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A ficção e a alucinação têm muitas vezes o dom conjunto de definir quase claramente os medos de um povo numa dada geração. No então chamado “mundo livre” (leia-se “não comunista”), durante a Guerra Fria, por exemplo, a mania de “discos voadores” (do inglês “flying saucer”, “pires voador”), ou “UFOs” (“Unidentified Flying Object, “Objeto Voador Não Identificado” ou “Ovni”), chegava a ser engraçada. Eu mesmo, moleque de ginásio ainda, com o objetivo de ridicularizar a seriedade de uma Feira de Ciências na escola, preparei um trabalho sobre a propulsão dos discos voadores. Baseei-o numa das teses mais amalucadas que então circulavam. Algo a ver com a ionização do ar, se não me engana a memória. Ganhei a nota máxima, e nunca mais consegui levar a sério o sistema educacional brasileiro.
Mas o que eram os discos voadores de então? Creio não estar muito longe do alvo ao dizer que eram duas coisas ao mesmo tempo, como sói ser o caso nessas confusões todas da cultura popular. A primeira, provavelmente a mais importante, era uma espécie de mitologização dos agentes comunistas. Afinal, aqui mesmo em Pindorama nossos governos militares usavam a expressão “ideologias alienígenas” para referir-se ao comunismo, como se o desenvolvimentismo positivista fosse o mais puro fruto da cultura tupiniquim. Daí também vieram delírios ainda mais engraçados, como a tese – em que há quem creia; stultorum infinitus est numerus – de que as autoridades civis do Primeiro Mundo seriam lagartos espaciais disfarçados de gente (oi?!), ou mesmo as fábulas de ETs que raptavam pessoas e as submetiam a experiências semieróticas.
A outra projeção em forma de disco voador era o caso dos ETs “bonzinhos”, como os do célebre filme Contatos Imediatos de Terceiro Grau, lançado em 1977, e do próprio ET, de 1982. Tratava-se então de uma tentativa de reformular de modo imanentista o desejo de um Messias que a crescente descristianização da sociedade não tinha como deixar de provocar. O dedinho brilhante do ET, com seus poderes curativos, seria o substituto imanentista do dedo divino a tocar o humano na célebre pintura de Michelangelo.
No então chamado “mundo livre” (leia-se “não comunista”), durante a Guerra Fria, a mania de “discos voadores” chegava a ser engraçada
Curiosamente, todavia, assim que as câmeras digitais baixaram de preço e, logo depois, foram incorporadas aos celulares, sumiram os ETs tão subitamente quanto surgiram. Seria de se esperar que aquelas fotos fora de foco em que se percebia um borrão no céu fossem substituídas por imagens claríssimas em que cada pelinho da antena do alienígena e cada parafusinho de sua fantástica máquina voadora pudessem ser reconhecidos. Mas não; foi só tornar-se a regra ter consigo uma máquina fotográfica todo o tempo que acabaram os avistamentos.
Com o fim da Guerra Fria e a entrada mais completa na pós-modernidade, sumiram também do radar da cultura popular os discos voadores, substituídos por zumbis. Os zumbis, tal como os ETs, eram símbolos de outra coisa. No caso, o isolamento em grande medida autoimposto, em que se tornou comum andar isolado dos ruídos e conversas do mundo real por fones de ouvido inicialmente ligados num aparelhinho sagazmente batizado “iPod” (“casulo do Eu”). Do mesmo modo e na mesma direção, a virtualidade ora reinante possibilitou a ampliação geométrica de um fenômeno que as megalópoles de um certo modo já permitiam.
O habitante de megalópole já podia mostrar-se uma pessoa diferente em cada ambiente que frequentasse. Com a virtualidade, a vida em telas, passou a ser fácil achar naqueles milhões de conterrâneos algumas pessoas com interesses extremamente similares e assim formar tribos isoladas de todo o resto. Agora uma pessoa pode, por exemplo, viver num mundo em que só o que interessa é um assunto tremendamente específico. No mundo pré-virtual, interesse assim específico seria necessariamente mero arabesco lateral numa vida. Mesmo um acadêmico seria forçado a deixar de lado o objeto de sua fascinação ao pendurar o jaleco e ir pra casa, até pela impossibilidade de encontrar mais material de estudo e por falta de companheiros de fixação.
Com a virtualização das vidas, todavia, vimos surgir subitamente mundos isolados da realidade, mas habitados virtualmente por enorme cópia de gente. E os que vivem ou frequentam megalópoles podem ainda se encontrar fisicamente para falar de seus interesses. Há quem viva num mundo de desenhos animados japoneses; outros, num em que o papa é o anticristo; outros ainda, num onde o diâmetro do bíceps faz as vezes de individualidade; ou noutro em que estrelas de Hollywood torturam criancinhas para jamais envelhecer. O que a pessoa faz fora do mundo virtual em que habita é que acaba sendo algo lateral. O trabalho torna-se mero meio de sustentar-se vivo e capaz de frequentar a “verdadeira realidade” do mundinho virtual ultraespecífico. Para quem se tranca num tal casulo, claro, as pessoas que encontra no metrô ou nas ruas das cidades são zumbis, desprovidos de vontade ou razão. Enquanto os ETs – bonzinhos ou malvados – da geração anterior colocavam-se em oposição a uma humanidade comum, os zumbis substituem a humanidade dos demais; na verdade, agora a regra é estar para o mundo como um ET.
