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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Homens e animais

Cavalos da Disney

(Foto: stanbalik/Pixabay)

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Soube outro dia que noutra cidade turística dessas, como já ocorrera na nossa antiga capital imperial, proibiram as charretes que levavam os turistas a passear. Aliás, pior ainda: não só as proibiram como, tal como já ocorrera em Petrópolis, as substituíram por horrendos veículos elétricos. Mais um foco de civilização tomba diante da agressão iconoclasta dos guris de apartamento, firmemente convencidos de que os cavalos são o Mickey.

O ser humano, ao longo dos milênios, desenvolveu uma belíssima relação com vários animais, que foram ao longo do tempo ganhando a forma que hoje têm graças à simbiose conosco. É o caso dos cavalos, nobres animais que nos serviram durante tantos milênios como continuação de nossas próprias pernas. É uma relação próxima à perfeição, que foi fazendo de bichos selvagens que sobreviviam mal e porcamente no deserto nossos companheiros mais próximos depois dos cachorros. Contudo, o mesmo pessoal criado em chocadeira, habitantes de caixotes urbanos e locomovendo-se em latas refrigeradas de sinal de trânsito a sinal de trânsito, ignora tudo isso. Torturam cachorros fingindo que são bebês tão bons quanto lobos bobos; quanto aos cavalos, procura simplesmente cancelá-los.

Li outro dia sobre uma cidade no Oriente Médio em que milênios atrás se cruzavam asnos selvagens do deserto e cavalos, conseguindo daí o que então eram os melhores cavalos do mundo, vendidos para reis e poderosos em geral. Talvez os vagares da genética tenham preservado algo dos tais indomáveis asnos selvagens nos nossos cavalinhos remanescentes; não sei. Só sei que da mesa onde escrevo tenho a alegria de ver alguns cavalos pastando, felizes, alimentando-se de um mato que aos bois não interessa. Quando seus donos os chamam para serem encilhados, acorrem felizes. Querem passear, querem ser montados, ao contrário dos tais asnos d’antanho e exatamente como os cachorros se apressam a defender o dono e a casa e os gatos se aninham no colo. Não é coincidência, nem foram tais bichos achados assim na natureza. É o resultado de um processo de milênios, em que nós nos adaptamos a eles e eles a nós, para enorme benefício mútuo.

O ser humano, ao longo dos milênios, desenvolveu uma belíssima relação com vários animais, que foram ao longo do tempo ganhando a forma que hoje têm graças à simbiose conosco. É o caso dos cavalos

É uma enorme tristeza que o famigerado progresso tecnológico tenha substituído os cavalos por uma multidão de máquinas barulhentas e poluidoras, que ao capim que nasce por todo lado preferem o petróleo que tantas guerras provoca, que em vez de nascer e crescer quase por conta própria precisam ser fabricados a altíssimo custo. Mais ainda, é tristíssimo vermos bichos que tanto nos ajudaram e tanto ainda poderiam ajudar serem maltratados por quem os toma pelo Mickey. Ou por asnos selvagens. Ou por algum tipo de assombração que deveria desaparecer da vista, quiçá dando lugar a ainda mais máquinas, ainda mais poluidoras.

A ignorância santarrona dos guris de apartamento, incapazes de ver um bicho vivo sem o antropomorfizar e tê-lo pelo Mickey, decorre de uma forma particularmente patética de provincianismo. Ao provincianismo em sentido mais estrito, que faz com que o ignorante creia que o mundo todo é como as paredes de cimento que vê da própria janela, soma-se o provincianismo temporal, que faz dos tristes tempos em que vivemos não só a régua pela qual todo tempo anterior é medido (e em geral condenado) como o melhor dos mundos. E o único mundo. Nas raras ocasiões em que o provinciano temporal sabe algo de qualquer outro tempo ou lugar, tamanho horror o toma que o faz crer que é sujo e feio tudo que não seu apartamento em que água fedendo a cloro sai de torneiras tão caras quanto descartáveis. Tudo “lá”, fora do pouco que conhece, é malvado, inferior e insuportável.

