Este é o último texto desta coluna; faço dele por isso uma carta de despedida.
Para nossos tempos fugazes, até que a coisa durou bastante. Um bebê que tenha nascido no dia sete de julho de 2011, quando o primeiro texto desta coluna saiu – ainda no jornal de papel – já estaria hoje perto de entrar na adolescência. Eram outros os tempos, então; jornais eram comprados na banca, folhas e mais folhas enormes cobertas de letrinhas duma tinta que nos manchava a mão, com o espaço de cada texto cuidadosamente contato, pesado e medido. Por conta da limitação de espaço, tendo eu herdado do grande Carlos Heitor Cony um cantinho miúdo de página, fui forçado à escola da concisão. Eram tantos caracteres, e tantos e tão poucos os entregava, nem mais nem menos.
Artigos meus outros já haviam sido publicados na Gazeta. Um deles, sobre o que qualifiquei de “ditadura da pedagogia” a atrapalhar a educação brasileira, motivou numa universidade uma queima de jornais de fazer inveja às de Berlim no final dos anos 1930. A editora, entusiasmada, comentou comigo que para queimar um jornal era preciso comprá-lo. Mais tarde, quando passei a ter este espaço que ora se encerra, outros leitores vieram a acusar recebimento dos textos de várias maneiras: de cartas ao jornal felizes com minhas mal-traçadas a uma campanha pedindo minha cabeça por ter ousado incomodar um desses grupos cujo uso como bucha de canhão lhes sobe à cabeça. Lembro-me do quanto me entristeceu quando resolveram cancelar uma passeata contra mim: planejava ir, pois é coisa tão rara uma passeata com que concordo que aquilo me afigurava imperdível.
Os tempos eram outros, e não havia então o “cancelamento” que depois se tornou moda e praxe mundo afora. O que saía no jornal podia servir para embrulhar peixe e forrar gaiola de papagaio no dia seguinte, mas tendo ido às ruas lá estava, provocando reações. E o jornal era o jornal, separando-se do mero pitaco ou opinião de botequim pelo simples fato de ser impresso em quantidade e vendido por todo lado. Para que se garantisse que o jornal do dia seguinte tivesse compradores, era necessário evitar desapontar os daquele dia. Enfurecer alguns e fazer gargalhar outros, tudo bem. Desapontar, jamais.
Foi nesse ambiente, então em seu auge, que no começo do século passado floresceu a prosa de G. K. Chesterton, inspirador maior das minhas palavras de segunda mão. Corria-se então às bancas para comprar um exemplar e ler o que escrevera este ou aquele polemista, a resposta que dera a algo publicado em outro diário, as disputas de ideias servindo-se dos jornais e eles delas. Fico feliz por ter conseguido surfar a rabeira dessa onda que durou quase cem anos, pois é no campo das ideias que sirvo a meu bom Senhor.
Lembro-me do quanto me entristeceu quando resolveram cancelar uma passeata contra mim: planejava ir, pois é coisa tão rara uma passeata com que concordo que aquilo me afigurava imperdível
É de ideias que vivo, e ideias são o que respiro e meu quase-único interesse. Naquele ambiente de ideias sendo trocadas, de veículos de imprensa veiculando-as e dando-lhes asas, eu estava em casa. Como tudo no mundo sublunar, todavia, chega uma hora em que aquilo também acaba, e esse ambiente de imprensa acabou com a virtualização da comunicação de massa. Quando uma página de internet dum jornal tradicional e respeitável passou a ter que concorrer com aventureiros que surgem e desaparecem a cada dia, quando explodiram as redes sociais, com sua curatela terceirizada aos mesmos usuários cujos dados vendem aos publicitários, tudo mudou.
Até hoje, na verdade, ainda não se firmou uma maneira de garantir a empreendimentos noticiosos sérios uma renda que lhes permita manter-se. O que funcionava no tempo do jornal impresso, a venda por uns tostões daquele calhamaço de textos escritos, não existe mais. A publicidade tornou-se invasiva. As assinaturas, aposta de muitos, dependem de um dispêndio súbito e, mais ainda, prévio, na medida em que sem ela não se tem como ler o que está ali à disposição apenas dos assinantes.
Daí a substituição da ideia pela pessoa, do polemista pelo “influenciador”. Aquele é uma metralhadora de ideias, este uma persona. Aquele é alguém com quem se concorda ou de quem se discorda, calma ou enfurecidamente; este é alguém que se segue. E que se segue por onde vá nessa vasta virtualidade: nas redes sociais, neste ou naquele meio de comunicação, consumindo-se não só o que tem a dizer mas seus gostos, seu modo de se vestir, e até mesmo o vocabulário que venha a usar.
Mas sou profundamente desinteressante em tudo que não ideias, porque, como disse, é no campo das ideias que trafego. Minha produção é de ideias, apresentadas da melhor maneira que posso, penteadinhas e bem-cozidas, mas só ideias. Posso até ser uma figura, mas não saberia me fazer uma persona. Sempre disse que precisava (e preciso) dum gigolô, de alguém que venda minha produção, porque se fosse vender cerveja gelada na saída do Saara perderia dinheiro. E se, em vez de cerveja gelada, fosse vender-me como a uma grife – ainda que uma grife de ideias bem-empacotadas – a falência seria decretada antes mesmo da abertura de portas da minha lojinha.
Frequentei por um bom tempo as tais redes sociais, mas a brincadeira perdeu a graça; mesmo que não houvesse perdido, contudo, até por ser lá e cá o mesmo chato eu não saberia nem teria interesse real algum em fazer delas vitrine. Estava lá para ver os amigos e conversar besteira, exatamente como estaria no footing da pracinha da cidade do interior ou no boteco, e não é esse o caminho do “influenciador” bem-sucedido.
E os nossos são tempos só do influenciador, não mais das ideias. E o influenciador, mais ainda, não pode se dar ao luxo de surpreender seus seguidores, sob pena de perdê-los. Já as ideias, minhas amadas e queridas ideias, estas têm consequências lógicas a que indefectivelmente conduzem, e acaba sendo mais perto de regra que de exceção que tais corolários surpreendam quem aderiu à ideia inicial. Eu vi isso bem nos comentários, agora tão mais rápidos e fáceis de fazer sem pensar, com que os leitores adornavam esta minha coluna que ora finda. Quem me havia pintado de “direitista” ou mesmo “bolsonarista” por eu ser anticomunista escrevia indignado quando percebia que não sou nem um nem outro. Uns chegavam a colocar-me no campo oposto só por eu não estar com os dois pés firmemente plantados no seu, roboticamente repetindo as mesmas frases-feitas que vagam pelos desertos de homens e ideias das redes sociais.
Mudaram as circunstâncias, mudou o mundo, e eis que me vejo como um motorista de táxi na era do Uber ou um jornaleiro na era da informação digital. São outros os tempos, e outros os talentos requeridos no que se tornou outro habitat. Só o que tenho a oferecer são palavras de segunda-mão a serviço de ideias, e estas sempre levadas a seus mais distantes corolários. Com isso assusto uns poucos e entedio o resto, mas não “influencio” ninguém.
Mas, como disse, fico feliz por ter pego ainda a rabeira do habitat antigo. Foi bom enquanto durou; agradeço a quem tenha sorriso ou rosnado ao ler meus escritos. A gente se vê por aí.