Uma das características mais patéticas da arrogância cientificista é a mania de achar-se capaz de entender a ordem da Criação. Vale lembrar, claro, que cientificismo não é ciência. Muito pelo contrário, aliás. Cientificismo é a mania de achar que a ciência – que trata de coisas que podem ser pesadas e medidas – é capaz de dar conta de tudo o que existe. De determinar o bem e o mal, o justo e o injusto, ou mesmo de (ilogicamente) provar negativas. Um cientificista acha que “está provado que Deus não existe”, por exemplo, enquanto um cientista sabe que não só é impossível provar uma negativa (qualquer negativa! Lógica elementar, caríssimos senhores), como que Deus, por definição não podendo ser pesado ou medido, não está ao alcance do tipo de conhecimento científico.
Algumas descobertas relativamente recentes da ciência de verdade vêm mostrar verdadeiros universos que desconhecíamos por completo, literalmente debaixo de nossos pés. Redes de complexidade tão grande que seria quase impossível entender em um ambiente pequeno e circunscrito, e cuja compreensão num plano maior – um ecossistema, por exemplo – certamente está e estará sempre além de nossas capacidades de compreensão. Uma delas, a mais simples, é a questão do ruído subterrâneo. Poucos anos atrás um músico teve a curiosidade de enterrar um microfone, pensando que poderia captar algum som que pudesse ser usado para fazer música eletrônica. O que descobriu foi tão grandioso que acabou dando início a todo um ramo da pesquisa científica.
Descobriu ele que há uma enorme quantidade de ruídos, produzidos por todo tipo de movimento. Prosseguindo a partir de sua constatação empírica, cientistas de várias especialidades passaram a usar aparelhos compostos por um captador piezoelétrico do tipo que se usa num violão acoplado a uma haste de mais de palmo de comprimento e ligado a um gravador. Com isso eles passaram a poder estudar ao vivo o espetáculo sonoro que está acontecendo literalmente debaixo de nós. Descobriu-se, por exemplo, que várias espécies de larvas usam o som para delimitar território, evitando que se aglomerem demais e acabem ficando com pouco o que comer. Mais ainda: larvas de espécies dificilmente distinguíveis a olho nu apresentam “cantos” (na verdade, por incrível que pareça, elas como que “rangem os dentes”, esfregando as mandíbulas para produzir seus barulhinhos) tão diversos quanto os cantos dos pássaros.
Algumas descobertas relativamente recentes da ciência de verdade vêm mostrar verdadeiros universos que desconhecíamos por completo, literalmente debaixo de nossos pés
Descobriu-se ainda que muitas árvores usam o barulho da água, não outro sinal, para determinar a direção em que crescerão suas raízes. E que existem bichos e mais bichos que usam o som para encontrar presas subterrâneas, havendo até mesmo uma raça de tartarugas que consegue o prodígio de sapatear imitando o som da chuva para atrair as minhocas que lhes apetece comer. E que as formigas presas por deslizamentos internos em formigueiros pedem socorro aos berros. E por aí vai.
Também se descobriu coisa de que já se poderia desconfiar, como que as vastas plantações industriais, com seus venenos e químicas em geral, são silenciosas. Silenciosas por mortas, mortas por reducionismo cientificista da vida àquilo que se quer colher. Quem quer que já tenha tido a experiência de enfiar-se numa plantação de eucaliptos, a meu ver a variedade mais assustadora do fenômeno, sabe que não se ouve um zumbido de inseto, um gorjeio de pássaro; o subsolo certamente há de ser continuação do mesmo deserto verde e silente que a lei brasileira, para nossa eterna vergonha, trata de reflorestamento.
Ainda debaixo da terra, vem-se há já algumas décadas estudando o papel dos fungos na manutenção da vida. Conhecemos todos os deliciosos cogumelos comestíveis, tememos todos os perigosos cogumelos venenosos, mas poucos sabemos que o cogumelo é apenas a flor de um organismo que é vivo, mas não é nem vegetal nem animal. E, mais ainda, que tais organismos são compostos de redes, como que capilares, que se estendem por quilômetros a fio pelo subsolo das florestas. O pouco que já se descobriu de suas funções na vasta e complexíssima ordem de todas as coisas criadas é espantoso. Por esses vastíssimos emaranhados micelianos circulam conversações entre árvores, em que os exemplares mais velhos, maiores e mais saudáveis ajudam no fortalecimento e no crescimento dos mais jovens, dos adoentados ou mesmo atacados por alguma praga ou bicho. Ainda por eles e neles acontecem distribuições e redistribuições dos nutrientes oriundos da quebra celular dos organismos mortos.
Em outras palavras, quanto mais se estuda mais longe se fica da ideia de que uma plantação de fieiras a perder de vista de eucaliptos é uma floresta, e mais perto se fica da percepção de que há na Criação uma ordem – e ordens de ordens, e ordens de ordens de ordens – de tamanha vastidão que jamais poderíamos apreender por inteiro. Estas descobertas que brevemente apontei acima dizem respeito àquilo que julgávamos, em nossa arrogância, ser pouco mais que um aglomerado de elementos químicos em sua maior parte inertes: o chão que pisamos. Eis que o chão é cheio de vida, de barulhinhos, de cantos. Eis que o chão tem literalmente redes vivas pelas quais conversam entre si seres que julgávamos incapazes de perceber o mundo ao redor, que dirá bater papo ou trabalhar em conjunto, as árvores.
A arrogância cientificista provavelmente atingiu seu auge na segunda metade do século retrasado, quando se cria tudo haver descoberto, partindo-se então para as experiências de necromancia fantasiadas de ciência que tanto mal vieram a fazer a nosso povo. Naquele tempo, por falta de meios de observação científica, era mais fácil reduzir a vida – ou melhor, achar que a vida seria redutível – a meia dúzia de “vibrações”, “fluidos” e “energias” circulando daqui para lá e de lá para cá, como nos patéticos discursos necromânticos. Como se a complexidade de uma borboleta, de uma folha de grama ou de um filhote de passarinho, muitíssimas ordens de grandeza maior que a do mais complexo sistema fabricado pelo engenho humano, fosse comparável à de um simples carrinho movido a manivela.
Essa supersimplificação alucinada, essa cegueira que tenta reduzir a realidade a um nível tão baixo de complexidade que a tornaria compreensível a nós e, mais ainda, controlável por nós é a raiz de muitos de nossos problemas. Da agricultura industrial, que mata a terra para produzir não apenas comida, mas também matéria-prima para novas destruições (como, por exemplo, o etanol combustível), à substituição sistemática dos ambientes naturais por verdadeiras bolhas de cimento, polímeros, asfalto e metais, demandando por sua vez vastos sistemas de condicionamento de ar, tratamento de água e de esgoto e demais modos de consumir mais e mais energia, num ciclo vicioso sem fim. Da redução da riqueza ao preço de mercado de commodities, sem perceber que o preço pago por sua extração jamais poderia ser coberto por sua comercialização ou, menos ainda, por sua utilidade real enquanto mera matéria-prima. Do cálculo falsamente utilitarista do valor da vida humana ou da preservação de ecossistemas, quando um cálculo utilitarista real – que lhes reconheceria valor infinitamente maior – já seria ruim demais.
Quem quer que já tenha tido a experiência de enfiar-se numa plantação de eucaliptos, a meu ver a variedade mais assustadora do reducionismo cientificista da vida àquilo que se quer colher, sabe que não se ouve um zumbido de inseto, um gorjeio de pássaro
Nossa função na ordem criada é excelsa: somos custódios, tomadores de conta. Quem toma conta nem é dono nem é construtor, e – tendo algum juízo – tampouco há de se meter a destruir aquilo que não entende, que não saberia reconstruir e, pior ainda, que não lhe pertence. Tendo-nos faltado juízo ao longo dos últimos séculos, todavia, é o que viemos fazendo, no atacado e no varejo. Achando que entendemos o chão em que pisamos, reduzimo-lo em nossa arrogância agronômica a nitrogênio, potássio e pouco mais, e no processo eliminamos vastidões de sistemas complexíssimos cuja presença simplesmente ignorávamos, criando desertos onde nos foi dada vida para cuidar. E para cuidar de nós.
O que não sabemos do chão em que pisamos e onde irá um belo dia parar nosso cadáver pode nos servir de exemplo do que tampouco sabemos do ar que respiramos, dos mares, dos rios. Achávamos que pisávamos em matéria inerte, e eis que há debaixo de nossos pés – em senso figurado tanto quanto literal, na medida da nossa tremenda capacidade de destruição – mundos que ignorávamos; sinfonias de sons inauditos, redes de vida e comunicação insuspeitadas. E isso tudo, aponto, a coisa de um ou dois palmos de profundidade. E mais abaixo, o que haverá? E ao nosso redor, fora do estreitíssimo alcance de nossos órgãos dos sentidos, ainda que amplificados pela aparelhagem que nosso engenho possibilitou construir? E nas profundezas abissais de nossos oceanos? Sem saber o que procurar não há como encontrar, e por vezes só aparecendo um músico em busca de barulhinhos interessantes para que prestemos atenção àquilo em que literalmente pisamos.
O perigo maior da armadilha cientificista não é nem a extensão absurda das possibilidades de um modo de conhecimento por natureza limitado, como o científico. É muito mais grave acharmos que já sabemos, ignorarmos a complexidade real que nos circunda. É assim que transformamos florestas em desertos e a estes chamamos florestas; é assim que eliminamos o que não conhecemos, não entendemos, não conseguimos recriar. É assim que fazemos do que é vida e fonte de vida mero campo-santo onde despejar cadáveres – “carnes dadas aos vermes”, numa etimologia falsa de fato, mas verdadeira de sentido. Vermes que cantam sem que os ouçamos, vidas que nos dão de comer e que ignoramos. Debaixo de nossos pés.
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