Costumo apontar que um adulto aleatório de até a virada do século 19 para o 20, transportado magicamente a qualquer outro período da história, seria capaz de se virar. Estranharia a língua, muitos dos costumes, as roupas, e por aí vai, é verdade. Mas saberia fazer fogo, montar um cavalo, caçar um bicho, ferver água, fazer uma comida. Já a versão extremada do provinciano de nossos tempos, o lastimável guri de apartamento, não sabe nada e nunca viu nada, ainda que esteja firmemente convencido de conhecer e poder julgar a tudo (e tudo condenar) a partir dos pixels que constituem praticamente toda a sua experiência de vida.

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Numa cidade perto de onde moro ainda há charretes. Poucas, infelizmente; ainda que frequentemente se possa ver um ou dois cavalos parados à porta do mercado, o grosso das charretes é coisa para passear turista. Há ainda algumas charretinhas puxadas a bode para levar a passear os filhotes de turista, em sua maioria do tipo que, ao ver uma galinha, apontaria, pasmo: olha, mãe, uma Knorr!

Pois imagine meu bom leitor que outro dia me caiu às mãos um folheto publicado por um movimento anticharrete local. Provavelmente coisa de guris de apartamento, gente que se aposentou do cimento e veio atrapalhar a vida de quem teve criação mais saudável. Nele, uma foto de um bodinho com o pescoço esticado, tentando puxar com a língua uns matinhos da praça, era apresentada como prova evidente de que os bodes – o Mickey – estariam sendo torturados por gente malvada ao serem atrelados a charretinhas. Realmente, quem não se indignaria ao ver o pobre Mickey reduzido a besta de tração?! Ou ao vê-lo tentando arrancar matinhos com a língua, coisa que para tão sagaz e antropomórfico camundongo indicaria a mais negra degradação? Já os bodes, bom, quem quer que já tenha convivido com eles (fora de uma loja maçônica; lá não sei como se comportam) sabe que comem tudo. Com fome, sem fome, gostoso ou evidentemente indigesto, tanto faz: bodes vivem para comer, e se não se cuida comerão tudo o que virem pela frente. Inclusive, claro, os matinhos dos canteiros e qualquer lixo que lhes caia ao alcance da língua esticada. Só o que a foto provava era que o bode era um bode de verdade, não o Mickey.

Mas é essa a visão de mundo que orienta os ultraprovincianos guris de apartamento em sua iconoclastia desenfreada, em sua guerra contra tudo o que é humano. Afinal, é humano conviver com os bichos que os milênios fizeram nossos parceiros na luta pela sobrevivência, tanto quanto é desumano querer substituí-los por máquinas, como se já não houvesse máquinas demais ao nosso redor. Para piorar a situação, o que eles geralmente buscam, além do fim dos cavalos, bodes e outros bichos legais, é substituí-los por máquinas elétricas. Outra santarronice chatíssima, que faz com que uns poucos privilegiados possam posar de santos do ambientalismo por terceirizarem a geração da muita energia que consomem para ir à esquina ao locomover-se em máquinas cuja produção demanda uma devastação ambiental inimaginável a um fabricante de charretes.

Substituir charretes por porcarias elétricas dentro de cidades é de uma imbecilidade ímpar. O certo seria fazer o contrário, e pelo menos no centro das cidades turísticas proibir automóveis e quetais e incentivar a tração animal

O pior é que, como de costume, a demanda santarrona pela multiplicação das máquinas elétricas de levar preguiçosos à esquina surge em toda a sua força bem na hora em que se desmontam as linhas de abastecimento que tornaram barato destruir tudo mundo afora para jogar mais tralha no lixão após uma breve pausa no bolso dos consumidores. Se já é caro hoje em dia montar uma trapizonga elétrica, a tendência é que tudo fique ainda mais caro – inclusive sua manutenção – com as disrupções do comércio internacional que já começaram e tendem a piorar muito.

