Entre os maiores desafios do “interessante” (no pior sentido possível) tempo atual é a criminalidade: o que é a criminalidade (pergunta que também pode ser lida como “o que é o crime e quem o comete?”)? Como se poderia fazer para ao menos minorá-la? Quem deve ser o responsável por esta operação? O que deve ser feito com os criminosos? É possível fazer com que se tornem cidadãos responsáveis, abandonando a vida de crime? Caso positivo, como?
São perguntas especialmente difíceis no momento, na medida em que a criminalidade – que normalmente consistiria na obra duma ínfima minoria de loucos que não se adequariam à regra moral seguida pela maioria da população – hoje em dia só faz crescer devido, justamente, à ruptura ao menos parcial da sociedade moral, ou seja, da unanimidade na resposta às perguntas mais essenciais da existência humana, entre elas “qual é o sentido da vida?”. Uma sociedade saudável é unânime acerca da resposta a esta pergunta, havendo uns poucos que divergem, e nela a criminalidade será evidentemente baixa. Já se – como está acontecendo agora – há um número crescente de pessoas que consideram que a vida deve ser vivida “intensamente”, em detrimento de sua duração ou de outros valores, por exemplo, a coisa fica bem mais complicada.
Afinal, a vida de um traficante, dominada por trocas de tiros, invasões de favelas rivais, enormes lucros que podem ser gastos em prazeres sensíveis (roupas, mulheres, motocicletas velozes, drogas...), pode ser tida como modelar por quem considera que a intensidade da vida tem muito mais valor que a sua duração ou que a identidade do seu primeiro princípio e do seu fim último. Do mesmo modo, como apontei semana passada, quem se nega ativamente a trabalhar em prol das futuras gerações, recusando-se à tarefa essencial humana de gerá-las e criá-las, dificilmente vai trabalhar em prol de objetivos sociais de longo prazo, procurando antes maximizar o prazer durante nossa curta vida. A diferença entre as moralidades destes grupos, aliás, é de grau, não de essência.
A criminalidade hoje em dia só faz crescer devido à ruptura ao menos parcial da sociedade moral , ou seja, da unanimidade na resposta às perguntas mais essenciais da existência humana, entre elas “qual é o sentido da vida?”
Tentarei aqui responder, a partir de um prisma baseado na filosofia clássica de Aristóteles e São Tomás de Aquino, às perguntas alinhadas acima e às que delas decorrem. Antes, todavia, faz-se necessário um breve excurso histórico, para que se possa chegar a compreender como chegamos ao ponto atual. A dissolução da sociedade moral ocidental (de que somos a periferia; o “fim do mundo”, como disse o Santo Padre quando de sua eleição) é um processo em curso há cerca de cinco séculos. Primeiro, de maneira estrondosa, rompeu-se a unanimidade acerca da visão religiosa da vida e de seus corolários, como o que é necessário fazer para que se escape ao inferno, mesmo com todo mundo ainda ocupado ativamente em escapar de lá. Foi tal ruptura obra de Martinho Lutero, que ficou extremamente surpreso ao perceber que a sua interpretação assaz peculiar da Escritura, que ele julgava óbvia, só conseguiu aderentes pela força.
Em seguida, justamente devido à falta de uma visão comum de como alcançar os objetivos comuns de um sentido da vida ainda mais ou menos partilhado por todos (a salvação da alma), veio a filosofia moderna, jogando fora todo o conteúdo religioso na busca de um sentido puramente imanente para a vida. E a alma que se lascasse. O insucesso foi o mesmo, mas com a agravante de se ter, então, inventado o cientificismo, de que já tratamos neste espaço, que tenta resumir ao mensurável fisicamente a realidade circundante, tornando assim impossível toda moral. Evidentemente, tampouco funcionou. Piorou, até, num certo sentido, na medida em que as respostas a perguntas essenciais sobre o sentido da vida passaram a ser dadas por raciocínios falaciosos ao extremo, geralmente baseados em uma espécie de utilitarismo tautológico.
