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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Comportamento

Casar na igreja?

(Foto: Randy McGuire/Pixabay)

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Uma das muitas peculiaridades que separam completamente o ser humano dos demais animais é sua capacidade de “empacotar” culturalmente aquilo que é de sua própria natureza. Todo bicho come; só os seres humanos comem de palitinhos de um lado do planeta e com garfo e faca do outro. Todo bicho usa ou modifica algo de seu entorno para proporcionar-lhe abrigo; só os seres humanos conseguem trocar o art-déco pelo brutalismo e convencer-se de terem feito uma boa coisa. E por aí vai.

Uma dessas coisas que estão na nossa natureza, mas que escondemos debaixo de toneladas de acrescências culturais, é o casamento. O que não falta por aí é bicho monogâmico; eu mesmo já reconheço alguns casais de passarinhos, dentre tantos das mesmas espécies, que vêm comer as sementinhas e frutas que deixo para eles diante da minha janela. Só o ser humano, todavia, consegue fazer tamanha quizumba com o conceito de casamento que acaba perdendo de vista a essência da coisa.

O casamento natural, que sempre existiu, é coisa simples, ainda que profundíssima quando paramos para pensar: um rapaz e uma moça se unem (ou, numa expressão mais bonita e ainda mais realista, “dão-se”) em casamento, têm os filhos que a união gera, criam a molecadinha e apoiam-se mutuamente até o fim de seus dias. Trata-se de uma doação mútua, em que o rapaz passa a ser da moça e a moça do rapaz, e ninguém tasca. Com o nascimento da petizada eles passam a ser, por assim dizer, sócios-atletas da sociedade, interessando-se pelo futuro em que viverão seus filhos e transmitindo a eles parte da vastíssima herança cultural da sociedade em que foram criados.

Uma dessas coisas que estão na nossa natureza, mas que escondemos debaixo de toneladas de acrescências culturais, é o casamento

Afinal, outra peculiaridade humana é que cada pessoa, bem como cada geração, começa do zero. Nascemos sem saber sequer andar, mas aprendemos tudo. Primeiro balbuciamos a língua de nossos pais, depois adotamos os costumes sociais (palitinhos e garfos, por exemplo), e apenas ao cabo de várias décadas de vida temos um conhecimento mais ou menos suficiente, ainda que perfunctório, de uma parcela do conhecimento acumulado pela humanidade até então. É tamanho esse conhecimento que ninguém o tem por inteiro; podemos passar a vida estudando e jamais o esgotaremos. Como nossos filhos e netos nascem precisando começar tudo de novo, aprender tudo do zero, compete primeiro aos pais e depois ao restante da sociedade passar a eles isso tudo, para que a sociedade como um todo detenha a íntegra de um conhecimento demasiadamente grande para que uma só pessoa possa tê-lo. Afinal, não faria o menor sentido cada um ter de descobrir de novo a roda, a pólvora ou a geometria. Estamos sobre os ombros de gigantes, desde que tenhamos a pachorra e o interesse devidos para escalá-los.

Daí, claro, o interesse real da sociedade como um todo (logo, de seu governo, qualquer que seja ele) na proteção institucional do casamento. É ali, naquela casinha, por aquele casalzinho, que a próxima geração daquela sociedade será gerada e criada. É ali, no seio daquela relação, daquela célula essencial da sociedade, que serão transmitidos os elementos mais essenciais à sua preservação. Em qualquer modelo de governança faz pleno sentido que haja alguma forma de reconhecimento prático daquela situação, natural ao homem e necessária à preservação da sociedade e de suas instituições, valores e demais componentes de uma vasta herança.

Tudo isso é natural. Os católicos, contudo, vamos mais longe. Cremos firmemente que o próprio Deus, Criador de todas as coisas, fez do matrimônio um sacramento, ou seja, um instrumento de santificação não apenas do casal, como de seus filhos e da sociedade em geral. Uma espécie de toboágua de graças, se posso arriscar a comparação. Monta-se o toboágua pela troca de votos matrimoniais, de promessas para o futuro que a nossa própria natureza já nos leva a fazer. O único pré-requisito absoluto é que o casal seja batizado, visto ser o batismo a porta que nos abre ao mundo sobrenatural da santificação.

