O coronga está trazendo à luz o melhor e o pior das pessoas. E dentre as piores coisas que ele vem trazendo está aquele velho inimigo da humanidade, surgido de suas próprias entranhas, a ganância. Trata-se, aliás, de um fenômeno curioso, que já havia sido estudado bastante nos Estados Unidos, em que jamais a forma coletivista da ganância – o socialismo – conseguiu muita tração justamente por haver um “sonho” americano de ganância individual. Cada americano se percebe como um milionário em potência, normalmente “passando por um mau pedaço”. Mas o sonho de enriquecer, o sonho de ter uma mansão gigantesca com torneiras folheadas a ouro, um avião e sei lá mais o que sonham essas pessoas, nunca deixa de estar presente na forma de uma esperança. O resultado é que o americano médio sempre se levanta contra os impostos sobre as grandes fortunas, por exemplo, por ter a esperança de ser um dia o possuidor de uma, mesmo que no momento esteja vivendo do seguro-desemprego ou coisa parecida.
E eis que no Brasil o mesmo fenômeno se alevanta, o que é bastante curioso quando se pensa que vivemos em uma sociedade estamental, em que é extremamente difícil mudar de classe, ao contrário do que ocorre entre nossos irmãos do norte. Criou-se (ou melhor, importou-se dos EUA, como vem sendo a moda desde que a internet deu a todos os que leem algum inglês a possibilidade de importar as imbecilidades americanas e multiplicá-las pelo número de monoglotas que os ouvem ou leem) uma dicotomia binária absurda. Outra. Isso cansa. Esta se coloca entre uma quarentena absoluta, em que nem mesmo só hospitais ou mercados estariam abertos, e um “bóra pra rua” generalizado, como se pandemia não houvesse. Para os defensores desta segunda besteira, a pandemia realmente não existe. É só uma gripezinha. Só quem vai morrer são velhos inúteis. Para os daquela, o único modo de não morrermos todos seria passarmos a eternidade trancados dentro de casa.
Ora, evidentemente não é o caso nem de uma nem de outra imbecilidade. Um meio-termo sempre é possível, e virtus in medio: a virtude está no meio-termo. Mas que dá um certo medo, lá isso dá. Não há como não temer pelo futuro do país, do que deixaremos para nossos filhos e netos, quando um discurso alucinado, completamente economicista, deixa de lado o que deveria ser evidente, ou seja, que a economia deve servir às pessoas (não ao “povo”, este ente de razão, sim a cada uma pessoa, a cada uma família) em prol de uma proposta absurda de continuar a manter funcionando o que, em última instância, é um sistema frenético de malabarismo, em que as pessoas são as bolas mantidas no ar pela produção de nada somada à destruição de tudo. Já tratei disso em coluna recente, e por isso posso me dar ao luxo de não avançar no tema.
O americano médio sempre se levanta contra os impostos sobre as grandes fortunas por ter a esperança de ser um dia o possuidor de uma, mesmo que no momento esteja vivendo do seguro-desemprego
Observo, todavia, que na dicotomia binária muito louca que se instaurou aqui, graças à importação de imbecilidades nortenhas, perdeu-se completamente de vista algo essencial na Doutrina Social da Igreja, que sempre orientou e informou, ainda que de modo inconsciente, a visão brazuca da economia. Esqueceu-se completamente que a economia, o dinheiro, o enriquecimento, a acumulação de tesouro material, não é nem pode ser um fim em si, um bem em si. Mais ainda, os partidários do economicismo mais delirante, os que acham que a loja da Apple ou os bordéis realmente são absoluta e completamente necessários para a sustentação da civilização (ou do que resta dela), negam frontal e abertamente que a propriedade particular tenha limites. Que ela não seja absoluta, que ela não seja um bem em si, ou mesmo um fim em si. Para eles, ninguém pode tocar na fortuna dos especuladores.
Cheguei a ter o desprazer de ver gente que deveria saber melhor dizer que são “os socialistas”, ou mesmo “os comunistas”(!), que propõem que neste momento de pandemia, em que pais de família se veem privados de trabalhar (ou forçados a escolher entre a morte certa da fome e a incerta da doença), deva ser cobrado algum tipo de imposto sobre as grandes fortunas, como se valesse mais manter recheadas as contas bancárias dos ziliardários que dar de comer a quem tem fome. Gravei por conta desta alucinação coletiva um vídeo sobre os limites da propriedade particular segundo São Tomás de Aquino, e retomo aqui – visto ser outro o público – a explicação.