Por outro lado, a sobrevivência por um período ainda bastante longo (na Europa, até a Primeira Guerra Mundial; nos EUA, até a Guerra Fria; aqui, até o presente, ainda que sob assalto das cópias tupiniquins das besteiras da esquerda americana) de um relativo consenso de base religiosa permitiu que a sociedade mais ou menos caminhasse. Após as recentíssimas datas apontadas acima, todavia, o consenso desapareceu no Ocidente em sentido estrito, substituído por várias pseudorrespostas adotadas por grupelhos. Coisas que deveriam ser elementares, como a existência de Direitos Humanos, passaram não apenas a precisar de explicitação, como novas noções de quem é e quem não é humano entraram em jogo. Os judeus, para os nazistas, não o eram; os bebês ainda não nascidos, para os abortistas, não o são. E é praticamente certo que novas categorias multitudinárias de pessoas terão ainda sua humanidade negada em bloco por um que outro grupelho nas próximas décadas.
O resultado é que cada nova resposta dada à questão do sentido da vida gera, por sua vez, miríades de respostas novíssimas, muitas vezes baseadas nas mesmas ideias que geraram aquelas de que descendem, mas com um ou outro fator exacerbado. O abortismo, por exemplo, com sua negação da humanidade de uma categoria de que todos já fizemos necessariamente parte, seria impensável há poucas décadas, mas surgiu e viceja, mormente na Europa e na esquerda americana, como corolário de noções utilitaristas de uma resposta ao sentido da vida que busca apenas maximizar o prazer e os direitos e minimizar o desprazer e os deveres. Quando o prazer que se busca é o obtido como consequência de um mecanismo fisiológico cuja função primeira é a reprodução, faz-se necessário arranjar uma maneira de lidar com o fruto deste mecanismo. O aborto surge, então, como não apenas aceitável, mas necessário: para alguns chega a alçar-se a “direito da mulher”, como se todos os bebês fossem do sexo masculino e a reprodução humana ocorresse por partenogênese.
Aqui no Brasil, apesar das fortes investidas dos Onze Bátimas sobre o direito à vida dos menores dentre nós, o aborto continua, via de regra, sendo legalmente punido. Já outros crimes, inclusive crimes que a população em geral condena fortemente, como o furto, foram deixando de sofrer punição em graus apavorantes. Alguém ser preso por furto, no Brasil de hoje, é quase impossível. Quando a isto se une a premente necessidade de dinheiro vivo que acomete os viciados em drogas e a ausência de punição do porte e consumo delas, cria-se todo um ecossistema cujos habitantes vivem em função da droga, furtando para comprá-la e usando-a para ter disposição de furtar. Como os ricos podem transformar a casa numa fortaleza, mas o mais que o pobre alcança é botar cacos de vidro quebrado por cima do muro, a vítima maior da multiplicação destes novos predadores é a classe menos favorecida, que também tem menos peso político e menos chance de ser defendida pelos legisladores e juízes.
Ainda na mesma linha, os demais crimes contra a propriedade que não empregam violência física direta, como o estelionato, vêm sendo cada vez menos punidos. Os crimes violentos, como o roubo, ainda têm alguma punição, bem como o homicídio e demais crimes contra a pessoa. Toda forma de punição legal no Brasil de hoje, todavia, com a rara exceção da categoria de crimes hediondos (como se algum outro crime fosse uma fofura), só faz diminuir, devido à interação de péssimas investigações, garantismo penal e extrema generosidade na progressão de pena da pequeníssima minoria dos crimes cometidos que recebe alguma punição real. A própria categoria de crimes hediondos, aliás, é totalmente desprovida de qualquer lógica interna, consistindo antes em arrotos legislativos que em uma categoria coesa.
Como os ricos podem transformar a casa numa fortaleza, mas o mais que o pobre alcança é botar cacos de vidro quebrado por cima do muro, a vítima maior da multiplicação destes novos predadores é a classe menos favorecida
Como, assim, definir o que é um crime? Lembremos que não estou tratando de direito positivo; deixo tão desinteressante tema aos nossos milhões de técnicos em direito positivo. Refiro-me àqueles que podem se tornar advogados se passarem na prova da OAB, coisa que ocorre com menos de 10% dos formados por faculdades de Direito – cujo número no Brasil, diga-se de passagem, é maior que a soma de todas as existentes no resto do planeta, o que não me parece um bom sinal acerca da saúde de nossa sociedade. Trato, antes, da relação da sociedade com aqueles que cometem atos antissociais considerados moralmente errados e dignos de punição legal pela massa da população. Toda uma outra coisa. É tristemente comum que apenas na delegacia de polícia grupos indignados de cidadãos descubram que isto ou aquilo não é crime, legalmente falando, tamanha a distância entre a lei e a moral em nosso país.
