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Depressão

Pixabay (Foto: )

Ninguém sabe o que é depressão. Só se sabe que é algo que acontece com as pessoas desde que o mundo é mundo, e que é algo sobre o quê não se tem controle algum. Seja ela um problema químico, de gosminhas no cérebro fazendo zigue quando deveriam fazer zague ou coisa parecida, seja ela um mecanismo primariamente psicológico, com apenas reflexos físicos, só se sabe que ela está aí. Já se a chamou “melancolia”, e há uma enorme quantidade de arte medieval dedicada a ela. Santa Teresa d’Ávila dá instruções às superioras carmelitas acerca de como lidar com freiras “que sofrem de melancolia” (basicamente, ela manda dar-lhes ordens o dia inteiro e chicoteá-las quando não as cumprem). Um psiquiatra espanhol, F. Javier Álvarez Rodríguez, identifica a depressão endógena (ou seja, a que não tem uma causa psicológica evidente) com a famosa Noite Escura descrita pelo grande místico espanhol São João da Cruz, em que o homem se percebe abandonado até mesmo por Deus.

Será? Mais ainda, será que um dia nos será possível discernir exatamente o que é a depressão, e a partir daí encontrar meios para devolver os deprimidos a uma suposta normalidade? Não há como saber. Só se pode saber que a depressão existe, que ela está aí, e que ela tem esta ou aquela característica.

A meu ver, falando com a experiência de quem está há anos já nas garras desta horrível situação, o cerne da depressão consiste na impossibilidade de uma teleologia. O ser humano procura alvos, objetivos, e move-se em função deles. Sentimos a bexiga cheia e corremos para o banheiro para esvaziá-la. Queremos comida saborosa, e por isso passamos uma hora ou mais na cozinha para fazê-la. A ideia de dormir debaixo do viaduto e se alimentar de sobras de restaurantes nos parece menos atrativa que a ideia de ter um teto e comida, e para isso trabalhamos. Agimos, em suma, em busca de algo. Dependendo do tipo de pessoa, pode haver mais ou menos um ponto central nessa nossa busca; um teleos, uma coisa que queremos ver pronta, um alvo, que buscamos por todos estes meios. Em pessoas religiosas, em geral, este alvo é – ou deveria ser – Deus. Em pessoas mais mundanas, em geral trata-se de algo relacionado a posses materiais e prazeres, ou até mesmo o composto de todos os prazeres da carne. Mas todo mundo tem um alvo. Mais ainda: todo mundo precisa de um alvo.

E é este alvo que a depressão impede de existir, ou ao menos de reconhecê-lo e dar-lhe um valor subjetivo correspondente ao objetivo. Para o deprimido, nada vale a pena. Tudo é um esforço absurdo e sem sentido algum: tomar banho, alimentar-se, trabalhar, tudo isso é feito única e exclusivamente por sentido de obrigação. De acordo com a gravidade da depressão, fica mais e mais difícil aceitar até mesmo as ordens internas do senso de dever. É por isso que enquanto uma pessoa que esteja com uma depressão leve consegue, muitas vezes, funcionar bem no trabalho, sem contudo jamais fazer o que quer que seja além do que é estritamente o seu dever, uma pessoa acabrunhada por uma depressão grave frequentemente deixa de tomar banho, comer ou sair da cama.

E é aí que entra o maior problema, digamos, físico, da depressão: ela aumenta tremendamente as chances de suicídio, pela simples razão de que não havendo um alvo, um objetivo que faça a vida valer a pena, parece muito mais sensato para o deprimido morrer logo. O deprimido religioso, na maior parte das vezes (mas nem sempre!) consegue evitar o suicídio, pela firmeza de sua fé em que uma eternidade de sofrimento aguarda os suicidas. Mas mesmo isso é dificílimo, por quando nada parece fazer sentido algum, quando nada parece capaz de mover a alma do deprimido, uma eternidade nas chamas pode parecer algo mais interessante e movimentado. Melhor que o mundo cinzento e sem sentido em que ele vive, pelo menos.

O maior problema que a sociedade tem ao lidar com o deprimido é perceber a sua condição tal como ela é. Quem não está deprimido considera óbvio e evidente que o amanhã vale a pena, que cada sol que nasce traz de novo a esperança, que o trabalho dignifica o homem, e tudo o mais. Para o deprimido, todavia, nada disso faz sentido. Dizer-lhe que o trabalho dignifica o homem soa-lhe uma piada mórbida como a dos nazistas, que encimaram a entrada de um campo de extermínio e escravidão com a tristemente famosa frase “o trabalho liberta”. Nada faz sentido, nada chama adiante. Como já disse, nos casos mais graves de depressão nem mesmo o esforço de fazer cessar condições que seriam tremendamente incômodas para uma pessoa não deprimida não valem a pena. Não vale a pena tomar banho, mesmo que se esteja fedendo e pegajoso; não vale a pena comer, mesmo que não se tenha comido nada por dias; não vale a pena trocar de roupa; não vale a pena trabalhar; não vale a pena abrir a janela de um quarto fétido.

Não é por preguiça que o deprimido deixa de agir. A preguiça, aliás, não tem nada a ver com isso. É, poderíamos até dizer, de uma certa forma o oposto da preguiça. Enquanto o preguiçoso mede com cuidado seus objetivos para que possa alcançá-los com o menor esforço possível, o deprimido não tem objetivos. O que lhe falta é algo mais básico, algo que, psicologicamente, viria antes da possibilidade da preguiça: é a gana de fazer o que quer que seja, o desejo de alcançar qualquer objetivo que seja.