O primeiro ponto que o Doutor Angélico explica é que há, sim, um direito à propriedade particular. Ele existe por três razões. A primeira delas é que cada pessoa cuida melhor do que é seu. Isto é perfeitamente percebido nos casos de coisas que pertencem a muitos, e na prática acabam não pertencendo a ninguém. O trato que um funcionário dá ao carro ou ferramenta outra qualquer da empresa ou da repartição é muitíssimo diferente do que dá ao próprio, por exemplo. Outro exemplo, ainda mais forte, é o que ocorre inevitavelmente quando partidos comunistas tomam o poder e transformam em “cooperativas” de propriedade comum todas as indústrias e fazendas: a produção imediatamente despenca, o equipamento é quase todo perdido por manutenção inadequada etc. O que engorda o boi, diz com razão a voz do povo, é o olho do dono.
A segunda razão é a necessidade de que haja um encarregado do cuidado de cada coisa. O delírio marxiano segundo o qual cada um poderia ser caçador de manhã, pescador à tarde e crítico literário à noite é apenas um delírio. Com cada um cuidando do que lhe pertence e assim fazendo o que faz bem, a coisa estará bem cuidada; já se ela pertence a todos, e cuida dela quem por acaso está perto ou o deseja por alguma razão outra, o que se tem na prática é que o cuidado inevitavelmente será negligenciado. O terceiro, finalmente, é que havendo uma divisão nítida de propriedade, a chance de haver disputas pela posse momentânea deste ou daquele objeto é ínfima. Já quando algo pertence a todos indiscriminadamente, sempre haverá quem queira o uso daquele objeto enquanto ele está sendo usado por outros. Quem quer que tenha tido filhos sabe perfeitamente bem como isso se opera.
Percebamos, no entanto, que estas razões não dão à propriedade particular um valor absoluto. Afinal, tudo que existe tem um mesmo princípio primeiro, que é Quem a tudo criou: Deus. Assim, para que o uso de algo seja moralmente bom, ele deve ter como fim último, como objetivo final, por assim dizer, o mesmo Ser que é seu primeiro princípio. Tudo o que temos, assim, é de Deus e deve ser para Deus. Isto, todavia, não significa que devamos, por exemplo, “separar para Deus” as coisas e deixá-las escondidas ou queimá-las em sacrifício! Ao contrário: fazer com que o fim último de cada uso seja Deus consiste justamente em reconhecer a destinação universal dos bens. Quem é rico é na verdade mero administrador de bens que são de Deus e para Deus. E, como administrador, ele tem a obrigação de garantir que estes bens sejam bem distribuídos a quem tem necessidade deles. Cita São Tomás as duras palavras de Santo Ambrósio: “o que passa do necessário para o uso é obtido pela violência”, ou seja, é um roubo – mais que mero furto – do que pertence ao próximo. Ao pobre. Ao faminto. Ao pai de família preso dentro de casa pela epidemia, olhando a despensa vazia enquanto seus filhos gemem de fome.
Somos todos tesoureiros da Divina Providência, e não podemos ter a ilusão de que as coisas criadas, as coisas de Deus, as coisas que d’Ele vieram, sejam “para nós” apenas. Nós não somos nem poderíamos jamais sonhar ser o fim último das coisas criadas. Mesmo um pedaço de terra, por exemplo, que tem e deve ter um dono, estava lá muito antes dele e continuará lá depois dele. A sua propriedade daquela terra não é apenas transitória no tempo (de Cabral para cá, quantas vezes terá mudado de mão a terra em que vive cada um de nós?), mas também, dentro de cada momento, sofre o que a Igreja sabiamente chama “hipoteca social”. Ela é de Deus e para Deus, e seu administrador naquele momento é o seu proprietário. Sua propriedade, todavia, continua sendo de Deus e para Deus. E é no próximo, no menor dos irmãos, no mais fraco, no fraco, no pobre, no faminto, que encontramos Deus nesta vida. Assim nos ensinou o próprio Senhor ao dizer que é a Ele que alimentamos quando damos de comer a quem tem fome, a Ele que saciamos a sede quando damos de beber aos sequiosos, a Ele que agasalhamos quando vestimos os desnudos.
Quem é rico é na verdade mero administrador de bens que são de Deus e para Deus. E, como administrador, ele tem a obrigação de garantir que estes bens sejam bem distribuídos a quem tem necessidade deles
O resultado disso é que na moral que criou a nossa sociedade (mas não a sociedade americana) é mais que sabido que há limites, e limites bem estritos, para a propriedade particular. Afinal, ela é, repito, mera administração de algo que é de Deus e para Deus. Administramos esses bens não para nós – pois isso seria fazer de nós o seu fim último –, mas para o próprio Senhor, que encontramos no menor dos irmãos. Administramos para melhor distribuir, por assim dizer. Para que o dinheiro não seja “estéril”, e possam ser multiplicadas as riquezas e assim saciados os famintos.
