disse com todas as letras que o que fosse feito ao menor dos irmãos a Ele mesmo estaria sendo feito; Ele mesmo diz aos seus santos que é por terem Lhe dado água quando tinha sede, comida quando tinha fome, roupa quando andava nu, que Ele os acolhe no Seu Reino. Não é pouca coisa, não.
A caridade, assim, não tem nada, rigorosamente nada a ver com a bendita cidadania, que é um pertencimento de outra ordem. Tentar negar a caridade para inflar o valor da cidadania é simplesmente uma mentira. A caridade sempre há de ser feita, e cada pessoa precisando de ajuda vai sempre poder abençoar – junto com o Criador, que já o faz – quem lhe prestou aquele auxílio. A cidadania serve para outra coisa. Sua função primeira é assegurar-nos de nossa participação numa coisa muito mais reles que a santidade: a ordem social, dentro da qual temos certos direitos e deveres assegurados. Nesta ordem social, nós – que somos cidadãos – podemos votar no menos ruim dentre vários candidatos péssimos a cada cargo, e depois ver que nosso candidato perdeu. Podemos escrever para um jornal, na esperança de termos nossa carta publicada. Podemos ver os ricos passando por cima dos pobres e os salafrários mais desgraçados enganando a todos e saindo-se ilesos. Mas também podemos, ou deveríamos poder, saber que na pior das misérias teremos água de beber e alguma coisa para comer. Que algum tipo de cuidado médico nos há de ser prestado. E por aí vai. Mas não só isso não basta, como não pode ser confundido com caridade. O dinheiro com que funcionam os serviços públicos é o mesmo nosso, afinal. Numa sociedade rica há mais dinheiro para isso; numa pobre, menos. Mas o dinheiro é o dos próprios cidadãos, que compram caro os serviços da cidadania.
A caridade sempre há de ser feita, e cada pessoa precisando de ajuda vai sempre poder abençoar – junto com o Criador, que já o faz – quem lhe prestou aquele auxílio
Cidadania não é sinônimo nem de bem, nem de amor, nem – menos ainda! – de caridade. O funcionário público faz (ou deixa de fazer) o seu serviço não por caridade ou amor, mas por ter sido contratado para aquela função. Alguns poucos o fazem com amor, mas nenhum o faz por amor. Os serviços públicos não ajudam ninguém a se tornar uma pessoa melhor, ainda que ajudem muitos a beber cachaça. A sua função é outra: a cidadania, e tudo o que vem com ela, é simplesmente sinônimo de uma certa (e muito vaga, vaguíssima) equidade no alcançar de uns dados serviços e na punição por umas dadas transgressões. Ser preso também é um ato de cidadania, tanto quanto prender. Mas, assim como ninguém tem direito a cachaça grátis dada pelo governo na forma de uma barriquinha por semana, ninguém tem direito a privilégios.
É neste sentido que eu, mesmo sendo pessoalmente afetado por isso, não gosto nem um pouco de leis que mandam implantar “acessibilidade” nos comércios. Se o comerciante quer a minha triste figura em seu recinto, que bote uma rampa. Se não faz tanta questão assim, está plenamente em seu direito. Neste caso, alguém ainda pode melhorar-se pouquinha coisa que seja ajudando o cadeirudo aqui a subir um degrau. Cada qual com seu cada qual, e exigir para mim um direito que ninguém mais tem (ainda que por os demais não precisarem), como rampas, banheiros adaptados etc., é pedir demais. E, quando a cortesia é feita com o chapéu alheio, como é o caso das leis mandando os comércios gastarem fortunas com essas coisas, fica pior ainda. Já a entrada numa repartição pública deveria ser, sim, acessível. Aí já é uma questão de cidadania. Muitas, contudo, não são. Afinal, quem fiscaliza os fiscais?
Mas cidadania, digo, repito e tripito, é uma coisa; caridade é totalmente outra. Caridade é sempre um bem, e cidadania não necessariamente. Mas aquela é e sempre será muito mais necessária que esta. Parafraseando São Paulo, “a cidadania passa; a caridade permanece”.
Barroso vota por manter exigência de decisão judicial para responsabilizar redes por ofensas
Dias de pânico: o que explica a disparada do dólar e dos juros
Congresso fecha lista do “imposto do pecado”; veja o que terá sobretaxa e o que escapou
Como funciona a “previdência militar” que o Congresso vai rever