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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Democracia e cultura

Detalhe de "Cincinato abandona o arado para ditar leis a Roma", de Juan Antonio Ribera. (Foto: Wikimedia Commons/Domínio público)

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Há palavras que, tendo perdido completamente o sentido, persistem como fórmulas mágicas, dotadas de conotações sem fim, mas desprovidas quase completamente de denotação. “Nazismo” ou “fascismo” e seus correlatos foram tão longe neste processo que já se fala há tempos duma “redução ad hitlerum” (em latim macarrônico mesmo; liga não), processo pelo qual numa discussão acirrada as chances de o opositor ser dito “nazista” aumentam exponencialmente. O espetáculo de milícias de rapazes violentos vestidos de preto surrando quem deles discorda politicamente, mas fazendo-se chamar “antifascistas”, é um espetáculo tão curioso que poderia ser usado para demonstrar o que é a pós-modernidade.

Outra palavra cujo sentido se perdeu completamente é a tal “democracia”. Como escrevi neste mesmo espaço sete longos anos atrás, a palavra tornou-se um fetiche, não mais um termo. São tantas as variações que não se tem mais como atingir um seu sentido real. As ditaduras comunistas diziam-se “democracias”, e os governos do dito Ocidente estão restringindo cada vez mais as liberdades públicas em nome do mesmo termo, contraposto pelo presidente norte-americano às autocracias. No discurso americano atual a tal democracia seria boa, enquanto as autocracias seriam más. Conotações pululam, e denotações são escassas. O que é, então, essa tal democracia?

Etimologicamente, é simplesmente o governo (kratós) feito pelo povo (demos). A ideia original grega é que a administração pode feita por todo o povo (a famosa democracia), por uma elite (a aristocracia), ou por uma pessoa só (a monarquia). Começa aí o primeiro problema: fazia sentido haver um governo de “todo o povo” quando o tal “povo” era minúsculo e desocupado. Em Atenas só tinha cidadania, ou seja, só contava como “povo”, um pequeno porcentual da população. Seus escravos trabalhavam para que eles pudessem participar do governo da cidade-Estado sem se preocupar com questões comezinhas como o pão de cada dia. Se os habitantes sem cidadania fossem incluídos no “demos”, a famosa democracia ateniense seria na verdade uma aristocracia.

A palavra “democracia” tornou-se um fetiche, não mais um termo. São tantas as variações que não se tem mais como atingir um seu sentido real

Mesmo assim, ainda há a possibilidade real de democracia direta – que é o sentido original do termo – em cidades pequenas o bastante para que todos se conheçam. No nosso interior há muitas delas, aliás. Do mesmo modo, ainda é possível haver tal forma de governo em qualquer instituição pequena e voltada a um fim determinado, como um clube. Em tal situação, a máquina de administração pode estar plenamente a serviço da população.

Não é isto que se vende por tal nome, todavia. A forma mais comum de governo dito democrático é hoje a democracia representativa, em que os cidadãos escolhem seus representantes e a eles confiam o governo. Em outras palavras, dão-lhes um cheque em branco na esperança de que cumpram suas promessas eleitorais ou eleitoreiras. Em tese, cada eleição serviria para reiterar a aprovação popular dos mandatários, com os picaretas e mentirosos alijados do poder. Na verdade, todavia, os problemas são tantos que o funcionamento realmente democrático de tal sistema acaba sendo a exceção antes que a regra. Para cada Suíça – país verdadeiramente democrático – há um sem-número de lugares que só diferem do estado do Rio no fato de estarem soltos os picaretas a locupletar-se anteriormente do erário. E este é outro recado grego: a democracia, quando degenera, torna-se demagogia. É quase inevitável que surjam do lodo das paixões humanas, tão humanas, personagens sórdidos como os sucessivos governadores do Rio de Janeiro, fazendo da administração pública balcão de negócios e acalmando o povo com pão e circo.