Mas eis que agora, de repente, não mais que de repente, o Pentágono recoloca em evidência os tais ETs. Foram liberados filmes em que, bem à moda do século passado, veem-se objetos fora de foco e sem referência dimensional saltitando céu afora. Militares americanos são entrevistados em programas de tevê e afirmam ter visto cotidianamente discos voadores nas telas de radar ou mesmo acompanhando seus aviões de guerra. Sabendo que não se trata de gente que dê ponto sem nó, a pergunta passa a ser, então, “cui bono?” A quem beneficia a reintrodução de tal elemento na cultura popular?
As respostas, ao menos por enquanto, são quase infinitas. Pode ser apenas um exercício de terror voltado para o público interno, para garantir que a população americana se mantenha em estado de constante pânico neste momento em que recomeça a Guerra Fria. Neste caso, os discos voadores seriam do tipo “malvado”, e fariam as vezes de drones iranianos, russos, chineses ou coisa que o valha. Pode ser, por outro lado, a preparação para alguma operação de guerra psicológica em que a presença de alienígenas “bonzinhos” céu afora leve a supostas revelações, à moda espírita, feitas por “guias de luz” ou besteira equivalente, recém-chegados de Plutão para chancelar os desejos das oligarquias.
Eis que agora, de repente, não mais que de repente, o Pentágono recoloca em evidência os tais ETs. A quem beneficia a reintrodução de tal elemento na cultura popular?
Há ainda quem veja neste frenesi ufológico mera confusão da parte do Pentágono. Afinal, é verdade que o uso de drones – que podem ter formas estranhíssimas – por parte de todo tipo de ator geopolítico já é normal. Os tais Ovnis, então, seriam meros drones avançados, lançados por antagonistas dos EUA para coleta de informações eletrônicas. Ou simplesmente para testar se é possível fazer com que um drone se aproxime o bastante de uma base militar ou frota em alto-mar para – fosse ele armado – destruí-la ou ao menos diminuir-lhe a capacidade ofensiva. Não podemos esquecer que drones supostamente iranianos destruíram poços de petróleo sauditas há pouco, ou que mísseis telecomandados andaram dando um bom susto nos israelenses ao penetrar sem grandes problemas o sistema de defesa dito “Domo de Ferro”.
Além disso, os recentes avanços chineses e russos em tecnologia de mísseis, em que os há até mesmo ultrassônicos e movidos por energia atômica, poderiam apontar para ainda outras tecnologias que secretamente dominem. Nenhuma força armada permite que se tenha perfeita noção de sua capacidade, geralmente demonstrando apenas o bastante para atemorizar possíveis adversários. Uma carta na manga pode decidir um jogo; se o que se vê já é tão assustador, o que não se vê provavelmente há de ser ainda pior. O incidente relativamente recente em que o sistema de informação e mira eletrônicas de um navio americano foi paralisado por contramedidas russas, enquanto aviões russos davam rasantes por cima do tal navio, foi uma tal demonstração de força. Diz-se que grande parte da marujada americana pediu demissão assim que chegou em porto aliado, tamanho o pavor que sentiram ao perceber-se alvo indefeso. Na mesma linha, permitir o avistamento de algo incompreensível, mas não identificar nem a tecnologia nem quem dela dispõe pode acabar sendo uma arma psicológica ainda mais eficaz que demonstrá-la abertamente.
Há, ainda, outra forte possibilidade. Os tais discos voadores, pelo que se diz, teriam forte preferência por navios de guerra americanos dotados de instrumentação eletrônica de último tipo. Não se sabe de nenhum que tenha ido apoquentar pescadores ou cargueiros, por exemplo. No máximo um que outro hippie confunde a brasa de seu cigarrinho-de-artista com uma nave espacial.Eles poderiam, então, ser drones americanos secretos, com tecnologias de uso exclusivo militar. Neste caso, os “avistamentos” serviriam basicamente para coletar dados não sobre a instrumentação das naus, mas sobre a eficácia da tecnologia nova. Ao mesmo tempo, mostrar militares americanos atarantados com os incompreensíveis avistamentos – o que parece demonstrar que não se trata de tecnologia militar dos EUA – ajuda a desviar a atenção do fato de haver testes em curso.
Existe também o bônus adicional de criar uma falsa ameaça e assim aumentar a dependência emocional do público interno nas Forças Armadas americanas. Elas gastam numa missão puramente ofensiva uma fortuna maior que a dos dez próximos maiores atores militares do mundo somados, num momento em que a economia está em péssimo estado e o dinheiro poderia ser mais bem gasto aliviando problemas internos do país. Os EUA não correm nem jamais correram perigo no próprio território continental; ao contrário, até: quem corre perigo é quem está por perto, como bem sabem Cuba, Granada, Nicarágua, Porto Rico e, especialmente, o México, que perdeu a maior parte de seu território para a agressão armada americana. Não seria a primeira vez, aliás, que se o faz; a própria CIA já declarou ao New York Times ter lançado farto material falso sobre discos voadores, durante a Guerra Fria, para distrair de testes de aeronaves secretas e infundir medo de uma improbabilíssima agressão russa ao território americano.
Ou, claro, podem ser alienígenas verdadeiros, quiçá de Alfa Centauro, vindo consolar a recente viuvez da coleguinha reptiliana que reina na Inglaterra. Ou mesmo, até, pular a janela, ligar a vitrola e entrar dentro dela, como cantava Rita Lee. Na pós-modernidade tudo é possível, especialmente o impossível.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos