Na virada do ano ocorreu o que pode um dia ser visto pelos livros de História como o acontecimento que veio a impedir uma guerra atômica: Kim Jong-un, o ditador comunista da Coreia do Norte, declarou-se interessado em conversar com seus compatriotas sul-coreanos. Parece até que ele está pensando em mandar atletas para os Jogos Olímpicos de Inverno que ocorrerão em fevereiro na Coreia do Sul. É uma excelente notícia, mais ainda depois da escalada de insultos infantis e bravatas de lado a lado que caracterizou o estranho “diálogo” público entre o ditador norte-coreano e o presidente americano no ano passado.
A história do século passado, com sua divisão binária entre Estados comunistas e capitalistas, vitimou a Coreia mais que quase qualquer outro país. Aquela península, do tamanho do Paraná, pendurada fatidicamente entre a enorme China e o belicoso Japão, sempre sofreu com as vicissitudes da história, sendo atacada e invadida regularmente por um de seus poderosos vizinhos. No século passado, com a selvageria que o caracterizou, o norte da península foi massacrado pela guerra entre China e Estados Unidos que se desenrolou em seu território. Todas as edificações foram destruídas por bombardeios, sem que sobrasse nem sequer um banheiro da roça em pé. Um em cada cinco habitantes foi morto. A península foi dividida em duas, e cada uma das partes sujeita a uma experiência social tão diferente que mais parece que se está tentando fazer uma experiência científica com aquele pobre povo.
A sociedade coreana, desde a Idade Média, é fortemente orientada pelo pensamento do filósofo chinês Confúcio. Do culto dos ancestrais e à família à preponderância do social sobre o individual e o valor altíssimo dado aos estudos, a filosofia confuciana, por vezes elevada mesmo ao status de religião de Estado, criou na Península da Coreia uma das sociedades mais civilizadas e socialmente unidas de todo o planeta. A preponderância confuciana do social sobre o individual é tamanha que se usa, na língua nacional coreana, os pronomes “nós” e “nosso” na maior parte dos casos em que, em português, se diria “eu” ou “meu”. O país está sempre acima da família, que está sempre muito acima do indivíduo. Compete a cada pessoa honrar a memória de seus ancestrais e crescer, especialmente pelo estudo, de forma a honrar e orientar a própria família. Os idosos são respeitados e venerados, e o comportamento antissocial leva inexoravelmente ao ostracismo.
Pois a esta riquíssima cultura foram impostas duas formas exóticas de viver, uma no norte e outra no sul. No norte, dominado pelo comunismo, o coletivismo foi exacerbado ao ponto da aniquilação do indivíduo. São famosos os espetáculos em que os cidadãos, segurando placas coloridas, formam imagens gigantescas com elas. A Coreia do Norte é o país que reduz os cidadãos a pixels, a meros pontos de uma tela. Já na Coreia do Sul, o experimento é o oposto: uma forma de capitalismo selvagem ultraindividualista e competitiva, por longos anos governada também ditatorialmente, faz do progresso econômico individual a medida do homem.
Em ambos os lados, entretanto, a presença cultural do confucionismo faz com que a família ainda acabe sendo a instituição social mais importante. No sul, é a família que, unida, ajuda os jovens a estudar loucamente para os massacrantes exames que podem levar à formação superior em concorridíssimos institutos, na distorção dos ideais confucianos de amor aos estudos criada pelo capitalismo hipercompetitivo. No norte, é a família unida que consegue cavar maneiras de escapar da fome ou da morte pela mão do regime comunista. Neste, aliás, numa perversão comunista do ditame confuciano de colocar a família acima do indivíduo, quando alguém é condenado por pensar algo com que o governo não concorda toda a família é punida, seja pelo envio a campos de concentração em que os presos são empregados para trabalho escravo, seja pela pena de morte. A penalização do “culpado” sempre engloba toda a sua família, assim como toda a família ganha quando o reizinho percebe com agrado um de seus súditos miseráveis.
Esta sobrevivência cultural da importância da família ajuda também aquele povo tão genética e culturalmente semelhante, no sul e no norte, a encarar de uma certa forma como uma imensa família as vicissitudes da dupla ocupação; eles continuam, dentro de casa e na língua que falam, percebendo-se como um só povo. O encarregado sulista das negociações com o Norte é chamado “ministro da unificação”; o ditador comunista do Norte refere-se ao Sul como “nossa divisa ao sul”. Ainda que usados como cobaias sociais, este sentimento tão confuciano de formarem uma imensa família ainda une os coreanos de ambos os lados da artificialíssima divisa, traçada por um soldado americano num mapa de forma quase arbitrária, seguindo exatamente um meridiano terrestre mais ou menos ao longo do qual estavam estacionadas as tropas comunistas chinesas ao norte e capitalistas americanas ao sul num dado momento da horrenda guerra que devastou o norte da península no meio do século 20. Nada é mais artificial e inimigo às valiosíssimas tradições de um dos povos mais civilizados de uma região cuja cultura e civilização data de milênios que a separação artificial e as formas de governo e cultura impostas àquele povo, mais unido que qualquer outro na terra – com a provável exceção do japonês.
O governo sulista é um mero fantoche dos EUA. A Coreia do Sul é uma desculpa geopolítica para a colocação de enormes bases militares americanas, em que provavelmente há mesmo as armas atômicas justamente condenadas pelo papa no seu discurso de Natal. Os EUA fazem regularmente exercícios militares gigantescos em que a Coreia do Sul serve de plataforma, como se fosse um porta-aviões gigante estacionado em um ponto tão estratégico da Ásia. Os soldados sul-coreanos são apenas figurantes no show americano. A Coreia do Sul é um país ocupado por fora. Já a Coreia do Norte é um país ocupado por dentro; o avô do atual ditador foi posto no poder pelo governo comunista soviético, mas conquistou uma certa medida de independência para construir um sistema de opressão tão forte que até hoje, quase 70 anos depois, seu neto ainda controla com mão de ferro cada detalhe da vida de seus súditos.
Qualquer passo para uma reunião deste povo tristemente separado é bem-vindo. A ida de um par de patinadores norte-coreanos para os Jogos sul-coreanos pode ser o início de um degelo que leve, finalmente, à reunião daquela família tão sofrida e, quem sabe, ao surgimento de uma forma pan-coreana de governo, em que a cultura confuciana que forma uma base tão excelente possa fazer o melhor das heranças capitalista e comunista. Uma Terceira Via, baseada na força da família, sem os horrendos excessos impostos àquele povo sofrido.
Que o espírito dos ancestrais coreanos os ajude, como diria o próprio Confúcio.
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