Fico imaginando uma reunião de estelionatários, anos atrás, em que eles tivessem se dedicado a imaginar as melhores maneiras de facilitar o seu “ofício”. Descobriram, e botaram o plano em ação. Foi fácil. Afinal, existem basicamente duas categorias de estelionatários extremamente bem sucedidos em que se dividem os membros da elite desse medonho ofício de mentiroso profissional. Uma é a dos “pastores” das seitas que cobram dízimo dos pobres e dos desesperados, dizendo que se derem pro “pastor” o pouco que lhes resta de propriedades materiais depois do tanto que apanharam na vida os pobrezinhos vão ficar miraculosamente ricos. A outra é a dos políticos, e são eles que fazem as leis. Assim fica fácil.
Pois alguém, em algum momento, fez alguma lei que eu não vou nem tentar me dar ao trabalho de descobrir exatamente qual é, mas que deu aos estelionatários uma arma antes inimaginável: notas fiscais que desaparecem sozinhas, como os textos daquelas canetas que se vendiam em lojas de mágica para pregar truques nos incautos. Notas fiscais “de brincadeirinha”, que viram papéis em branco guardadas na gaveta junto com os documentos de garantia do bem que se comprou e pelo qual se pagou caro.
As coisas que são impressas em impressoras térmicas, como as dos caixas eletrônicos, só servem como referência rápida. Mesmo guardando aquilo com todo o carinho do mundo, a tinta inexoravelmente vai sumir, num truque de mágica de mau gosto. E quando ela sumir o documento vai se transformar numa folhinha amarela que só serve de papel de rascunho.
Mês passado um amigo meu, gente da roça, absolutamente desprovido do tipo de raciocínio que orienta as ações desse tipo de estelionatário, teve na prática sua bicicleta motorizada roubada pelo governo, exatamente deste modo. Um guardinha o parou no caminho da venda (é a única casa de comércio num raio de um ou dois quilômetros; tem de tudo, de lança-chamas a salsichas, passando por galinha assada e cerveja gelada) e, por implicar com a cara dele (ele é feio mesmo, tadinho, mas é muito boa gente), exigiu que apresentasse a nota fiscal da bicicleta para provar que era dono dela. Este, aliás, é um mecanismo muito comum de humilhar pobres. Nunca vi guardinha pedir nota fiscal de bicicleta de rico.
Mas do meu amigo, que literalmente come seu pão do suor do seu rosto e tem para prová-lo as mãos grossas, calejadas e grosseiras de quem pega cotidianamente na enxada, o guarda queria a nota fiscal. Ele, evidentemente, não a tinha consigo. Nem da bicicleta, nem do telefone (daqueles com botões, que telefone “de dedo” ele não sabe usar), nem de mais nada. Papéis para ele são coisas importantes e vagamente poderosas e incompreensíveis, que é melhor guardar num saco dentro de uma gaveta que ficar levando para passear. Resultado: o guardinha apreendeu a bicicleta motorizada dele, pela qual ele pagara à vista coisa de três mil reais (ele não deve nada a ninguém. Nunca deveu e não pretende jamais dever!). Esta quantia para ele é uma pequena fortuna, e foi a economia de um bom tempo de trabalho, enterrando o dinheiro num pote plástico na horta até ter o suficiente para entrar, altivo, numa dessas lojas de departamentos e sair pilotando seu veículo zerinho. Instruiu-o então o guardinha a levar a nota fiscal ao pátio de veículos apreendidos, onde teria de pagar uma taxa de reboque e uma espécie de taxa de estacionamento, mas recuperaria sua propriedade.
E lá se foi o meu amigo a pé para casa, chutando pedras de raiva e de humilhação por ter sido tratado como um ladrão em potencial que precisa provar sua honestidade, para pegar a bendita nota fiscal. Abriu a gaveta em que guarda seus documentos mais importantes, pegou o envelope plástico em que estava o manual da bicicleta motorizada e, grampeado ao manual, encontrou… uma longa fita de papel amarelo absolutamente liso, sem escrito algum. Era o que restara da nota fiscal, impressa em papel térmico porque algum salafrário sem mãe baixou uma lei permitindo que notas fiscais sejam impressas num meio que se autodestrói como as mensagens secretas dos espiões da Guerra Fria.