O trabalho – que é a causa próxima da riqueza – consiste, via de regra, na criação de bens. Uma pessoa que tome tufos de solo argiloso, palha e lenha, coisas sem valor monetário quase algum, e os transforme em tijolos está criando riqueza. Tijolos são bens que podem ser vendidos para alimentar sua família; lama, palha e lenha não. É justo que ele coma do fruto de seu trabalho. Não seria justo, todavia, que ele tomasse os frutos de seu trabalho e os entesourasse debaixo da cama. Eles não são só seus; são de Deus, para Deus. E é no próximo, no fraco, no faminto, que O encontramos neste mundo.
Seria absurdo que um pai de família fizesse sua esposa e seus filhos passarem fome, doando tudo o que tem. Mas é igualmente absurdo que ele deixe seus vizinhos passarem fome quando a sua despensa está abarrotada.
E vivemos agora em “tempos interessantes”, como na proverbial maldição chinesa. Tempos interessantíssimos, diria eu. E são, como sempre, os mais pobres os que mais sofrem. Afinal, os funcionários públicos têm a sua paga garantida, e os ricos têm fartas reservas entesouradas com as quais sobreviver, mesmo pagando caro por comida encomendada dos melhores restaurantes a cada refeição, fazendo da clausura forçada algo diferente, mas não necessariamente muito pior que a “normalidade” que jamais retornará. Já o pobre, no mais das vezes, no nosso país vive da mão para a boca: o que ele conseguir ganhar durante o dia será o que comerá à noite. A alimentação de cada família pobre depende do fruto do trabalho do dia, sem que haja sequer a possibilidade de acumular reservas.
Num momento como este, o que já era uma obrigação dos mais ricos – alimentar o irmão faminto, pois ele é o próprio Cristo disfarçado andando entre nós – passa a ser ainda mais premente. Na loucura por que a sociedade vem passando, todavia, isto é esquecido por todos os lados. No afã das autoridades de manter a quarentena, anteontem mesmo um empresário de Paraty, no estado do Rio de Janeiro, foi preso ao tentar distribuir cestas básicas entre os muitos miseráveis de sua cidade. Enquanto isso, do outro lado da pseudodialética binária, outros querem que sejam levantadas as restrições momentâneas ao direito de ir e vir, mas ao mesmo tempo horrorizam-se à simples ideia de tomar à força dos ricos o que eles se recusem a dar.
Ora, esse empresário fluminense infelizmente não é a regra, mas a exceção. Outros há como ele, graças a Deus, mas muitos continuam a entesourar tudo o que têm enquanto os pobres são deixados ao Deus-dará. Ora, é por nossas mãos que Ele dá; somos todos, repito, tesoureiros da Divina Providência. Num momento como este é perfeitamente aceitável que a sociedade – em seu representante, o Estado, preferencialmente na instância dela mais próxima de cada um: a prefeitura, por exemplo – tome pela força o que na verdade não é propriedade protegida pelo mandamento de não roubar, sim fruto de roubo. Exatamente como a polícia pode e deve tomar e devolver aos seus legítimos donos os bens encontrados no covil de um receptador de bens roubados, ela pode e deve tomar de ricos que se recusem a dar aos pobres parte dos muitos bens que têm em seu poder. Parte de sua propriedade, ou seja, daquilo cuja responsabilidade de distribuição é deles, e que eles se recusam a distribuir.
Este poderia ser o momento de uma reforma radical do sistema de impostos brasileiro, deixando de roubar do pobre e passando a taxar o supérfluo entesourado, e só ele
O nome disto, aliás, é “imposto”: o imposto só deveria – ou melhor, só poderia, em termos morais – ser cobrado sobre o que é supérfluo. Mas não é o que faz o horrendo sistema hipercentralizado de nosso país. Aqui quem mais paga impostos, proporcionalmente ao que ganha, é (in)justamente o mais pobre. Ao comprar um quilo de feijão, a maior parte do que o pobre paga consiste na verdade em impostos. Impostos iníquos, sinistros. Rapinagem feroz e selvagem por parte do Estado. Ao mesmo tempo, o mais rico tem milhões de maneiras de descontar isto ou aquilo, ou de colocar seus dinheiros de tal forma que praticamente nada pague em impostos dos lucros que tem. O pobre banca o Estado inchado, e o rico – em termos proporcionais – nada paga.
Este poderia ser o momento de uma reforma radical do sistema de impostos brasileiro, deixando de roubar do pobre e passando a taxar o supérfluo entesourado, e só ele. Não seria difícil, por exemplo, fazer com que doações a instituições de caridade fossem abatidas integralmente do imposto, bem como investimentos em empresas que gerem empregos, enquanto fossem eliminados os obscenos impostos sobre comida, água e remédios.
Proudhon estava errado quando disse que a propriedade privada é roubo. Mas Santo Ambrósio estava certo ao dizer que a propriedade entesourada e negada aos famintos, esta sim, o é.
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