Conheço sala de aula. Com mais de três décadas de magistério, já passei por poucas e boas; de assédio sexual por alunas a revólver apontado para a minha cara por aluno, já passei por muita coisa no ambiente escolar e universitário. É um pouco por isso que não me espantei imediatamente com a notícia da pobre professora que foi surrada por um aluno que havia posto para fora da sala; já tive alunos que só pensaram duas vezes antes de fazer isso comigo por verem na minha cara que não seria tão fácil como deve ter parecido surrar uma senhora de idade.
Veio depois à tona, graças à perda total da intimidade de opinião ocasionada pelas redes sociais, que a pobre senhora cujo rosto deformado tanto coloriu a minha tela defendia abertamente a violência contra os “inimigos políticos” da esquerda, chegando a afirmar que havia quem merecesse levar um soco na cara… como ela mesma veio a levar.
Quem a esbofeteou não foi um inimigo político, mas um aluno revoltado por ter sido posto fora de sala. Ou será que ele se percebia, de uma certa forma, como inimigo político? Será que ele não se considerou tremendamente injustiçado ao ser “exilado pela ditadura” da sala de aula e viu na mestra, naquele momento, exatamente o “opressor” que ela e tantos outros professores de extrema-esquerda ensinaram a odiar e a atacar fisicamente, dentro de um processo revolucionário de desmanche das estruturas sociais, negação da hierarquia e afirmação dos supostamente oprimidos?
Nada justifica que um rapaz dê um soco na cara de uma senhora que poderia ser sua avó. Ele não teria o direito de fazer isto se ela houvesse genuinamente causado mal a ele; ele não poderia fazer isso nem mesmo se ela o houvesse atacado fisicamente, na medida em que seria facílimo interromper o ataque dela sem recorrer a tais meios.
É isso, todavia – esse apelo à violência como forma de expressão, essa negação do hierárquico e do respeito – o que vem sendo ensinado em nossas escolas desde que os seguidores do famigerado Paulo Freire conseguiram convencer os professores de que sua função é preparar revolucionários, não “depositar bancariamente conteúdos na cabeça dos alunos”. Em vez de “depositar conteúdos”, os professores passaram a priorizar a distorção dos mecanismos de reconhecimento da realidade herdados dos ancestrais e aprendidos no colo dos pais, de modo a fazer dos alunos agentes de mudança social. Ora, são coisas radicalmente diferentes estudar e tornar-se revolucionário. O estudo pode e deve mesmo ser meio de mudança pessoal – de tornar-se uma pessoa melhor, mais sábia ou, ao menos, menos ignorante, ou mesmo de ascender economicamente –, mas mudanças sociais são necessariamente ações de massa.
Fazer do aluno um agente de mudança é fazer dele membro de uma massa, não aprimorar o indivíduo. É uma diminuição do aluno e a negação do próprio sentido estrito do termo “educação”, que etimologicamente significa “conduzir para fora” dessa mesma massa. O “idiota” é, também etimologicamente, aquele que só conhece uma coisa, o que só vê o mesmo por toda parte. Tornar o aluno parte de uma massa, como necessariamente é feito para que ele se torne agente de mudança social, significa em última instância torná-lo um idiota; é o oposto de educá-lo. E negar a hierarquia é negar a diferença entre o aluno que aprendeu mais e aluno que aprendeu menos, entre o mestre e o discípulo, entre o ignorante e o instruído, o belo e o feio, o certo e o errado. É negar, de outra maneira ainda mais perniciosa, a educação.
Afinal, hierarquias são fatos da natureza, não “agentes de opressão”, ainda que possam ser usadas para oprimir. Tudo no universo é hierárquico. A Terra gira em torno do Sol, e a Lua em torno da Terra. As mãos dependem dos braços, que dependem do tronco, que nada faz sem a cabeça. Fazer perceber isso, e a beleza e a grandeza disso, é parte da verdadeira educação.
Tudo se presta a um mau uso, e não é o fato de poder haver um Stalin ou um Hitler que faz com que não deva haver governantes. Mas os alunos vêm sendo ensinados por mestres como a pobre senhora que cuspiu para cima e recolheu o cuspe lançado na forma de um covarde soco no olho a não apenas examinar os atos dos hierarcas, mas a lutar contra a própria existência de hierarquias. A não apenas debater, mas usar a força para calar o adversário. Isto acaba inexoravelmente conduzindo a uma hierarquia da força, em que um moleque de 15 anos cala com os punhos uma provecta senhora.
A culpa do ataque é toda do atacante. Como já escrevi, nada justifica e nada poderia tornar aceitável tamanha covardia. É, contudo, fato que os adolescentes estão sendo treinados para isso pelas escolas, que parecem ter abandonado em bando a sua missão precípua. Os professores de ensino fundamental e médio, em sua imensa maioria, são hoje semianalfabetos, incapazes de escrever um parágrafo sem erros crassos de português. A própria matéria lecionada (o “conteúdo bancário” paulofreiriano) é conhecida por eles… bancariamente, como seu mestre denuncia: os professores de Física parecem infelizmente, em grande parte, incapazes de aplicar as fórmulas que ensinam a qualquer coisa que seja fora do quadro-negro; os de Química, se forçados pelas circunstâncias e auxiliados pela falta de princípios, não parecem em nada capazes de fazer como o personagem do seriado Breaking Bad e tornar-se supercriminosos, produzindo drogas e explosivos como um mágico faz feitiços. E o mesmo se aplica a todas as demais matérias. Como na velha piada, o Estado finge que paga, o professor finge que ensina e o aluno finge que aprende.
Para botar nos trilhos novamente a educação brasileira, lamento observar, serão necessárias algumas gerações. Não se cria mestres por mágica. Hoje, via internet, começa a haver meios de formação mais sérios que a palhaçada política de extrema-esquerda que se tornaram as universidades (não que quaisquer outras vertentes políticas ou religiosas que tentassem fazer da escola mero instrumento para propagação de suas ideias não fossem igualmente daninhas; a extrema-esquerda é apenas quem teve a manha de fazê-lo, seguindo os conselhos argutos do daninho pensador italiano Antonio Gramsci).
Mesmo assim, se uma moça ou rapaz começa hoje a estudar – sem abandonar o processo de obtenção de diplomas universitários e demais amuletos necessários à ação posterior –, pode contar sem medo dez anos de estudos intensivos para conseguir desfazer o mal feito pela má escola e o difícil processo de dominar técnicas e meios necessários à aprendizagem real. Um ou dois anos de estudo intensivo, com um bom mestre, podem levar ao conhecimento do idioma necessário a entender o que se lê e a expressar-se com precisão. Mais um ano ou pouco mais para aprender o básico de lógica material. Idealmente, mais alguns meses de estudo de retórica para que se saiba trafegar entre os registros da língua e tornar menos penosa a leitura do que se tem a dizer. É o Trívio, o trivial do pensamento, o mínimo necessário para que se possa pensar por conta própria. Aí, então, se está pronto para aprender algo mais. Ainda idealmente, daí se teria mais um ano para a metafísica, para saber diferenciar alhos de bugalhos; outro tanto para a antropologia filosófica, para não confundir amor e atração erótica etc.; mais um tempinho para a psicologia, e por aí vai. Só depois se poderia absorver com proveito o que se venha a aprender em áreas outras do conhecimento, sendo-se plenamente capaz de inserir o que se aprenda em um todo de conhecimento, em uma visão de mundo complexa e multifacetada, em vez de simplesmente decorar “bancariamente” conteúdos.
Quantos o farão agora? Muitos, graças a Deus e à internet, mas nem perto do necessário. É uma obra patriótica tentar sair da ignorância quase absoluta a que nos condena o sistema educacional brasileiro atual. Quem sabe se, fazendo a nossa parte, daqui a 100 anos não teremos um país em que os professores ensinam e os alunos aprendem, sem que ninguém precise fingir nada. E sem que alunos se julguem “oprimidos” e se considerem justificados ao socar a cara de uma pobre senhora, percebida por eles como “opressora” por terem sido adestrados por ela e seus colegas para violar todas as hierarquias. O trabalho será longo e árduo, mas se cada um tentar fazer a sua parte agora temos alguma chance de um dia conseguir sair deste buraco. O que não adianta é esconder o sol com uma peneira e fingir que o problema da educação é falta de verba ou qualquer outra irrelevância. O buraco é muito maior, mais fétido e mais embaixo.
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