O resultado desse crime por parte do Estado, dessa concretização do sonho do improvável concílio dos estelionatários, foi simples: ele perdeu sua bicicleta motorizada, pelos crimes conjuminados de ser pobre com cara de pobre e de achar que uma loja de departamentos – para ele uma loja muito chique, rica, poderosa e digna de respeito – nunca lhe daria, como garantia única da propriedade de um bem que para ele é caríssimo, um papel mágico, uma pegadinha, uma piada de mau gosto que se apaga sozinho. Agora a bicicleta dele vai ficar estragando no pátio da polícia por mais alguns anos e um dia será vendida como sucata. Ele a perdeu, exatamente como se houvesse sido roubado a mão armada.
Pois para mim, que me perdoem os burocratas envolvidos, o nome disso é roubo. Roubaram a bicicleta do meu amigo. E quem a roubou não foi o guardinha; este só humilhou desnecessariamente um homem pobre e honesto, o que talvez seja até um pecado mais grave ainda: afinal, disse Nosso Senhor que o que fizermos ao menor dos irmãos a Ele o fizemos. Pois o guardinha humilhou Nosso Senhor na pessoa do pobrezinho de cuja bicicleta motorizada ele exigiu o documento, e o Estado então roubou aquele pobre ao exigir um documento que ele mesmo permitiu que fosse emitido num meio que se apaga sozinho.
Isso, curiosamente, não acontece com as escrituras das fazendas dos milionários, nem com os documentos de suas ferraris. Isso não acontece com a documentação de helicópteros e jatinhos. Mas acontece com nota fiscal de bicicleta, que é coisa com que pobre e gente com cara de pobre precisa andar para não ser humilhado e roubado por aqueles que deveriam protegê-lo. Acontece com os recibos das contas que pagamos no banco. Acontece com um monte de papéis que são a única prova legal de uma propriedade, especialmente da propriedade de um pobre. Quanto mais pobre, maior a chance de só ter notas fiscais impressas em papel de pegadinha, em papel de fazer estelionatário feliz, em papel que se apaga na aparente segurança do fundo da gaveta, quietinho, guardadinho com os demais documentos importantes. Que, eles também, podem estar aos poucos se transformando, à la Harry Potter, em tiras de papel amarelo sem uma letrinha que seja remanescente,
No país do voto eletrônico, em que botões geram bits e bytes que ninguém tem como contar ou recontar, sendo necessário confiar nessa honestíssima casta de políticos e burocratas que só pensa em perpetuar-se no poder, os pobres não têm mais direito, desde a invenção da nota fiscal em papel térmico, à segurança na propriedade de seus próprios bens.
Sei que a chance de isso ser mudado é nula, mais ainda por ser algo que praticamente só causa prejuízos relativamente substanciais a gente sem poder nenhum. Da classe média pra cima o máximo que isso pode causar é uma chateaçãozinha da qual já se ri no dia seguinte, ao contar aos amigos o que aconteceu. Mas aos pobres, não. Esses são espoliados, esses perdem o direito à propriedade do que compraram honestamente com o suor de seu rosto, porque o maldito papel que lhes foi dado é coisa de loja de mágicas, é uma piada, é um papel cujos escritos desaparecessem como se jamais houvessem existido.
Isto é um crime, e é uma vergonha para todos nós. E eu, como brasileiro, tenho vergonha de saber que não foi uma gangue de facínoras, mas sim a polícia, a nossa própria polícia, que tem por ofício defender o cidadão e seus bens, que tomou a bicicleta motorizada de um homem honesto, e não vai devolvê-la porque as Casas Bahia, Lojas Cem ou sei lá quem foi que a vendeu ao pobrezinho deu-lhe uma “pegadinha”, um papel que apaga sozinho, como prova única da propriedade do que para ele era seu bem mais caro e importante.
É esse tipo de coisa, esse tipo de desrespeito absoluto e completo à cidadania dos mais pobres, que garante que chamar o Brasil de “democracia” não é só piada: é tripúdio, é humilhação dos mais pobres, mais fracos e mais desprotegidos. Que Deus tenha misericórdia deles e os proteja, porque a sociedade que deveria fazê-lo não o faz.