Um guru indiano foi preso por abusar sexualmente de uma mocinha, sob o pretexto de exorcizá-la. O mesmo já aconteceu com pastores protestantes, aos magotes, Brasil afora, e certamente pais de santo, padres e monges budistas já caíram na mesma tentação, com desculpas igualmente esfarrapadas. Isto é assim porque a natureza humana é sempre a mesma e, deixada livre, leve e solta, ela cairá nos mesmos truques baixos. Sexo, comida e conforto físico vão sempre chamar o homem, e quem não fizer um esforço consciente e constante para fechar os ouvidos cairá nos encantos dessas lamentáveis sereias.
O mesmo acontece coletivamente, é claro, e é assim que as sociedades despencam na queda livre final da decadência. Sexo, muito sexo; assim foi o fim da Roma antiga, com orgias e mais orgias preenchendo as nobres agendas dos cidadãos enquanto os bárbaros batiam às portas. Comidas, comidas complicadas, comidas em farta quantidade, comidas que procuram proporcionar muito mais que alimentação prazerosa e oportunidade de companhia. Aliás, falando de companhia, a comida viciosa da decadência, pessoal ou civilizacional, frequentemente é solitária, como o que se passa por sexo. No sexo têm-se, na melhor das hipóteses, desconhecidos que dão prazer um ao outro como sucedâneos da mão direita do acariciado. Na comida têm-se súbitos flashes de prazer gorduroso e adocicado. E, no corpo, roupas confortáveis, móveis acolchoados e um cérebro vazio, ou cheio de futilidades que dois dias depois não fazem mais sentido algum.
Assim é a decadência, social ou pessoal. Mas uma não implica necessariamente na outra, ainda que a facilite. É bem mais difícil não se deixar cair nessas onipresentes tentações quando a sociedade perdeu o próprio sentido, como ocorre com qualquer sociedade em decadência, e empregou, como emprega a nossa, todo o seu vasto poder na oferta de bugigangas e prazeres baratos. Uma visita ao supermercado é um passeio por territórios de gula inimagináveis para qualquer outra ocasião da história humana. Talvez Herodes tenha tido à sua disposição o equivalente a um ou dois metros das prateleiras de um mercadinho moderno, mas mesmo isso já é improvável. No telefone, sempre no bolso, programinhas dedicados ajudam a buscar quem nos masturbe naquela noite; se nada der certo, continua presente como sempre a prostituição. É a mais antiga das profissões e, provavelmente, será a que mais há de durar. A parusia há de interromper vários programas, mesmo que todo o resto da terra seja um amontoado de ruínas radioativas.
A questão que se coloca, na verdade, é como escapar disso. Como viver neste mundo sem ser deste mundo? Esta pergunta fazia sentido no fim do Império Romano e faz ainda mais sentido agora, quando este mundo não fica mais do lado de fora da porta. As telas de celulares, tevês e computadores o trazem até mesmo ao banheiro e para debaixo das cobertas. Crianças de hoje são castigadas com horas “sem telas”, em que não podem ter acesso a nenhuma delas. Assim se as corta do mundo.
Cada um de nós precisa exercer continuamente a opção de não se deixar levar. Precisa fazer força, e não pouca, para afastar-se do sexo masturbatório, que só tem em comum com o sexo conjugal o uso das mesmas partes do corpo. Na verdade, o sexo casual da decadência moderna é mais próximo do ato de defecar que do ato amoroso. E, escapando dele, temos ainda de escapar das miríades de oportunidades de gula, tão presentes que o problema maior de saúde de hoje é como evitar a obesidade mórbida. E, escapando desta a duras penas, temos de conseguir escapar da alfafa cerebral proporcionada pela infinitude de pequenos prazeres e pequenas sensações falsas de ter entendido algo importante que nos são dadas pelas redes sociais. A decadência da sociedade facilita tremendamente a decadência pessoal.
Ainda há livros, mas cada vez menos gente consegue prestar atenção a uma só coisa durante tanto tempo. Ainda há ingredientes à venda para fazer uma boa comida, e amigos e parentes para partilhá-la à mesa. Mas quem consegue fazê-los desligar os celulares? E ainda há a possibilidade de resguardar-se e não tratar nossa sexualidade como se houvéssemos achado no lixo nossa genitália. Mas quem consegue, mais ainda quando a pornografia consegue imiscuir-se em tantos aspectos da vida social?
É uma guerra composta exclusivamente de batalhas morro acima, uma guerra incessante, constante: a guerra por fazer de nós mesmos mais que meros componentes das estatísticas da decadência social. Temos de conseguir escapar da decadência social para que escapemos da decadência pessoal. Ou, como o guru indiano, acabaremos fazendo até mesmo de exorcismos mera desculpa para conseguir, às custas dos outros, uns breves segundos de improdutivo frisson orgásmico. Poucas coisas poderiam ser mais tristes que isso.
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