Como escrevi mais acima, quando se tem uma quantidade relativamente grande de gente que mede a moralidade de suas ações ou, noutro sentido, dá sentido à vida a partir de critérios (por enquanto?) minoritários, esta definição fica bastante difícil. A disputa entre os que veem na intensidade com que a vida é vivida um valor e os que – talvez em número ainda menor – aderem às noções burguesas de virtude, mesmo dentro de uma sociedade mais ou menos fechada como a de uma favela, reflete-se quase todos os dias no noticiário. Algumas raras notícias pintam de dourado os poucos protoburgueses, com sua ética do trabalho e sua patética esperança de assim enriquecer, enquanto outras endeusam representantes “culturais” da adesão à intensidade predatória como sentido da vida, como os funkeiros, tentando vender a ilusão de que estes seriam apenas a versão pós-moderna da diva de ópera d’antanho.
É mais comum que a população adira ao que sobra de uma moralidade católica, baseada em virtudes tradicionais, mesmo entre os que pertencem a seitas protestantes. Creio que Weber concordaria que nossos protestantes são mais católicos que os católicos de países protestantes. O problema maior, entretanto, de tentar apontar esta visão como preponderante é que as classes médias urbanas, na razão direta de seu poder aquisitivo e, portanto, da “qualidade” do ensino perpetrado contra seus filhos, afastam-se mais e mais desta visão em prol da repetição inana da moda do momento na esquerda norte-americana. Ontem era a maconha como panaceia universal, hoje é a transgeneridade como forma de superioridade moral, e amanhã será o que o Diabo quiser.
Como, porém, felizmente o porcentual da população que pertence a estas classes é inversamente proporcional ao barulho que fazem e à sua influência política, em grande medida é possível ainda tratar como “crime”, para os fins a que me disponho aqui, o que a maioria das classes mais baixas percebe como tal: os atos contrários às virtudes católicas tradicionais, especialmente os que atentam contra a propriedade e a vida. Como se trata de uma versão meramente cultural, contudo, ou seja, nunca nem examinada nem, menos ainda, formalizada ou racionalizada, sua capacidade de manter-se contra sistemas de moralidade (ou antes amoralidade) concorrentes é bastante fraca.
Destarte, eu não saberia dizer por quanto tempo isto ainda dura, na medida em que as classes médias parecem estar dispostas a usar sua força de amplificação e repetição do discurso da mídia e da academia no sentido de envenenar a visão moral tradicional. É bem verdade que esta força, pela própria natureza dos processos sociais em curso, é bastante limitada: o discurso acadêmico, por exemplo, tem sofrido forte resistência da parte dos novos alunos de classes mais baixas que vêm adentrando em números inauditos os cursos de graduação. Ainda que sua crítica não vá muito além de condenação genérica e acusações de “falta de Deus no coração”, justamente por aderirem a um sistema tradicional de moralidade de forma meramente cultural, a quantidade pode fazer as vezes da qualidade.
Do mesmo modo a mídia vem perdendo força, com sua capacidade de determinação de moralidade diminuindo tanto pelo crescimento dos sistemas alternativos de informação (redes sociais principalmente) quanto pelo próprio distanciamento cada vez mais extremo entre os valores que ela propaga – no mais das vezes em cópia fiel dos propagados pela esquerda dos EUA – e aqueles a que a maioria da população ainda adere. Em suma, é uma situação extremamente fluida, que podemos usar no momento para tratar da questão de definição de crime, mas que não oferece qualquer garantia de manter-se como está por muito tempo.