Muita gente não sabe como foram mudando com os anos as exigências estabelecidas pela Igreja para os tais casaizinhos. De início, quando a Igreja estava crescendo num mundo ainda basicamente pagão, não havia nenhuma forma especial requerida. Em outras palavras, se um rapaz e uma moça solteiros e batizados quisessem dar-se em casamento, bastaria que trocassem votos. Sozinhos ou acompanhados, em casa ou no meio do mato, tanto fazia. Lembro novamente que essa troca de votos é absolutamente natural; na verdade o difícil é recusar-se a fazê-la durante uma certa fase da vida.

Coisa um tanto ou quanto difícil de entender no nosso atual estado avançado de decadência social é que o casamento opera tendo em vista o futuro, não o passado ou presente. Em outras palavras, dar-se em casamento não é uma maneira de comemorar algo que tenha ocorrido ou que esteja ocorrendo no momento (uma paixonite, por exemplo). O casamento é algo que começa ali, uma promessa, um compromisso incondicional para o futuro. A partir daquele momento o passado não importa, e o próprio momento só importa em vista do futuro. Daí, aliás, não haver problema algum em casamentos em que os noivos só vêm a se conhecer na hora da troca de votos, desde que estejam dispostos a trocá-los a sério. O que importa é o que vem depois, não o passado.

Não creio que se tenha como saber com precisão, mas é bastante provável que a maior parte dos casamentos ao longo da história da humanidade, bem como dos casamentos nos dias de hoje mundo afora, tenha sido arranjada pelas famílias, não pelos noivos. Para quem está imerso no fétido caldo de emocionalismo barato de hoje, em que (a cerimônia de) casamento é basicamente a celebração de um amor supostamente presente, pode dar um certo trabalho engolir tal fato. E, mais ainda, engolir o fato de que os casamentos arranjados, mesmo em sociedades em que o divórcio é fácil e socialmente aceito, normalmente duram muito mais que os motivados por paixonites. Afinal, repiso, o casamento é uma promessa para o futuro, e gente apaixonada vive num presente sem fim. Além, claro, de não ter juízo algum.

O casamento opera tendo em vista o futuro, não o passado ou presente. Dar-se em casamento não é uma maneira de comemorar algo que tenha ocorrido ou que esteja ocorrendo no momento. O casamento é algo que começa ali, um compromisso incondicional para o futuro

Num casamento arranjado, entre pessoas criadas com tal expectativa, tem-se de antemão garantidos muitos fatores cuja ausência comumente leva a crises matrimoniais em nossa sociedade. É evidentemente melhor a relação com sogros que mal que bem escolheram aquela pessoa que com sogros que a percebem como alguém que lhes roubou o filho ou filha. Do mesmo modo, a compatibilidade de hábitos sociais e familiares, bem como de tipo de criação, ajuda a não haver expectativas irreais acerca de como o cônjuge deveria comportar-se, tanto em casa quanto em sociedade. E por aí vai.

Meu ponto, no entanto, não é o casamento arranjado, sim o casamento enquanto compromisso para o futuro. O afeto amoroso entre cônjuges é forçosamente diferente do amor, ou mesmo paixão, entre pessoas solteiras, que vêm cada uma de um canto e nada construíram juntas até então. Os povos que arranjam casamentos contam com que o amor entre os cônjuges surja naturalmente, e nisso dificilmente se desapontam. O amor presente não apenas não é prerrequisito matrimonial, como é forçosamente algo que será (ou não) substituído por outra forma, quiçá mais calma, de amor conjugal ao longo dos anos.

Curiosamente, foi o surgimento do protestantismo (e, nele, da negação da sacramentalidade matrimonial por muitas das novas seitas) que tornou necessário à Igreja reafirmar em ato tal sacramentalidade. Passou-se então a exigir que os votos tivessem uma testemunha qualificada; mais precisamente, que fossem trocados diante de um padre, que anotaria o fato e a data. Daí cenas romantiquíssimas, em que uma moça cuja família não permitiria jamais que se casasse com tal rapaz trocava votos com ele aos berros durante uma parte silenciosa da missa, com cada um de seu lado da igreja. Afinal, ali havia um padre dando sopa, e não se exigia nenhuma forma mais específica que isso.