Uma vez comentei, anos atrás, a um amigo que eu tinha dificuldades para fazer isto ou aquilo por conta da depressão, e ele comentou, surpreso, que nunca imaginaria que eu sofria de depressão, dada a quantidade de coisas de minha lavra com que ele se deparava (textos, vídeos, o escambau). Mal sabia ele que eu me forçava – e estava num estágio menos crítico de depressão – a sentar e escrever, trabalhar, ir em frente, pelo simples senso do dever. O mesmo senso do dever que me faz tomar banho, por exemplo. A depressão aumenta, diminui, aumenta de novo, tudo ao longo dos anos. E um dia ela pode ir embora. E noutro dia pode voltar. E à medida que ela melhora ou piora, torna-se mais fácil forçar-se a fazer isto ou aquilo. Mas enquanto ela perdure, sempre haverá uma boa dose de esforço por trás de cada ato que ao não deprimido parece simples e evidente. É por isso, até, que acho bastante interessante a metodologia de Santa Teresa. Brinco com o meu filho que eu precisaria ter uma personal madre superiora, com um rebenque, me mandando escrever, estudar piano, fazer comida, etc. Como é o senso do dever que consegue vencer, com enormes esforços, a ausência de um teleos, de algo que se quer ver cumprido, um objetivo, receber uma ordem, depois outra, depois outra, com um bom incentivo negativo (especialmente na medida em que os incentivos positivos não funcionam com deprimidos! – morda-se, Skinner!), pode levar alguém a viver como se não tivesse depressão. Mas para isso, claro, deve ser uma pessoa dotada não apenas de sentido do dever, mas também de ao menos uma compreensão formal do valor da obediência.

Pois este é outro problema seríssimo da depressão: ela não obedece à razão. O deprimido sabe que está fedendo e pegajoso, sabe que deveria tomar banho, sabe onde fica o chuveiro, sabe que as pessoas não suportam entrar no seu quarto, tamanha a inhaca, mas… e daí? Nada disso o move de por si; talvez ele consiga juntar senso de dever suficiente para tomar um bendito dum banho, abrir a janela, e mesmo, quem sabe, um dia dar uma limpeza no seu quarto. Mas não será pelas razões “normais”, dos não deprimidos, que ele o fará, sim por um sentido de dever que teria mais a ver com o de alguém que pula com roupa e tudo numa piscina para salvar uma criança que não sabe nadar. O esforço requerido é quase o mesmo, e a natureza do ato, psicologicamente falando, também.

Os prazeres que este mundo tem a oferecer tampouco são atrativos para o deprimido. Suas papilas gustativas estão intactas, mas um prato de boa comida simplesmente não se coloca como objetivo. Ele terá o mesmo prazer objetivo do não deprimido ao comê-lo, e talvez este prazer o faça mesmo suspirar e sorrir. Mas o esforço para conseguir o prato – que seja ligar para um restaurante que entrega a domicílio! – irá sempre lhe parecer sem sentido. Do mesmo modo a visão de uma bela paisagem, os pulmões cheios de ar puro ou mesmo os prazeres conjugais no mais das vezes lhe parecerão indiferentes. Nada vale a pena. Tudo é igual. “Pra quê?” é a pergunta básica, que enche a alma de todo deprimido. Nada lhe parece valer a pena, nenhum objetivo parece suficiente para fazê-lo se mexer. Daí a tentação sempre presente de “acabar com tudo”, de se matar. É uma resposta à pergunta “pra quê?”, ainda que seja uma resposta negativa: pra nada. A vida, para o deprimido, parece ser pra nada.

No meu caso particular, eu procuro me disciplinar a reconhecer a beleza, e ao menos três vezes ao dia reconhecer a beleza de algo que vejo – uma flor, uma luz especial, uma paisagem… Se eu não fizesse disso uma disciplina, estaria ainda mais morto para o mundo e para sua beleza. Do mesmo modo, a cada semana eu tenho a obrigação de escrever esta coluna, que graças a Deus tem lá seus leitores, e percebo isso como um dever meu. Não é um dever apenas por eu ter um contrato (Deus bem sabe que tenho outros contratos que dificilmente consigo cumprir!), mas por eu perceber, por eu ter conseguido perceber nas reações de alguns leitores, o valor que este textinho das quintas tem para eles. Por ter reconhecido nele um valor objetivo, forço-me a dar-lhe valor subjetivo, ao menos suficiente para que eu consiga escrevê-lo.

Pois é assim que se pode lidar com a depressão. Não digo que se vá acabar com ela, pois, afinal, como já disse no início deste texto, não sabemos sequer o que ela é, que dirá o remédio que a faça cessar. Mas uma maneira de conseguir lidar com ela é reconhecê-la e, racionalmente, sabendo que tal e tal objetivo que deveríamos querer alcançar tem um valor maior que o valor zero que subjetivamente lhe damos por conta da depressão, forçar-se por dever, por dever humano, a ir adiante e reconhecer o belo, a comer boa comida, a tomar banho, a estudar e trabalhar. É difícil, dificílimo, mas quem disse que a vida é fácil só pode ser louco. E certamente não sofria de depressão.

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