Ao contrário do que dizem as ideias rousseaunianas que informam a maior parte das ações paternalistas das classes médias, os criminosos não são bons selvagens, ainda que seja acertado dizer que são, sim, selvagens
Quando se abre qualquer meio de comunicação mais “tradicional”, como as páginas de internet dos jornalões (sejam eles ainda impressos ou não; na verdade isto pouco faz diferença) ou os grandes portais noticiosos, chama a atenção como o que se encontra é uma versão ainda mais grosseira do que vem sendo pregado na longa ação de demolição da cultura em todas as acepções do termo. Passam por notícia longas e absurdas apologias de todo tipo de escravização aos mais baixos instintos, com o funk e congêneres sendo tratados com a seriedade pedante antes reservada ao jazz e à música clássica, os detalhes mais sórdidos e desinteressantes da vida sexual de subcelebridades merecendo textos e mais textos, a fornicação e o adultério sendo elevados a valores transcendentes e o orgasmo a direito e necessidade vital de toda pessoa, o aborto sendo tratado não apenas como um “direito”, mas como uma coisa boa em si, ao ponto de haver artigos criticando o baixo número de infanticídios em alguns estados (!), e, finalmente, a ideologia de gênero apresentada exaustivamente na forma de endeusamento de todo tipo de desajuste entre a morfologia e a aparência das pessoas. As notícias de verdade, acerca de coisas que aconteceram aqui e ali, na política ou nos faits-divers, não apenas são pouquíssimas em meio a tanta “lacração”, como raramente estão entre as mais lidas.
Como, mesmo assim, apenas um membro das classes ditas pensantes não ficaria abertamente revoltado ao ter a casa esvaziada por ladrões ou apanhar na rua, creio que possamos empregar como definição de “crime” as agressões físicas gratuitas e as que visam ganhos fáceis, bem como o furto e os homicídios de modo geral. Sendo, inclusive, os membros das classes mais baixas, via de regra, a maior parte dos criminosos (tanto por haver mais pobres que ricos como por ser muito maior dentre aqueles a diferença entre o que pode ser obtido pelo crime e pelo trabalho honesto numa sociedade em que um “teto de vidro” impede liminarmente a ascensão social pelo trabalho honesto, como a nossa), o que se acaba tendo é uma disputa em que os adeptos da intensidade como valor que dá sentido à vida são filhos e irmãos de pessoas que ainda aderem culturalmente às virtudes tradicionais, detestando a criminalidade e a considerando fruto da “falta de Deus no coração”. Os membros das classes médias e médias altas urbanas que aderem à primazia da intensidade, mesmo tendo um percurso ideológico menor a fazer, ainda são no mais das vezes pequenas minorias, pelas razões apontadas logo acima.
Quem são os criminosos, então, e o que é que os leva a este tipo de escolha? A primeira coisa que vale apontar é o erro das ideias rousseaunianas que informam a maior parte das ações paternalistas das classes médias. Os criminosos não são bons selvagens, ainda que seja acertado dizer que são, sim, selvagens. Programas paternalistas que ensinam a pichar paredes, bater tambores ou fazer cinema (coisa que só um multimilionário tem condições de fazer no Brasil, aliás) não proporcionam válvulas de escape realistas.
Do mesmo modo, as mães de criminosos não são, nunca foram e jamais serão semelhantes à revoltante retardada retratada na música Meu Guri, de Chico Buarque, burra ao ponto de não perceber nem que o filho é um monstro nem que está morto na foto do jornal. Ao contrário, até: coisa bastante comum, pelo menos no início duma carreira criminosa, que em geral inicia-se pouco após a puberdade, é a mãe ter de ser impedida pelos policiais de surrar o filho ainda na delegacia quando é chamada a levá-lo para casa por ter sido apreendido em flagrante criminal. Se voltássemos à forma antiga de punição, em que a cadeia era apenas onde o réu aguardava um célere julgamento, podendo ser condenado a chibatadas, morte ou exílio, não duvido que as mães de bandidos ficassem em sua maioria aliviadas e fizessem questão de agradecer aos chicoteadores estatais.
O criminoso, como sabe qualquer pessoa que já tenha convivido com eles, vem em dois “sabores”, com um elemento em comum. O primeiro, mais raro, é o líder. Dotado de uma certa esperteza, e por vezes mesmo de alguma inteligência, que se soma a baixíssima capacidade de empatia, o líder criminoso vê na atividade criminal a oportunidade de alcançar, mais que dinheiro fácil, mulheres e emoções baratas, alguma fama e poder. É sua única oportunidade, crê, de se tornar alguém importante. Antes mesmo dos 15 anos de idade, é comum que ele já tenha reunido ao seu redor um grupelho de bandidinhos idiotas, que o têm por exemplo e imitam todos os seus passos. Ele, por sua vez, os usa como usaria objetos descartáveis, empregando-os para benefício próprio nas nada nobres funções de boi de piranha e bucha de canhão. Alternando aleatoriamente violência e generosidade, ele deixa seus seguidores num perpétuo estado de excitação e medo que eles preferem em muito à chateação do trabalho pesado cotidiano que veem como única opção disponível. É a tal intensidade.
Os bandidinhos, que em geral seguem um líder, dificilmente conseguem por conta própria ir além dos ataques mais fáceis (assalto a velhinhas no dia do pagamento ou roubo de ferramentas em obras vazias, por exemplo, além da evidente função de soldado raso do tráfico de drogas). Sua periculosidade acaba sendo, em grande medida, uma função da periculosidade e da boçalidade do líder. Note-se que não estou dizendo que não sejam agressivos ou violentos quando agem sozinhos. Ao contrário, até: com capacidade mental mais limitada e maior necessidade de impor-se pela força às vítimas, eles muitas vezes cometem atos absolutamente gratuitos de violência sádica que seriam impedidos por pouco expedientes se o líder estivesse presente.
O líder criminoso vê na atividade criminal a oportunidade de alcançar, mais que dinheiro fácil, mulheres e emoções baratas, alguma fama e poder
Mas estes, ao contrário do líder, poderiam não adentrar a “carreira” criminosa se pudessem conseguir emoções baratas de alguma outra maneira, e podem até mesmo ser levados a deixá-la se as consequências negativas percebidas forem suficientemente fortes. Já o líder, devido ao forte componente sociopático de sua personalidade, jamais seria uma pessoa honesta, ainda que pudesse ser desonesto de maneiras legais ou quase legais (envolvendo-se em negociatas ou empreendedorismo desonesto serial, vendendo porcarias caro, e por aí vai) se visse nisso alguma vantagem.
Tendo isto em mente, podemos passar à próxima questão: como minorar a criminalidade, e a quem compete isto? A primeira e mais evidente maneira de minorá-la é fazer com que ela valha menos a pena, ou ao menos aumentar bastante o esforço e/ou o risco das ações criminosas. Os cidadãos comuns percebem isso e aumentam os muros, trancam as portas e criam cachorros no quintal com este objetivo. A sociedade como um todo, no entanto, principalmente devido às ficções rousseaunianas que informam a narrativa da mídia e da academia, o faz cada vez menos.
Como apontei acima, é quase impossível ser preso por furto no Brasil de hoje. Aliás, com a péssima qualidade das investigações criminais, ir em cana por ter cometido um crime é a exceção raríssima, nunca a regra. Mesmo os homicídios têm taxas pífias de resolução, e a não ser que o sujeito seja encontrado pela polícia sentado no cadáver com a arma do crime na mão é bastante improvável que seja condenado. E, se o for, dificilmente passará mais de cinco anos preso. O pequeno traficante até vai preso quando pego em flagrante, mas os mandachuvas do crime jamais são alcançados, ou mesmo identificados. Para piorar tudo, como o porte e uso de drogas não dão mais cadeia o mercado está sempre agitado o bastante para não ser difícil a um gerente médio do tráfico conseguir vários bandidinhos idiotas para tomar o lugar dum que tenha sido preso.
O resultado é que, na prática, é apenas a população desorganizada que tenta fazer algo para diminuir a criminalidade, ou melhor, para fazer com que o ladrão entre na casa do vizinho em vez de na dela. Se o bolsopresidente houvesse agido no sentido de suas promessas de campanha e facilitado o comércio legal de armas de fogo, talvez pudesse haver alguma diferença maior, mas infelizmente ele o dificultou em vez de o facilitar. Afinal, as ações sociais contra a criminalidade dependem necessariamente de uma mudança na percepção de custo-benefício por parte dos espertalhões que se dedicam ao crime. Enquanto a punição legal for não apenas uma rara exceção, mas também curta o bastante para ser antes motivo de orgulho que de temor por parte do criminoso, não há muito o que fazer. Até mesmo as tais chibatadas talvez funcionassem melhor.