Essa coisa romântica toda, que até hoje influencia tão fortemente a nossa sociedade, é algo que predata a necessidade do tal padre. Ela vem de uma espécie de passatempo de nobres desocupadas e trovadores, em que romanticamente se celebravam amores impossíveis. A bela princesa, condessa ou rainha, casadíssima, era cantada em verso e prosa por seu trovador, ou quiçá servia galantemente de dama a inspirar os atos heroicos de algum cavaleiro. Muito bonito e muito legal; chato é que o que era uma brincadeira de cortesãos passou a ser levado a sério mais tarde, quando findou a sociedade em que tal brincadeira germinara.

A exigência de testemunha qualificada para o matrimônio data do século 16, quando a Igreja buscou responder, no Concílio de Trento, às maluquices que vinham pipocando no que hoje percebemos como o início da Era Moderna. Nesta era, em cujos estertores estamos, foi-se perdendo toda noção do sentido do matrimônio, num longo processo de decadência cultural. O reducionismo extremado da visão moderna de mundo, a falsa racionalidade em que psicóticos castelos no ar eram freneticamente construídos e habitados enquanto a realidade era ignorada, bem como a negação liminar da dignidade feminina pela burguesia pecuniólatra foram minando a realidade matrimonial. A mulher deixou de ser companheira necessária do homem – carne de sua carne e sangue de seu sangue – para tornar-se, quase como numa reprise da narrativa bíblica do Pecado Original, como que um objeto. Uma propriedade. Um ser incapaz de razão, a ser mantido num apartamento trancado tirando pó da mobília.

Nesse contexto, o romantismo das canções de amor cortês acabou parecendo ser uma alternativa à feiura moral da sociedade. O que fora uma brincadeira entre nobres que viam a mulher como igual ou superior ao homem tornou-se então brincadeira burguesa. Nela a suposta incapacidade de raciocínio por parte da mulher fazia com que a emotividade exagerada do romantismo fosse percebida como a língua natural dela. Não é preciso ser capaz de fazer contas ou entender de filosofia para apaixonar-se, e assim a mulher, desprovida de todo respeito a sua dignidade e intelecto, veio a ser percebida como mero ser apaixonante e dado a apaixonar-se. Perdidamente, aliás; irracionalmente. Emotivamente. Jamais, contudo, como igual, como companheira, como co-construtora de um futuro. No modelo burguês, dada a suposta ferocidade das emoções femininas, melhor seria deixá-la trancada com o espanador enquanto o marido mantinha amantes e frequentava cabarés.

Com a destruição da ordem burguesa a partir do fim dos anos 1960, infelizmente, persistiu e mesmo piorou a incompreensão do sentido real do casamento

Dada a situação social de quase-prisioneira mentalmente incapaz em que a sociedade burguesa mantinha a mulher, passou a ser ainda mais crucial que o demandado pela natureza que ela conseguisse um “bom marido”. Daí a exigência de paixão presente, daí a transformação da cerimônia de casamento em celebração do presente, do sucesso da mulher na “caça” de um mantenedor, não mais ocasião de compromisso com o futuro. Afinal, para um compromisso real é necessário que haja liberdade, ou mesmo opções de construção do futuro dentre as quais aquela é livremente escolhida. A única “escolha” permitida a alguém cuja racionalidade é liminarmente negada é a da emoção. Da paixão.

Daí, talvez, venha tanto a crescente importância da própria celebração do matrimônio – ou seja, da cerimônia e, frequentemente, de uma lauta festa, mesmo nas classes menos favorecidas – e o crescimento de exigências na forma matrimonial por parte da Igreja. Afinal, como se pode ver claramente hoje em dia nas cerimônias extraeclesiais, o que não falta às noivas é imaginação para conceber cerimônias amalucadas de celebração da paixão presente. Foi no mínimo prudente por parte da Igreja coibir os excessos imaginativos com a obrigação do uso de uma liturgia em que as escolhas são poucas e sóbrias.

Com a destruição da ordem burguesa a partir do fim dos anos 1960, infelizmente, persistiu e mesmo piorou a incompreensão do sentido real do casamento. A ideia sempre mais presente de uma celebração de paixão presente só fez se espalhar com a aceitação social do concubinato prévio ao matrimônio. Hoje em dia é apenas uma minoria que se “casa” na Igreja sem que os “noivos” estejam vivendo juntos por alguns anos. Como já escrevi alhures, a celebração matrimonial faz hoje o papel de festa de 15 anos: uma celebração da entrada na idade adulta. Espera-se até que os noivos acabem a faculdade, passem num concurso e arranjem um bom emprego, espera-se até que esteja pronta a casa, espera-se, em suma, até que se tenha uma situação de estabilidade social que deveria ser construída em conjunto já dentro do laço matrimonial.

