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Exatamente um século atrás nasceu uma grande brasileira. O ar que respirou quando do proverbial tapa no traseiro com que saudamos os recém-chegados a este vale de lágrimas, todavia, não foi o nosso morno ar tropical. Ao contrário, a magnífica Clarice Lispector, certamente muito bem situada entre os maiores escritores do século passado, primeiro encheu seus pulmõezinhos com o frio ar invernal europeu. Ela nasceu numa cidadezinha perdida no interior da Ucrânia, um daqueles países europeus que tiveram o azar de estar situados entre nações guerreiras muito mais fortes que eles. Segundo ela, todavia, aquele solo ela nem sequer pisou, por ter de lá saído ainda bebê de colo. Considerava-se pernambucana: brasileira da gema, ser tropical abençoado por Deus e bonito por natureza.
Ela é um exemplo entre inúmeros da nossa vocação de acolhimento. Só para ficarmos nas letras e naqueles que fugiram dos genocídios do século passado na Europa Oriental, por exemplo, temos também o monumental Paulo Rónai. Clarice e Paulo seriam o orgulho de qualquer país, mas fizeram-se nossos. Afinal, gravadas no sangue de tantos que vieram dar a estas férteis terras, cristãos e marranos, judeus e pagãos, estão as palavras do Criador: “Não serás molesto ao estrangeiro, porque vós sabeis o que é ser estrangeiro, pois que também fostes estrangeiros na terra do Egito” (Êxodo 23,9). E, realmente, não somos molestos aos estrangeiros. Ao contrário: nós os acolhemos e os tornamos brasileiros. Esta nossa bela vocação é ainda mais importante no momento histórico atual, em que as guerras e a pobreza, somando-se à facilidade tecnológica do transporte, levam tantos a abandonar suas terras ancestrais.
Ninguém abandona por querer os túmulos dos pais e avós; ninguém se vê forçado a aprender nova língua e nova cultura, perdendo todas as amadas referências em que foi criado, por mero gosto. Quem o faz o faz forçado. E, mais ainda, quem o faz não é exemplo da média de sua terra, e sim de sua elite. Não se trata, claro, de uma elite financeira, posto que o vil metal tem o dom de facilitar tremendamente a sobrevivência, mesmo em tempos de guerras e pestes. Trata-se daqueles que têm a coragem de decidir sair, deixar tudo para trás, abandonar as raízes em busca de terras novas onde possam dar melhores frutos. Trata-se daqueles que, tendo tido a coragem de decidir, têm a habilidade de conseguir fazê-lo. São, em suma, os melhores que deixam suas terras, para prejuízo do país de origem e enriquecimento do Brasil.
Não somos molestos aos estrangeiros. Ao contrário: nós os acolhemos e os tornamos brasileiros
E foi assim com Clarice, née Хая Пинхасовна Лиспектор (Chaya Pinkhasovna Lispector). Das estranhas letras do alfabeto de São Cirilo ao tropicalíssimo “Clarice”, passou toda a sua família pela perigosa aventura de deixar a então quase selvagem Europa Oriental para vir ter ao Novo Mundo. Sua primeira opção para “fazer a América” era os Estados Unidos, mas só o que conseguiram foi o Brasil, para nossa sorte. De mascate a fabricante de sabão doméstico, seu pai fez de tudo para criar a familiazinha de exilados no quentíssimo Nordeste brasileiro, impossivelmente distante de sua Ucrânia natal. De início ainda ligados à terra e à religião antigas, Clarice veio a aprender hebraico e ídiche num colégio judaico no Brasil, ainda criança. Será que o conhecimento das sintaxes variadas de três línguas tão díspares do português quanto o russo falado em casa, o ídiche e o hebraico lhe deram algo a mais na maneira de lidar com a última flor do Lácio? Não sei. Mas o fato é que deste caldo nasceu nossa grande escritora.