Este é um perigo sempre real na democracia, seja ela direta ou representativa, pela simples razão de que o tal povo no mais das vezes tem ocupações mais prementes que fungar no cangote de quem deveria administrar o que pertence a todos. É essa mania de comer todo dia que nos atrasa a vida, como sempre digo. Vou contudo ainda mais longe até: é necessário que haja uma cultura de participação real pelo cuidado da coisa pública e uma reta percepção do bem comum – que normalmente implica em sacrifícios presentes em prol do futuro – para que o que se cobra do administrador realmente seja o que ele deve fazer. É o caso suíço, por exemplo; palhaços demagógicos como Trump ou Garotinho não se criariam por lá.

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Faz parte das fraquezas do sistema democrático que a possibilidade real de galgar às rédeas do poder atraia as piores pessoas. Quem busca o poder, via de regra, é gente que jamais deveria ter poder. O político de sucesso e o estelionatário, como já escrevi, têm talentos semelhantes. São raríssimos os casos como o de Lúcio Quíncio Cincinato, duas vezes elevado ao poder em Roma. Em ambas as vezes ele resolveu os problemas, empobrecendo um tanto no percurso, e voltou à roça assim que pôde. Em cada vez ele teria podido, sem qualquer dificuldade, tornar-se tirano vitalício e instituir uma monarquia hereditária. Mas, justamente por não ter o perfil de quem busca o poder, fez o certo com grande prejuízo para si mesmo. Por essas e outras é que faz parte da sabedoria eclesial que os padres possam negar-se por apenas duas vezes a aceitar o episcopado: a Igreja sabe que o melhor bispo será aquele que jamais quis sê-lo.

Em outras palavras, o governante ideal oculta-se entre os que têm de ser arrastados, esperneando, para o trono. Mas na democracia, mormente a representativa, isto é praticamente impossível. Só sobe ao trono quem quer o trono, ainda que quem queira o trono dificilmente dele seja digno. E é aí que entra novamente a questão que já coloquei acima: na Suíça é normal que os cidadãos nem sequer saibam o nome dos administradores públicos, exatamente por tê-los como servidores, não como mestres. Já aqui, e na maior parte dos lugares supostamente democráticos, ninguém se torna administrador sem popularizar ad nauseam suas fuças sorridentes e nome, pregando-os em postes, distribuindo-os em santinhos, mostrando-os na tevê.

Mais ainda: dado o alto custo de tal popularização, o desvio do erário (ilegal ou legal, mas sempre imoral) em prol de candidaturas não apenas enfraquece as finanças do Estado como dificulta a transição de poder. Sendo o obsceno fundo eleitoral tupiniquim distribuído em função do número de cadeiras de cada partido no parlamento, por exemplo, quem já tem poder é premiado com uma fortuna enquanto os novatos sem padrinhos nadam contra a corrente.

Para que o povo brasileiro esteja realmente no poder, direta ou indiretamente, é preciso, antes de mais nada, que ele entenda a conformação que toma o tal poder

Diz-se muito, com razão, que as leis brasileiras pressupõem que sejamos suíços. É verdade. Mas qual seria a solução para nossa tentativa de democracia? Infelizmente não me lembro de quem, indagado se era monarquista, respondeu que era antes legitimista: impor um rei aos suíços seria tão delirante quanto negar um aos espanhóis. A solução, creio, estaria nessa linha: é preciso discernir o que seria legítimo para nossa cultura. Tentar resolver os problemas por meio de leis (que no mais das vezes “não colam”), já vimos inúmeras vezes, é fantasioso em nosso contexto. Querer “trocar de povo”, à moda de Brecht – pois é exatamente isso o sonho de “educar o populacho ignaro para a cidadania” como forma de fazer funcionar a democracia –, é ainda mais surreal. Para que o povo brasileiro esteja realmente no poder, direta ou indiretamente, é preciso, antes de mais nada, que ele entenda a conformação que toma o tal poder. Ao contrário do que ora ocorre, claro. Enquanto se tem tamanho descompasso entre as instituições “para suíços” e as expectativas populares tupiniquins, não se pode ter legitimidade de governo.

Veja bem o meu solitário leitor que não estou, de modo algum, colocando-me contra a tal democracia. Muito pelo contrário, aliás, na medida em que o poder do administrador público é sempre efetivamente uma concessão subsidiária da população. Até mesmo um tirano mantém-se no cargo enquanto o povo o suportar, como os casos de Ceaucescu e Mussolini deixam claro. Os três modos de governo legítimo apontados por Aristóteles e Platão – democracia, aristocracia e monarquia – são meras expressões diversas duma reta percepção da administração pública como servidora, não mestra do povo. O problema começa, todavia, quando essas formas são corrompidas e decaem nas suas formas depravadas: a democracia torna-se demagogia; a aristocracia, oligarquia; e a monarquia, tirania. Demagogia, oligarquia e tirania são abomináveis, justamente por substituírem o bem comum pelo bem pessoal dos administradores, usando o poder dado pelo povo para espoliá-lo.

Não temos nenhuma das formas retas de governo. Ao contrário, o que temos é uma infelicíssima combinação das três formas corrompidas. A próxima eleição presidencial, a julgar pela situação atual, será na prática um concurso negativo de taxas de rejeição entre dois demagogos

Voltamos, então, à questão: o que é que realmente temos no Brasil? Dado o descompasso entre a teoria e a prática do poder, creio ser inegável que não temos democracia. Mais ainda, que não temos nenhuma das formas retas de governo. Ao contrário, o que temos é uma infelicíssima combinação das três formas corrompidas. A próxima eleição presidencial, a julgar pela situação atual, será na prática um concurso negativo de taxas de rejeição entre dois demagogos. As fétidas famílias que infestam o pântano da política brasileira – dos Sarney pra baixo – e suas criaturas compõem uma oligarquia que suga o sangue dos trabalhadores e pouco ou nada lhes dá de volta. Basta ver que todo assalariado de classe média paga impostos escorchantes, mas os milionários não, ou que a maior parte do dinheiro dos pobres vai-se embora em impostos obscenamente cobrados sobre comida e remédios, água e luz.

E, finalmente, temos o que Samuel Francis batizou de “anarcotirania”. É um fenômeno já percebido por Chesterton quase 100 anos atrás, quando escreveu que, quando não valem mais as grandes leis (não matarás, não roubarás...), as pequenas tornam-se tremendamente importantes. É por isto que no Rio de Janeiro, esse laboratório do futuro, a polícia faz barreiras toda noite para punir quem tenha bebido uma latinha de cerveja acompanhando o jantar. Ao mesmo tempo e no mesmo lugar, caravanas de traficantes armados até os dentes – os “bondes” – cruzam a cidade sem que ninguém os incomode. Na cidade do Rio, quase 60% da população vive em áreas dominadas pelo tráfico ou por milícias (aliás, outro curioso exemplo de corrupção de aristocracia em oligarquia), mas o IPTU é extorsivo. E por aí vai.

Para que se possa, enfim, discernir uma saída para a péssima situação presente, é preciso primeiro entender o que o brasileiro quer do Estado. Em segundo lugar, é necessário discernir como o brasileiro vê e o que aprecia nos administradores e juízes. E, finalmente, de forma um pouco mais indireta, deve-se definir como seria para o brasileiro a forma mais natural de sucessão no poder. Com certeza o que se teria seria tremendamente diferente do castelo de cartas mirabolante que passa por sistema administrativo em nosso país. Sem democraticamente ouvir e entender as expectativas da população, contudo, não se pode nem começar a consertar uma deriva em direção alheia à nossa cultura, que se pode dizer iniciada com o Ato Adicional de 1834. Faz já um tempinho que estamos no rumo errado, mas antes tarde do que nunca.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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