Os golpes mais comumente aplicados por estelionatários partilham uma característica: prometem lucros absurdamente altos. Pode-se até mesmo dizer que suas vítimas são aprendizes de estelionatário convencidos da própria esperteza. Um dos golpes mais comuns é o chamado “esquema de pirâmide”. Dizem que quem inventou tal golpe foi um sujeito chamado Ponzi, e por isso mesmo em inglês a pirâmide é dita “Ponzi scheme”. Curiosamente, o tal Ponzi conseguiu fugir da polícia gringa e acabou indo parar no Rio de Janeiro, onde trabalhou como motorneiro de bonde. Enfim. O golpe em questão consiste em convencer um determinado número de pessoas a “aplicar” uma quantia pequena à guisa de taxa de entrada e em seguida encontrar mais um tanto de otários, digo, de investidores que façam o mesmo. Evidentemente, uma parcela de cada “investimento” é repassada para quem está no grau mais alto da pirâmide. Funciona, até a hora em que não se consiga arranjar vítimas suficientes para cobrir o “investimento” inicial.
Salta aos olhos que o esquema é apenas uma maneira de “redistribuição de renda”, coisa tão amada por alguns políticos. Afinal, não é gerado um centavo de riqueza nas pirâmides; só o que ocorre é um fluxo de dinheiro de baixo para cima, a partir de uma base que se expande até esgotar a oferta de bobos. Mesmo conhecido, todavia, há sempre quem caia no esquema de pirâmide mundo afora. Não apenas estelionatários individuais, mas também vastos sistemas financeiros e governamentais funcionam da mesma maneira. Dentre eles, o mais evidente no nosso momento atual é o sistema de aposentadoria. Nele, a aposentadoria dos mais velhos é paga pelos que estão ainda trabalhando. Sendo evidentemente o porcentual pago pelos trabalhadores ativos menor que o recebido pelos aposentados, é necessária uma base de ativos muito maior que a de aposentados. Para piorar as coisas, estamos num momento bastante peculiar da curva demográfica, em que o grande baby boom (pico de natalidade) do pós-guerra está em pessoas na idade de aposentar-se. Previsivelmente, eis que surge o problema que dá fim aos esquemas de pirâmide. Ninguém em sã consciência hoje trabalha achando que realmente vai se aposentar como seus pais ou avós. Simplesmente não haverá dinheiro, já que a base de pagadores está minguando enquanto a de recebedores aumenta.
Há outros esquemas de pirâmide em ação; o que ora nos interessa, entretanto, é um tão absurdamente grande que fica fácil não o perceber. Vivemos imersos nele como um peixe n’água, sempre encharcado sem o notar. Trata-se do que é dito “desenvolvimento econômico”. Espera-se que a “produção” dos países aumente a cada ano, e tudo – todo o sistema financeiro, toda a economia global – é baseado em tal expectativa. Até havia algum sentido nisso no século passado, quando a produção era, bom, produção. Produzia-se riqueza, no sentido de melhorar a vida das pessoas com a transformação de matéria-prima em produtos palpáveis, que poupassem trabalho manual humano (como a famosa máquina de lavar, que fez mais pelas mulheres que todos os movimentos femininos juntos), e assim indiretamente permitissem um desabrochar de potenciais humanos antes impedido. Só para que permaneçamos na liberação feminina, veja-se como, por exemplo, todas as grandes escritoras da primeira metade do século passado eram solteironas ou esposas de ricaços. Já hoje, até mesmo uma mãe solteira desempregada – como a autora de Harry Potter – encontra tempo suficiente para uma arte de resultados financeiros tão incertos quanto a escrita.
Ninguém em sã consciência hoje trabalha achando que realmente vai se aposentar como seus pais ou avós. Simplesmente não haverá dinheiro, já que a base de pagadores está minguando enquanto a de recebedores aumenta
Foi, porém, a maneira de contabilizar a tal produção que acabou com a substituição do desenvolvimento em especulação piramidal. Hoje em dia – ao menos até que decolem as mudanças anunciadas pela desdolarização e pelo surgimento de esquemas alternativos de comércio internacional – tem-se antes finanças que economia. O aumento real de riqueza palpável deu lugar a um perpétuo arrastar de cá para lá e de lá para cá de quantias em moeda fiduciária, enganosamente contabilizado como produção. Até mesmo a inflação da oferta de moeda fiduciária consegue passar por produção em nossos dias.
Para piorar, a exigência absurda de crescimento perpétuo faz com que o que deveria ser efetiva produção de riqueza – a transformação de matéria-prima em objetos valiosos – tenha em enorme medida passado a ser literalmente produção de lixo. Afinal, qual é a diferença entre pagar gente para abrir um buraco e tampá-lo depois – como propõem algumas escolas de economia – e pagá-las para extrair caríssimos minérios do subsolo e transformá-los em telefones celulares que duram no máximo dois anos antes de seguirem para o lixão? Comparados aos séculos de lenta degradação (e infiltração no lençol freático, e poluição, e tudo o mais que isso implica) dos celulares no lixão, os dois anos de uso são um piscar de olhos, uma escala brevíssima na rota do subsolo ao subsolo.
A diferença, podemos afirmar, é que os estragos causados por cavar e retampar um buraco são infinitamente menores. Mesmo que deixemos de lado os processos altamente poluentes pelos quais a matéria-prima é extraída, mesmo que esqueçamos os séculos de poluição gerados por cada aparelho, o que temos ali é mais que mero desperdício: é destruição. A matéria-prima empregada em besteiras (e são tantas! Os celulares descartáveis são um mero exemplo) é mesclada, imbricada de tantas outras substâncias que na prática é perdida para as gerações futuras. Para fazê-lo gasta-se enorme quantidade de energia, no mais das vezes oriunda seja da queima de combustíveis fósseis (que igualmente deixam de estar disponíveis para nossos bisnetos), seja de centrais nucleares (que garantem a nossos descendentes a presença de radiação mortífera e invisível por dezenas de milhares de anos). À energia desperdiçada para a produção de bobagens soma-se a consumida pelas mesmíssimas porcarias durante sua curtíssima vida útil. Afinal, ao contrário dos aparelhos elétricos d’antanho, praticamente qualquer eletrônico moderno gasta energia a partir do momento em que é plugado numa tomada.