Um rapaz mata a ex-namorada descarregando-lhe uma pistola na cabeça diante de testemunhas, e sai da cadeia antes de as colegas de turma da vítima concluírem o curso universitário; uma mulher tenta matar o marido envenenado e a perícia médico-legal o prova além de qualquer dúvida, mas ela mal esquenta uma cela; um motorista sobe na calçada e faz um strike, matando os velhinhos do ponto de ônibus, e paga uma ou duas cestas básicas. Esta é a realidade penal brasileira.
Nossas penitenciárias não levam ninguém a penitenciar-se; ao contrário, até. Elas são ambientes cuja insalubridade moral consegue o prodígio de ser ainda maior que a insalubridade física, com celas superlotadas em que apenas buscando a proteção de líderes criminosos (que não vem de graça...) um preso pode conseguir um lugar no chão onde deitar para dormir. Muitas delas são verdadeiras centrais de estelionato telefônico, coisa facílima de prevenir por meios técnicos, mas que continua a grassar como se o celular fosse tecnologia alienígena. Uma pessoa que se veja presa por cometer um crime de paixão aprende a ser criminoso na cadeia, e um bandidinho sai de lá com uma farta rede de contatos criminosos para alavancar sua carreira.
O raro criminoso que vai preso sai em tão pouco tempo que não consegue sequer se arrepender, que dirá fazer a penitência de que uma penitenciária deveria ser o lugar
Em tal ambiente é impossível tentar reeducar os bandidinhos, por ser para eles evidente que a vida criminosa vale a pena: afinal, ela vale tanto que de vez em quando o próprio Estado lhes dá um MBA gratuito em criminalidade avançada ao colocá-los por períodos de tempo curtos o bastante para que sejam razão de orgulho, não de temor, na companhia de bandidos mais “avançados” no crime, praticamente forçando-os ainda a buscar o “batismo” numa gangue! A possibilidade teórica de transformar a ralé dos bandidos em gente honesta é assim cortada pela raiz e tornada impossibilidade prática.
Enquanto isso, os verdadeiros sociopatas ganham mais e mais seguidores, controlando de dentro das cadeias enormes redes interestaduais de crime. A população abandonada pela profaníssima trindade de Estado, mídia, e academia vê-se limitada a ações extremamente pontuais visando apenas fazer o roubo ao vizinho parecer mais fácil que o roubo à sua casa, sem poder nem se defender nem (o que teria uma ação dissuasora bem maior!) fazer com que os criminosos achassem provável que houvesse alguém armado e disposto a defender-se nas casas que visam atacar.
Ao mesmo tempo, a polícia, no seu nobre afã de enxugar gelo, chega a levar várias vezes ao longo do mesmo dia um pequeno criminoso para a delegacia, vendo-o sempre sair às gargalhadas enquanto eles cuidam da papelada. O raro criminoso que vai preso sai em tão pouco tempo que não consegue sequer se arrepender, que dirá fazer a penitência de que uma penitenciária deveria ser o lugar.
Enquanto a punição legal for não apenas uma rara exceção, mas também curta o bastante para ser antes motivo de orgulho que de temor por parte do criminoso, não há muito o que fazer
A perda crescente de poder de fato das instituições legais, somada ao que venho de descrever, está levando cada vez mais a população a fazer justiça com as próprias mãos. Ainda que isto possa levar, em algum momento, a fazer com que a vida do crime não pareça mais tão interessante assim, é garantido que inocentes sejam mortos e que a recuperação dos que dela são passíveis não ocorra. Não é à toa que a Igreja, na Inquisição, criou o processo legal com garantia de contraditório para diminuir as injustiças cometidas por tribunais seculares não muito diferentes das multidões de linchadores de hoje.
A função de julgamento, punição, e – quando possível – recuperação de criminosos deve necessariamente ser um esforço comum e organizado de toda a sociedade; em nossos tempos, isto pode ocorrer com cadeias humanizadas e penas longas, que façam com que seja possível apontar aos criminosos presos a superioridade da vida honesta. Como está, é simplesmente impossível que haja alguma melhora sistemática.
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