O diplomata português Bruno Maçães fala já há alguns anos da “ascensão do estado-civilização”, em substituição à fracassada tentativa moderna de estabelecer estados nacionais. É uma percepção brilhante de nosso irmão lusófono, e a guerra do momento pode perfeitamente ser lida por este prisma. Não se trata, para o autocrata russo, apenas de afastar a Otan da vizinhança. Provavelmente é muito mais importante para ele não apenas proteger os russos que vivem em território ucraniano, como também exaltar e reverenciar o mito de os famosos “rus de Kiev” terem dado origem a uma civilização eslava de que os russos (e ucranianos) seriam parte. Tal civilização, para Putin, deve estar unida.
Daí, por exemplo, a concessão de passaportes russos aos membros do cerne russo da civilização eslava que não habitam na Rússia propriamente dita. É o caso de grande parcela dos habitantes do Donbass e da “Novorrússia”, a área da atual Ucrânia situada às margens dos mares Negro e de Azov. Não se trata nem de gente nascida em território russo nem de filhos de cidadãos russos, como seria o caso nos agonizantes estados-nação; são, sim, inegavelmente, membros duma civilização, duma cultura russa. Do mesmo modo, os próprios ucranianos – bem como os bielorrussos – são para o ditador membros da mesma civilização, ainda que membros periféricos, fronteiriços. Daí a sem-cerimônia com que ele manda tropas para o que indubitavelmente percebe como uma ação policial interna, e ao mesmo tempo a preocupação em dominar as áreas sem destruir mais que o estritamente indispensável do ponto de vista tático. Aliás, a proporção de policiais por habitante em Nova Iorque é mais de duas vezes a de soldados russos por habitante na Ucrânia.
Do mesmo modo, a Índia tem um sistema facilitado de obtenção de cidadania indiana para paquistaneses e bengaleses que não sejam muçulmanos. Mais uma vez, o critério não é nenhum dos “clássicos” da modernidade, sim o de pertencimento a uma mesma civilização – no caso a hindu. A China arroga-se o direito até mesmo de sequestrar em qualquer parte do mundo e conduzir para seu território para julgamento pessoas de ascendência e cultura chinesa cuja atuação política ou intelectual esteja incomodando o Partido Comunista. Mesmo que nem elas nem seus pais tenham sequer pisado em algum momento no território da República Popular da China, o fato de elas serem membros da mesma civilização as torna, aos olhos dos órgãos de repressão chineses, “responsabilidade” do governo chinês.
É pelo que acabo de expôr que jamais engoli a inserção da África do Sul nos BRICs. Tanto o Brasil quanto a Rússia, a Índia e a China – os BRICs originais – têm uma cultura de base (uma “civilização”, para Maçães) independente das fabricações da modernidade. Em outras palavras, soçobrando a modernidade os BRICs continuam relativamente intactos. A África do Sul, por outro lado, é uma tremenda confusão de tribos, dentre as quais duas compostas de gente de ascendência europeia. Nenhuma das tribos tem uma história longa na região, e nenhum mecanismo de convívio pacífico e respeitoso entre elas existe.
Vou ainda mais longe: o que é da Europa, dos países anglos, da África, do Oriente Médio, e da América espanhola? A Europa é quem mais sofreu com a modernidade, por uma razão simples: foi das gambiarras com que se tentou impedir seu esfacelamento total após a insurreição protestante no Norte semisselvagem que surgiram os conceitos de base da modernidade. Criou-se lá o delírio de uma estrutura de estado supostamente aplicável a qualquer cultura, em qualquer parte do mundo. Lá ainda surgiu o que provavelmente será estudado no futuro como a inversão de valores mais antinatural da história humana: a substituição da religião pela burocracia estatal ateia como ordenador moral.
Todas as reviravoltas dos últimos 500 anos de história europeia acabaram substituindo mal e porcamente o elo central de união da Europa – a religião católica – por uma abstração burocrática supostamente universal. A “moralidade” do ente de razão que se tentou e tenta ainda impôr, todavia, é apenas uma versão aguada, desenraizada e já tresandando da moralidade cristã de origem. Ao desconectar a moral da religião, colocando aquela nas mãos dos legisladores e esta no foro íntimo, fez-se com que a moral supostamente universal da modernidade pudesse mudar ao sopro do vento, por vir de cima, pela pena dalgum político ou burocrata.
É o que levou, por exemplo, a substituir a antiga criminalização da sodomia por sua celebração orgulhosa e equiparação ao casamento. Sendo a tal “moralidade” sempre-cambiante supostamente universal, contudo, tem-se atualmente os EUA a tentar impôr a versão atual dela mundo afora, ao ponto de hastear bandeiras de arco-íris invertido em suas embaixadas na Europa oriental. Seria engraçado, se não fosse trágico, perceber que a reação americana ou europeia à lei natural que até poucas décadas atrás respeitavam é exatamente a mesma reação dos ingleses vitorianos ao ritual indiano de assassinato e queima de viúvas. Como num sistema operacional, atualizações quase diárias das fantasias pseudomorais modernas são necessárias; o que ontem era obrigação hoje é crime, e vice-versa.
Lá ainda surgiu o que provavelmente será estudado no futuro como a inversão de valores mais antinatural da história humana: a substituição da religião pela burocracia estatal ateia como ordenador moral
A ideia moderna era justamente impor um “sistema operacional” supostamente civilizante por toda parte. O que aconteceu na prática foi a dissolução da civilização cristã na Europa, substituída primeiro por nacionalismos assassinos e depois pelo internacionalismo regional da União Europeia, cujos burocratas decidem de Bruxelas a vida de todo mundo. A perda civilizacional foi tão grande que os europeus pararam de reproduzir-se, passando a ter de importar trabalhadores de outras civilizações e – claro – surpreendendo-se quando os estrangeiros se comportam de acordo com as próprias tradições. Em outras palavras, a Europa cometeu suicídio, ou “civilizaçãocídio” ao trocar a própria civilização cristã pela fantasia moderna. Perdeu o que tinha e não ganhou nada.
Não se conseguiu, mesmo por ser absurda a ideia moderna, impor o sistema alhures, com a triste exceção da povoação genocida pelos ingleses dos atuais EUA, Canadá, Austrália e Nova Zelândia. Os cinco anglos, ou “Cinco Olhos”, são a versão mais pura da fantasia moderna, e talvez neles (só neles) se possa dizer haver efetivamente algo próximo a uma “civilização moderna”. Seria uma “civilização” guerreira, agressiva e genocida, sempre a fazer em escala gigante o que os revolucionários franceses tentaram fazer na Vendeia.
O problema, entretanto, é que a evidência do fracasso da universalidade do “sistema operacional” moderno acaba evidenciando também seu fracasso nos lugares onde uma “formatação” (leia-se genocídio dos habitantes originais) permitiu sua imposição como em tábula rasa. Nisso eu discordo de Maçães, que é otimista em relação aos EUA. Acho bastante improvável que possa sobreviver um país moderno em que a própria moralidade kantiana moderna – pela qual quem pensa diferente é necessariamente ou burro ou malvado – causou um acirramento de ânimos tamanho entre os próprios cidadãos que uma metade se recusa a falar com a outra. O caminho que me parece mais provável é o fim da federação, com os estados finalmente desunidos tentando manter cada um a própria versão da modernidade, matizada pelas culturas locais. Até mesmo a Austrália, que parecia estar funcionando direitinho, assumiu as formas mais degradantes da modernidade quando seus governantes se arrogaram poderes ditatoriais durante a pandemia. O Canadá parece estar indo pelo mesmo caminho. A Inglaterra já se havia tornado um gigantesco Big Brother anarcotirânico, com todos os espaços públicos vigiados por câmeras e um nível inaudito de violência urbana.
A pobre África, com suas fronteiras traçadas em linhas retas sem levar em conta os povos, é a segunda maior vítima da modernidade; a primeira, claro, são os povos chacinados na construção dos países anglos. A forma que vem tomando a gradual inserção da África na Nova Rota da Seda chinesa, como colônias de exploração hipertecnológicas, pode acabar por levar a reconfigurações de poder em que finalmente as fronteiras artificiais impostas pelos colonizadores europeus venham a ser substituídas pelas fronteiras tradicionais entre povos. Seria bom, mas – como tudo no que diz respeito àquele sofrido continente – não há como ter certeza de nada.
Como num sistema operacional, atualizações quase diárias das fantasias pseudomorais modernas são necessárias; o que ontem era obrigação hoje é crime, e vice-versa
O Oriente Médio, também vitimado por fronteiras artificiais, tem todavia – ao contrário da África subsaariana, e em união com a mediterrânea – a civilização muçulmana a proporcionar uma base de união. Ainda que tradicionalmente divididos entre sunitas e xiitas, seus habitantes têm mais em comum que de diferente, e o Irã – que é persa, não árabe – vem desempenhando um papel central na união da região pela religião. Os poderes sunitas modernos, contudo, não têm como desempenhar papel importante no momento, por estarem amarrados numa dupla dependência, em que têm de agradar tanto aos xeques salafistas mais radicais quanto aos EUA. A perda do apoio americano – que é bastante provável – pode facilmente levar a reviravoltas políticas tremendamente inesperadas, causadas ou dando causa a intervenção iraniana direta ou indireta. Em todo caso, é fácil prever que a região terá como se unir pela religião. Já o Estado de Israel, enquistado ao modo e no mesmo local que os Estados cruzados medievais, está no lugar errado e na hora errada. No lugar errado pelo valor simbólico de Jerusalém para os maometanos, e na hora errada porque é impossível fazer hoje a “tábula rasa” genocida que fizeram as colônias de assentamento anglo no Século XIX. Quanto maior a união muçulmana maior o perigo para Israel.
Aqui no fim do mundo as perspectivas são boas. Tanto a América espanhola quanto o Brasil conseguiram em grande medida manter a cultura pré-moderna, e a transição para uma união – imagino que bastante descentralizada, por aqui – civilizacional não há de ser indolor, mas tampouco será um fim-do-mundo como na Europa atual.
O que é risível, no momento, é o que resta das pretensões globalistas modernas. Elas dependem da capacidade de controle interior dos mesmos estados nacionais ora em decadência. A união de tais controles levaria a um controle global, uma imposição global do sistema que acabou com a Europa, a América do Norte e a Oceania d’antanho. Só há um “probleminha”: sem a capacidade de controle de massa dos estados nacionais não dá nem para começar, ainda que possam ter algum sucesso iniciativas localizadas, especialmente nos países anglos e norte-europeus. No resto do mundo, contudo, a nova situação tende a provocar tremendas reconfigurações sociais, infensas ao besteirol globalista hipermoderno por pura falta de interesse no que percebem, com razão, como maluquice dos anglos. Os muçulmanos, até por questões culturais, provavelmente continuarão as guerras com que sempre expandiram ou tentaram expandir seu domínio em todas as suas fronteiras com outras culturas. Contudo, a necessidade de retornar ao pré-moderno e à base civilizacional real (que inclui, claro, a religião majoritária local, donde há de vir a moral) provavelmente impedirá na maior parte dos casos a expansão muçulmana. É mesmo possível que em alguns lugares (as Filipinas, por exemplo, bem como Burma) ocorram guerras religiosas intestinas visando extirpar os focos muçulmanos.
O mais importante, contudo, é dar-se conta de que não se trata de Estados modernos (com divisão tripartite de poderes e demais partes do suposto “sistema operacional”) dominando territórios civilizacionais antes que nacionais. Ao contrário, é o abandono dessa fantasia. Duma certa forma, acaba por ser um retorno a modelos tradicionais de cada cultura, alguns descentralizadores (Brasil, Índia) e outros autocráticos (Rússia, China). As fronteiras reais, tradicionais, em que a mistura de civilizações ocorre gradualmente ao longo duma faixa de terra bastante larga e o comércio flui mais ou menos livremente, deve acabar por substituir as barreiras abruptas em que se demanda passaportes e vistos impostas por toda parte no século passado. A grande questão é o que cada povo tem para se amparar, a rede de segurança civilizacional que o possa preservar de consequências drásticas da dissolução da pseudo-ordem moderna. Abraçar a própria cultura depende de que se tenha uma cultura a abraçar, uma cultura que possa proporcionar todo um sistema de moral, comumente aceito, quando ocorra a derrocada final das instituições de manutenção da pseudomoral artificial moderna. Nós e os demais BRICs o temos, e é isto que nos prepara para uma transição (na medida do possível) tranquila. Temos ainda a imensa vantagem de estarmos no fim do mundo, no local com menor importância estratégica e geopolítica no planeta inteiro, o que também nos assegura uma boa medida de paz.
Agora é esperar pra ver.
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