Algumas décadas atrás dava-se sempre como exemplo da obsolescência planejada as lâmpadas incandescentes. Elas queimavam, e precisávamos trocá-las a cada tantos anos; seria, entretanto, possível produzi-las de tal modo que durassem basicamente para sempre. A prova seria uma lâmpada acesa há décadas em algum lugar. Hoje esse exemplo parece uma piada macabra. Nós não usamos mais as tais lâmpadas (aliás, de fácil reciclagem), primeiro substituídas por lâmpadas com gases tóxicos em seu interior (aquelas de tubos enroladinhos), e depois por lâmpadas de LED, produzidas com circuitos internos que não se tem como reciclar e outros materiais raros. Ah, e estas nem sequer duram o que duravam as incandescentes; ao contrário delas, todavia, o destino das atuais é o sempiterno lixão.
Quando eu era moleque, os canudos eram de papel encerado, assim como os copinhos de café e de suco, as sacolas de mercado etc. Hoje tudo é plástico; o petróleo que sonegamos a nossos descendentes é usado para – mais uma vez – fazer porcarias descartáveis que batem pique na mão da gente a caminho do lixão. Para piorar a situação, o plástico não tem nem como ser reciclado – com raras e caras exceções – nem como degradar-se naturalmente. A despeito da feia fumaça preta, o meio menos péssimo de eliminar lixo plástico hoje é queimá-lo. O que não é queimado resseca e se parte em pedacinhos minúsculos, levados pelo vento. Estes, por sua vez, contaminam tudo e todos; já há microplástico em nossas entranhas – fígado, rim, músculos: podem escolher – e até mesmo no sangue de bebês ainda na barriga da mãe. As carnes que comemos, bem como as plantas, também já trazem embebidos nelas, inseparavelmente, milhares de pedacinhos minúsculos de uma porcaria que custou uma fortuna para ser feita e muitas vezes (como no caso de uma sacolinha) teve uso real por uns poucos minutos.
Essa vasta produção de lixo venenoso, no entanto, é apresentada como se fosse produção efetiva de riqueza, o que é absurdo. Não é riqueza jogar coisas no lixo; no máximo pode ser esbanjamento, como quem acende um charuto com uma nota de cem dólares. Quem o faz ou bem é podre de rico ou bem é louco, e é sempre um idiota. Afinal, queimar dinheiro que poderia ser usado para dar comida a um faminto é idiotice em estado bruto.
Hoje tudo é plástico; o petróleo que sonegamos a nossos descendentes é usado para – mais uma vez – fazer porcarias descartáveis que batem pique na mão da gente a caminho do lixão
Não somos, contudo, podres de ricos. Ao contrário: somos perdulários que jogam no lixão o que pertence por direito não a nós, mas a nossos descendentes. Das matérias-primas ao meio ambiente, da energia produzida a partir de bens finitos ou com consequências letais longuíssimas às espécies animais e vegetais extintas pela sede de esbanjamento de nossa sociedade; nada disso nos foi dado como se fôssemos a derradeira geração. Après moi, le déluge: “após mim, o dilúvio”, teria sido dito por um mau rei. É o que – em termos de civilização – nós nos tornamos. Pior ainda, é o que veio a ser imposto mundo afora não apenas como objetivo, mas como regra, durante as décadas de poderio desproporcional americano.
Até mesmo em termos puramente financeiros, os países hoje endividam-se ao deus-dará. As dívidas contraídas hoje são jogadas no atacado para as gerações futuras, que arcarão com as consequências das gerações perdulárias que as endividaram para pouquíssimo mais que jogar mais e mais coisas tóxicas nos lixões, extinguir mais e mais fontes de matérias-primas e energia, e por aí vai. Quanto à (menosprezável) parte puramente financeira de tais dívidas, o mais provável é que as transformações por que passará o sistema financeiro internacional nos próximos anos venha a cuidar. Não duvido que todas as dívidas internacionais contraídas em dólares vejam-se caloteadas, negadas ou rebaixadas em breve. Do mesmo modo, a proposta russo-chinesa de lastrear as moedas nacionais com uma associação de commodities e ouro pode levar a uma diminuição de tal frenesi destrutivo. Dando certo, a fantasia americana de riqueza – e, logo, sua influência social consumista mundo afora – dará lugar à percepção de que no mundo real todo gasto deve ser pago, não meramente financia(liza)do.
A mentalidade destruidora da sociedade de consumo, da sociedade do lixão, porém, certamente ainda há de persistir por algum tempo. Ao menos no curto e no médio prazo, ainda é do interesse da China, por exemplo, que ela perdure – desde que fora de seu território. O fato é que já se tornou hábito contarmos hoje com as riquezas de nossos filhos e netos e esbanjarmos, queimarmos, e jogarmos no lixão o que não é nosso. Chesterton dizia que a Tradição é uma democracia em que os mortos votam; poderíamos dizer que neste nosso planetinha azul precisamos nos organizar para que tenhamos uma democracia em que os que ainda não nasceram também tenham algum direito a voz. Só assim se pode ter o respeito devido àquilo que nos foi dado para custodiar, não para dilapidar. Só assim podemos escapar deste sistema de pirâmide em que a “base” espoliada são nossos próprios descendentes.