Fico até triste que isso ocorra antes que ficassem mais baratas as baterias de lítio, porque eu mesmo queria me unir ao clube dos transportados por motores elétricos. A contragosto. Ocorre que os poucos quilômetros da estrada que me leva de casa à cidade mais próxima não têm acostamento, o que faria tremendamente perigoso locomover-me numa charrete, a opção mais barata, ecológica e inteligente. A chance de tomar um carro, moto ou caminhão nas costas numa curva dessas é grande demais. Como tenho geração elétrica própria, a segunda melhor opção seria um veículo elétrico, pequeno o bastante para que nele coubesse minha cadeira de rodas (igualmente elétrica) e não muito mais, mas capaz de mover-se numa velocidade que não me expusesse tanto a um acidente. Melhor que gastar um monte de combustível para carregar para todo lado uma poltrona e um sofá perfeitamente dispensáveis, como sou hoje forçado a fazer, mas muito pior que uma charrete.

O motor elétrico só faz sentido para mim, contudo, porque o sequestro por máquinas rápidas e mortíferas da curta estrada que regularmente percorro na prática a fecha aos meios de transporte mais humanizados e sensatos. Substituir charretes por porcarias elétricas dentro de cidades, como querem os ultraprovincianos, é de uma imbecilidade ímpar. O certo seria fazer o contrário, e pelo menos no centro das cidades turísticas proibir automóveis e quetais e incentivar a tração animal. Bondes puxados a burro seriam uma lufada de ar fresco, especialmente quando se os compara aos atuais, que bufam nuvens pretas ao pôr-se em movimento. Não só diminuiria a poluição direta (fumaça) e indireta (a devastação necessária para a fabricação de qualquer veículo automotor, elétrico ou movido por petróleo), como daria aos pobres guris de apartamento alguma chance de conhecer os bichos que tomam pelo Mickey.

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Afinal, ao contrário das fantasias do século passado, em que hoje os carros voariam e moraríamos em torres ainda mais distantes do mundo real – como os Jetsons do desenho –, o que se vê é o oposto. As megalópoles tornam-se cada vez mais distópicas mundo afora; aqui mesmo no Brasil há mais fuzis em mãos da anômica bandidagem que nos arsenais de muitos exércitos por aí. As cadeias de suprimento industrial global estão se desmanchando, sendo a guerra em curso apenas um dos muitos mecanismos de sua dissolução. As porcarias ainda vomitadas aos magotes pelas indústrias têm qualidade cada vez pior, e há mesmo quem diga que seríamos hoje incapazes de produzir máquinas complexas e duráveis como as produzidas em décadas passadas.

Já os bichos com quem desenvolvemos tão ricas relações continuam disponíveis, por menos que isso agrade a quem os toma todos pelo Mickey e se revolta ao vê-los agindo e sendo tratados como bichos em vez de tomando chá com o dedinho levantado com o Pateta e o Pato Donald. São essas relações simbióticas que permitirão à raça humana persistir após o fim desta sociedade, exatamente como nos permitiram persistir e mesmo prosperar ao fim de cada sociedade anterior. As sociedades nascem e morrem, as pessoas nascem e morrem, mas persistem as relações entre o gênero humano e os tantos bichos com quem evoluímos (e que muito evoluíram em nossas mãos; vacas e galinhas não sobreviveriam sem nós). Tais relações devem ser incentivadas e auxiliadas, não “canceladas” por gente incapaz de entender que a artificialidade em que vive é coisa tremendamente passageira, um modo de vida que há de ter durado tão pouco que talvez seja ignorado pelos livros de história de um futuro mais distante.

Sem que vejamos e tratemos os bichos como bichos, não temos como nos enriquecer com sua convivência; já eles simplesmente não têm como sobreviver com saúde e dignidade se não o fizermos. E, convenhamos, bicho é tudo de bom.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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