E é aí que aparece um problema gravíssimo para a Igreja, um problema que vem sendo desprezado acintosa e regularmente. Há coisas que se pode garantir; como escrevi, é o caso da forma litúrgica da cerimônia, do conteúdo formal dos votos, e por aí vai. O que não se pode garantir, por outro lado, e de que eu diria que hoje quase se pode garantir a ausência, é a intenção dos noivos. De nada adianta repetir palavras percebidas numa leitura romântica e teatral, numa espécie de cena final de romance, sem que se tenha a firme intenção de fazer futuro afora o que se está no presente jurando fazer. O grosso, a maioria avassaladora, dos “noivos” de hoje simplesmente não se dá em casamento na cerimônia. Ao contrário: como o sentido social da festa (logo, da percepção da cerimônia por parte deles) é tão contrário ao que realmente é o matrimônio, nem mesmo gente muito ativa em suas paróquias consegue “desligar” daquela palhaçada toda e levar a sério os votos trocados.

Daí ser hoje a regra, não a exceção, que, quando se pede uma declaração de nulidade matrimonial num tribunal eclesiástico, ela seja obtida. Daí a quantidade de gente que percebe como perfeitamente correto que casais se separem ao fim da paixonite para começar de novo com segundas, terceiras ou quartas relações de concubinato, igualmente transitórias por basearem-se em condicionais de futuro e expectativas irreais de eternalização de uma paixonite forçosamente passageira. Daí a absurda extensão do termo “casamento” (e, pior ainda, da equiparação legal ao matrimônio real) a praticamente quaisquer relações de profundo afeto presente, mesmo quando são por natureza incapazes de geração de vida. E por aí vai.

Na prática, voltamos há já bastante tempo a algo tão distante da compreensão cristã de matrimônio quanto o paganismo romano, quando a esposa era – numa versão ainda pior do modelo burguês – literalmente propriedade do marido, que detinha sobre ela poder de vida e de morte. Pagãos batizados, aos magotes, enchem as igrejas para celebrar suas paixões presentes, e na prática nada mais fazem que protagonizar farsas sacrílegas. Quase nenhum, ali, realmente aceita o compromisso de abertura à vida e a indissolubilidade do laço que supostamente estariam contraindo, o que faz com que na realidade laço algum esteja sendo contraído ali. A cabeça da noiva está na decoração, nas fotos, no bolo, que sei lá eu, enquanto o noivo muitas vezes queria mesmo era estar bebendo com os amigos num bar.

De nada adianta repetir palavras percebidas numa leitura romântica e teatral, numa espécie de cena final de romance, sem que se tenha a firme intenção de fazer futuro afora o que se está no presente jurando fazer

Minha sugestão, dada a situação, é simples, simplíssima: basta retornar à situação pré-moderna, à maneira como a Igreja lidou com o matrimônio por mais de milênio e meio. O matrimônio, relembro, é contraído pela troca de votos. Pois bem: retirando-se todas as exigências disciplinares acrescidas nos últimos 500 anos, estarão casados os que trocarem votos a sério, e pronto. A organização burocrática eclesial não terá absolutamente nada a ver com o assunto. Quem quiser “casar na igreja” como parte de sua celebração de uma paixonite presente ou de suposta maturidade que arranje uma capela cenográfica ou coisa parecida. Se uma tentativa anterior de matrimônio foi ou não nula não será mais da alçada dos tribunais eclesiásticos, na medida em que sem forma necessária os únicos elementos que poderiam ser defeituosos são ou bem evidentes (a matéria, ou seja, não se tratar de um rapaz e de uma moça solteiros e capazes etc.) ou bem subjetivos (a intenção).

As celebrações de paixonites, claro, poderiam continuar. Cada louco com a sua mania. A elas poderiam até ser acrescidos ainda outros elementos, coisas ainda mais cafonas que cachorro levando as alianças ou noiva chegando de carruagem, e pronto. Que se divirtam, mas a Igreja não teria, e jamais deveria ter tido, o que quer que seja a ver com isso tudo.

Talvez assim se consiga redescobrir o que realmente é o matrimônio. Faz muita falta, hoje em dia.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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