Clarice, a pernambucana, soube escrever sobre o Brasil de uma maneira tão verdadeira que muitos de seus personagens nos provocam uma dor que vem do reconhecimento da face oculta da brasilidade. Como, na nossa cultura, só é permitido “falar mal” do Brasil aos brasileiros, inclusive, esta é uma prova a mais de sua brasilidade completa, como se isso fosse de algum modo necessário. Sua Macabéa, d’A Hora da Estrela (aliás, magistralmente interpretada no cinema por Marcela Cartaxo), faz parte daquela classe de “invisíveis”, mais tarde revelada em estudos sociológicos como o do professor doutor da USP que, ao fazer-se faxineiro, era ignorado pelos próprios colegas e alunos.
Quando se pensa que em tantos lugares, inclusive nos EUA para onde a família Lispector tentara primeiro fugir, as pessoas perguntam aos estrangeiros “o que você veio fazer aqui?”, enquanto no nosso acolhedor Bananão nós lhes damos as boas-vindas, podemos perceber o quanto somos acolhedores. A nenhum brasileiro digno deste nome ocorreria perguntar a alguém o que veio fazer aqui, pois a resposta já nos é evidente: viver. Amar. Trabalhar. Entrar na roda de samba. Ser, em suma, gente. Aliás, é até curioso como em grande medida os estrangeiros mais “raros”, mesmo nos grandes centros, são tratados de forma até mesmo superior aos nativos. É muito mais fácil para um rapazola ou mocinha estrangeiros fazer amigos no Brasil que para um brasileiro nas terras de origem lá deles. E, mais ainda, é-lhes mais fácil fazer amigos que para os próprios brasileiros, pois sua condição de gringo os torna de certa maneira companhias “chiques”.
A bendita mestiçagem entre as tantas etnias que vieram dar a estas bandas, ainda por cima, faz com que não exista uma “cara de brasileiro”. Pode-se ser brasileiro branco azedo, preto retinto, japonês, inca, o que for. E sempre se é brasileiro, mesmo que não se tenha nascido aqui. Não existe aqui, como há nos EUA, a categoria do “hifenado”: italiano-americano, alemão-americano e outras categorias que fazem com que a lembrança duma origem remota da família persiga por gerações os portadores de sobrenomes “esquisitos”. Aqui a Clarice é brasileira, o Paulo Rónai é brasileiro, e o nome italianésimo do paulista nato Menotti del Picchia não levaria ninguém a querer pespegar-lhe um hífen na brasilidade.
Acolhemos, e neste cadinho de culturas e etnias geramos excelentes sushimen cearenses. Casam-se e vivem felizes o negro recém-chegado da África e a japonesinha de segunda ou terceira geração. O preconceito que haja é o importado das terras de origem, não algo presente sistemicamente na sociedade como um todo. Nas minhas tantas décadas de professor, sempre tive o prazer de ver as combinações mais improváveis de sobrenomes nas chamadas de turma, coisa em que aliás ninguém nunca nem repara. Somos inifenizáveis, se me permitem o neologismo.
Minha pátria é minha língua, disse o poeta, e é a adoção da língua, e mesmo a maestria dela da parte duma Lispector ou dum Rónai que, em grande medida, os faz brasileiros. Nossa norma culta, como sempre explico a meus pobres aluninhos, é o que une o Oiapoque ao Chuí, o que permite que a pernambucana Clarice e o gaúcho Verissimo possam estar lado a lado nas estantes duma livraria, como (boa, excelente!) literatura brasileira. A alma brasileira, em enorme medida, manifesta-se na língua. Sim, claro, é evidente que, sendo eu um vendedor de palavras usadas, tendo a dar mais atenção a isto que a média. Mas é algo que se pode perceber por toda parte, algo que realmente gera a brasilidade.
Clarice, a pernambucana, soube escrever sobre o Brasil de uma maneira tão verdadeira que muitos de seus personagens nos provocam uma dor que vem do reconhecimento da face oculta da brasilidade
Isto, claro, não significa que se possa, muito menos que se deva, menosprezar algumas riquezas linguísticas brasileiras diversas do português que acabam, pelas reviravoltas da história, sendo contudo peculiaridades linguísticas nossas. A segunda língua mais falada no Brasil, por exemplo, é o talian, uma mistura de dialetos italianos, todos já desaparecidos da península de origem. Logo após a Segunda Guerra, houve na Europa semidestruída uma criminosa transferência forçada de milhões de pessoas das terras que seus ancestrais habitavam havia séculos, para que cada território nacional fosse povoado única e exclusivamente pela gente daquela língua e cultura. Um dos resultados daquela tragédia, em que a Pomerânia passou das mãos de alemães à de polacos, é que se fala apenas aqui, também, o dialeto pomerano do alemão. Mas o pomerano e o talian misturam-se ao português e o enriquecem, como o russo infantil e o hebraico e ídiche escolares de Clarice deram-lhe uma base para voos maiores no nosso rico vernáculo.
Cada um que chega, cada família que desembarca nestas terras abençoadas, tendo passado por aventuras sem fim e sofrido na carne o preço da dura fuga rumo a terras de paz, traz para o Brasil um enorme manancial de riquezas culturais e de disposição para o trabalho. Nossos companheiros de continente ou bem converteram enormes estruturas político-sociais preexistentes (caso da América espanhola) ou bem chacinaram todos os nativos para criar uma semelhança de utopia na tábula rasa resultante do genocídio (caso dos EUA). Já aqui tínhamos um punhadinho de gente perambulando em tribos pequenas pelas matas, e tudo teve de ser feito do nada. Os primeiros casais legitimamente brasileiros eram, via de regra, compostos de um rapaz português e uma moça índia. Isto, ensina Gilberto Freyre, é o que nos poupou das exigências domésticas femininas que fizeram, por exemplo, os primeiros americanos alimentar-se de feijão em lata morando na costa onde há as melhores lagostas do mundo. Aqui o português aprendia pela língua do amor a dormir em rede e a comer aipim em vez de pão, e a índia se vestia e olhava o movimento da rua escondida atrás de uma mediterraníssima treliça na varanda, orgulhosa de seu marido disposto e audaz. Afinal, se não o fosse não teria vindo.
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E desta mistura de todo tipo de gente criou-se uma cultura de abertura ao outro, de acolhimento, em que qualquer que seja a origem da pessoa ela se torna brasileira quase que ao desembarcar. É isto o que faz do Brasil Brasil, e é isto que nos dá nossa enorme capacidade de acolher e incorporar, para riqueza de todos, essas elites da audácia que conseguem fugir dos pesadelos de guerras e ditaduras para vir dar aqui em Pindorama. Somos todos índios, pretos, portugueses, árabes, judeus, japoneses, alemães, polacos, italianos, o que for, justamente por sermos brasileiros, sem hífen algum. E mais: por sermos terra de dimensões continentais, por sermos tanta gente tão bem misturada, podemos acolher e incorporar no nosso cadinho cultural uma quantidade de gente que seria impensável receber em outros lugares. Se a Europa, dalguma forma, resolvesse livrar-se de seu grave problema de enclaves exóticos exportando-os todos para cá, bastaria dispersá-los por nosso vasto território para que a primeira geração a nascer aqui já fosse totalmente brasileira. Sem hífen, sem enclaves, sem fantasias multiculturalistas. Sabemos receber, sabemos acolher, e sabemos tornar brasileiro quem aqui vem dar.
Esta é provavelmente uma das maiores riquezas de nossa terra, e deveríamos todos nos dar conta disso; afinal, todo mundo que está aqui tem parentes que vieram de toda parte. Poucos e raros são os que só têm ascendentes dum lugar determinado. A maior parte da ascendência do Neguinho da Beija-Flor é europeia, ora bolas. E, convenhamos, só no Brasil encontram-se lindas japonesinhas com um corpão-violão que só pode ter origem africana. É este o nosso talento, é esta a graça que Deus nos deu e que o anjo da guarda de nosso país sorri ao ver ser abraçada. Abracemo-la, e alegremo-nos por termos e sermos tantas Clarices, tantos Rónais, tão brasileiros.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos