Biden despacha como presidente eleito dos EUA.| Foto: Reprodução/Facebook/Joe Biden
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Há já mais de 45 anos que Hannah Arendt escreveu que “um povo que não mais consegue acreditar em nada tampouco consegue tomar decisões. Ele se vê privado não apenas de capacidade de ação, mas também de capacidade de pensar e julgar. E de tal povo pode-se fazer o que se quiser”. Pois no fascinante (para sociólogos; para pessoas normais, está bem mais para aterrorizante) processo de derrocada da dita Era das Luzes, a civilização moderna, é este o ponto em que estamos.

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Basta ver, por exemplo, como estão as coisas no epicentro da frustrada tentativa de criar uma ordem social baseada em contratualidade e hipersimplificação da realidade. Este epicentro são os Estados Unidos, o único país que, como disse Chesterton, não é nacional, mas ideológico. Ora, a nação moderna veio da destruição de base ideológica de infinitas naçõezinhas, todas forçadas a aderir à cultura, língua e hábitos do centro do poder. Na França pré-revolucionária, por exemplo, havia centenas de idiomas. Hoje todo mundo lá fala é francês, ainda que os ferozes bascos, no sul, continuem a também falar entre eles em sua incompreensível língua própria. Em alguns lugares, como projeto cultural, está-se tentando ressuscitar algumas línguas dos centros regionais d’outrora (o bretão e o ocitano estão passando por este processo), o que já indica uma dissolução do projeto nacional moderno.

Nada mais moderno, todavia, que os EUA. São tão modernos que nem nome têm; afinal, “estados unidos” é uma descrição do sistema federativo de governo, e “América” é o nome do continente. Logo, “Estados Unidos da América”, semanticamente, é cognato de, por exemplo, “estados sulistas do Brasil”. É um país sem nome, mas com uma ideologia tão forte que levou o que começou como meia-dúzia de fanáticos religiosos que se estabeleceram no atual nordeste dos EUA a exterminar toda a população duma vasta região, matando milhões de pessoas até conquistar um território que se estende de oceano a oceano. Depois de conquistado o território “básico”, aquele país passou a atacar quem estava por perto, anexando 60% do território mexicano e praticamente destruindo o já decadente império católico espanhol.

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Os Estados Unidos são o único país que, como disse Chesterton, não é nacional, mas ideológico

Tudo isso foi motivado por um pensamento ideológico tremendamente iluminista; não é à toa que a Revolução Americana predate de dez anos a Francesa. Ambas são construções ideológicas, sistemas de controle de território em que se tenta instaurar uma pseudo-ordem imposta de cima para baixo. Este sistema, todavia, está já acabando. Deixo a França de lado porque a situação de lá não nos afeta tanto, enquanto a dos EUA tem um potencial de destruição cada vez mais próximo de se tornar real.

Um dos centros da ideologia iluminista é o Estado como religião substituta. Na França coroaram uma prostituta peladona em cima do altar-mor da Catedral de Notre Dame como “Deusa Razão”, inconscientemente concordando com a triste afirmação de Lutero de que a razão seria uma prostituta. Já nos EUA a religião cívica, desde praticamente o início do experimento sociológico maçônico que foi a criação do novo país, tomou outra forma. Imitou-se nela, ao menos na estética, o paganismo romano, com edificações de mármore branco com colunas e frontões e com domos à guisa de teto espalhando-se pela capital. O paganismo romano estava presente, inclusive, nos pseudônimos usados pelos construtores daquela ideia de país que se foi espalhando como uma onda de melado por toda a região. Via-se, desde o início, aquele território habitado exclusivamente por não iluministas (os coitados dos índios) como estando “vazio”. O esvaziamento total, a construção duma tábula rasa pela morte dos habitantes originais, foi feito sobre esta premissa.

Nessa religião cívica, a Casa Branca e o edifício do Congresso faziam as vezes dum Vaticano, e muitas passagens bíblicas referentes à Igreja passaram a ser aplicadas ao novo experimento (“cidade sobre a montanha”, “candeia que não pode ser posta debaixo do alqueire” etc.). Destarte, nos EUA muito mais que em qualquer outra parte, por tratar-se dum país que não tinha como “base” uma (geralmente mítica) nação preexistente, a religião cívica chegou a um ponto que só encontra paralelos na Modernidade nos cultos à personalidade comunistas. O presidente passou a ser visto como um semideus, com até mesmo o mito da incapacidade do primeiro deles de sequer proferir uma mentira. A Constituição virou, para esta religião, o que a Bíblia era para os adeptos do protestantismo que formaram a maior parte dos EUA. A Suprema Corte e o Congresso, do mesmo modo, tornaram-se intérpretes autorizados da nova escritura sagrada. E por aí vai.

Colocadas em segundo plano, as diferenças religiosas dentre os habitantes passaram a ser coisa de foro íntimo e individual, negando basilarmente a comunidade cristã da Igreja. Pode-se dizer, duma certa maneira, que a prática religiosa americana coloca-se para com a religião cívica como as irmandades e fraternidades colocam-se para com a Igreja: são tidas por coisa muito boa, desde que não se levantem contra a Igreja de que fazem parte. Daí até, dada a repulsa visceral contra a Igreja sempiternamente presente no projeto iluminista e maçônico daquele triste experimento social, explica-se a bizarra presença da bandeira americana (com a do Vaticano do outro lado, para “ornar” melhor) no presbitério das igrejas lá situadas. É como queimar incenso a César, a meu ver: é um modo de declarar que o Deus católico insere-se no Panteão da religião cívica. Em outras palavras, uma abominação idolátrica a que muitos mártires preferiram a morte.

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A eleição, por sua vez, bem como suas peculiaridades locais, sempre foi um dos pontos-chave da religião cívica americana. Desde o início procurou-se combater a democracia, temida como “ditadura do populacho”. No começo o voto era censitário, restrito basicamente à elite. Além disso, outros mecanismos procuravam tirar dos pobres e humildes o poder do voto. Por exemplo, a quantidade de escravos (que, claro, não tinham direito a voto) de cada estado aumentava-lhe o valor do voto da elite local. Como cada escravo valia 3/5 de um homem branco, se não me falha a memória na proporção, o voto do senhor de 100 escravos valeria 61 vezes mais que um voto dado em outro estado. O Colégio Eleitoral, ou seja, uma forma de eleição indireta e ponderada pelos estados para garantir alguma voz aos estados rurais, menores e com menos habitantes, é ainda outro mecanismo de defesa contra a democracia.

Pois esta religião está se esboroando diante de nossos olhos. Salta primeiro aos olhos a roubalheira absurda, efetuada na cara dura, nas diversas eleições estaduais que compõem, juntas, a eleição presidencial. De máquinas que davam a cada voto computado para Biden peso 1,3 e 0,7 aos dados a Trump ao surgimento “mágico”, na calada da noite, de urnas com 100% de votos para Biden, passando por zonas eleitorais com mais de 780% de presença (ou seja, 7,8 votos por eleitor registrado), isto seria, em condições normais, o maior escândalo da história americana. Lá já houve corrupção forte, assumida e entranhada no processo político, como a gangue democrata de Tammany Hall, que dominou as eleições novaiorquinas por anos. Uma fraude tão evidente e tão abrangente, mormente numa eleição para presidente, contudo, já é outra coisa.

A eleição sempre foi um dos pontos-chave da religião cívica americana. Desde o início procurou-se combater a democracia, temida como “ditadura do populacho”

Ao mesmo tempo soma-se a parcialidade evidente e assumida da mídia tradicional, bem como a súbita “virada de casaca” da Fox News no próprio dia da eleição. As inúmeras ações políticas e judiciais encetadas pelos republicanos para desfazer a roubalheira são simplesmente ignoradas. Duma entrevista coletiva sobre elas, dada pelo advogado pessoal do presidente (e raposa velhíssima e felpudíssima da política), só houve notícias por sua tinta de cabelo lhe ter escorrido pelo rosto; nada se disse sobre as fraudes ali denunciadas por ele. Mais impressionante ainda foi o também antes inconcebível gesto de toda a mídia simplesmente parar de transmitir no meio dum discurso presidencial, trocando subitamente o presidente por jornalistas explicando seus “erros”. É a religião cívica desabando como um colosso de pés de argila.

Isto era previsível desde o início; afinal, a cultura calvinista dos fanáticos religiosos que povoaram o nordeste americano apresenta um dualismo de proporções quase maniqueístas. Aqueles que não seguiam à risca a regra de vida daquelas sociedades erigidas sobre bases religiosas eram expulsos ou – como ocorreu com as ditas “bruxas” de Salém – mortos. Para essa cultura, é-se bom, eleito predestinado ao Céu, ou mau, réprobo predestinado ao Inferno. Ainda que transformada em uma visão de mundo totalmente imanentista, em que o antigo eleito torna-se um “vencedor” (leia-se rico) e o antigo réprobo torna-se um “perdedor” (pobre), o dualismo sempre esteve presente. Houve sempre uma diferenciação brutal entre os “de dentro” e os de fora, sendo estes percebidos como malévolos ou imbecis.

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Criaram-se contudo, exatamente devido à intolerância radical do outro, dois grupos diferentes, para os quais o outro é demoníaco e intrinsecamente mau. Esta eleição foi apenas um retrato desta guerra entre dois grupos totalmente desprovidos de tolerância. Um, representado pelo atual presidente (ainda que seu pertencimento a este grupo seja uma farsa, um teatrinho adotado por razões políticas), domina o interior. O outro, cuja fachada eleitoral foi a raposa velha Biden, domina o litoral, grande parte das megalópoles do interior e, mais importante, toda a mídia. Desde o dia da eleição, aliás, também a Fox.

São duas visões diferentes e irreconciliáveis do que seja bom para os EUA. O que para um lado é demoníaco é glorioso para o outro, e vice-versa. Somando-se esta peculiaridade cultural advinda da imanentização do calvinismo à pseudomoralidade tão bem descrita por Chesterton em seu texto sobre a “moral americana”, tem-se uma guerra total – coisa, aliás, inventada pelos próprios americanos durante sua Guera Civil – em que simplesmente vale tudo. Afinal, não é como se o oponente não fosse um demônio encarnado, não é mesmo? O que valeu para os habitantes nativos dos EUA vale agora, mutatis mutandur, para os adversários políticos. Uns poucos milhões de votos roubados tornam-se troco de pinga.

Ambos os lados, todavia, têm uma forte e incontestável base moderna no seu pensamento, que é totalmente ideológico. E estamos no momento do processo histórico de sucessão de civilizações em que a Modernidade está a esfacelar-se. Isto torna ambos suscetíveis a brechas antes inconcebíveis em suas couraças, como o crescimento duma extrema-esquerda radical no seio do Partido Democrata e, no Partido Republicano, a própria aceitação de Trump como figura de fachada. Esta aceitação inicial depois chegou, claro, à veneração ou mesmo adoração do Homem-Abóbora, até mesmo pelos ditos evangélicos, que na normalidade moderna deveriam odiá-lo por seus pecadilhos sexuais e total ausência de religiosidade. Mas afinal, naquele sistema, ou bem se é divino ou bem se é satânico, e ele adotou as propostas de seus companheiros de partido. O que deveria ser sinônimo de perfídia tornou-se novo messias. Até mesmo a tristíssima figura do arcebispo Carlo Viganò, antigo núncio apostólico nos EUA que – como diziam os britânicos ao perceber que um colono adotara a cultura dos nativos – went native, entrou para o grupo dos adoradores de tão sórdido messias.

A combinação da roubalheira eleitoral com a revolta partidária da mídia e dos donos de redes sociais, que abandonaram toda pretensão de isenção e passaram a deliberadamente esconder toda uma realidade importantíssima num momento histórico, contudo, aponta para mais um passo, e desta feita um longo passo, dado rumo ao abismo. A partir desta eleição, qualquer que seja o resultado das tentativas dos republicanos de desfazer a roubalheira e devolver a Trump a vitória que lhe foi roubada, todo processo eleitoral estará sob suspeita. Na religião cívica americana, isto é como se todas as ordenações dos sacerdotes católicos estivessem sob suspeita. Será que o padre é padre? Será que o chefe do Executivo foi realmente eleito?

A partir desta eleição, qualquer que seja o resultado das tentativas dos republicanos de desfazer a roubalheira e devolver a Trump a vitória que lhe foi roubada, todo processo eleitoral estará sob suspeita

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Ainda que o sistema não tenha sido pensado para ser democrático, ele foi, sim, concebido e mantido como meio de legitimação da autoridade moral e cívica dos eleitos. Dos ungidos com o poder. Ainda que sem contar com a já previsível cisão cultural, os pais fundadores dos EUA instauraram um sistema fabricado de tal forma que mesmo a pessoa que não tivesse direito a voto poderia considerar que seu governador ou presidente estaria evidentemente agindo na Pessoa do Povo (num simulacro da ação sacerdotal in Persona Christi). Que o eleito para um cargo político seria um sacerdote, e o presidente, o Sumo Sacerdote.

O sistema começou a dar problemas sérios quando os agentes das sombras (serviços secretos e o famoso complexo industrial-militar, componentes do dito Estado Profundo não eleito, mas permanente) puseram Obama na presidência. Obama é o simulacro de pessoa mais fantástico da história. Tudo acerca dele é duvidoso, havendo teorias da conspiração até mesmo sobre onde ele teria nascido (se fora dos EUA, seria um impedimento dirimente na sua sagração como sumo sacerdote da religião cívica, tornando-a nula e sem efeito). Foi criado numa família da nação branca predominante, mas sua cor de pele (devida a um pai queniano ausente em sua criação e descendente de traficantes de pessoas escravizadas) o tornava parecido com os membros da nação negra. Estudou em Harvard e foi editor duma prestigiosa revista científica, mas não há nenhum paper acadêmico com o seu nome. Nunca trabalhou, a não ser como ativista político. Suas ligações com a extrema-esquerda estão documentadas, mas apresentava-se como centrista. Os registros de sua passagem por várias instituições de ensino miraculosamente desaparecem, tornando-o na prática um homem sem passado, um fantasma. Um candidato da Manchúria.

Após a ascensão dessa não pessoa à presidência, mesmo com toda a sua elegância de lorde inglês, o sistema começou a gorar. Ele foi, por assim dizer, o equivalente na religião cívica americana da fábula da Papisa Joana. Todos os seus atos podiam ou não ser válidos, e não havia fazenda para retornar após o fim do mandato, como George Washington. Não havia nada fora a fachada de homem elegante, de discurso moderado, com a cultura da elite e a cor de pele dos oprimidos.

Trump surgiu e ganhou a presidência de modo totalmente oposto. É um homem ruidoso, agressivo e nada educado, sem estudos, maníaco por dinheiro e conhecido pela população por seu caricato programa de tevê. Enquanto Obama era fachada, Trump chegou como carne viva, criando nos eleitores da parte da população normalmente representada pelo Partido Republicano uma imediata identificação. Tudo o que Obama não era, Trump é, e vice-versa.

Em sua presidência, assim, o conflito acirrou, separando ainda mais as duas partes. O discurso do Partido Democrata sempre procurou declará-lo ilegítimo, atribuindo sua eleição a uma suposta intervenção russa e inventando histórias mil sobre o mais recente demônio em forma de gente. A reação do outro lado a Obama, comparada com esta, chega a parecer carinhosa. As teorias da conspiração sobre seu local de nascimento eram coisa de uma minoria ínfima (que contava com Trump) e geralmente caricata, de quem os bambambans do partido procuravam afastar-se; já a maluquice da tal intervenção russa e até mesmo de uma suposta vassalagem de Trump a Putin (!), por outro lado, foram desde o início parte do discurso de toda a esquerda (incluindo aí toda a mídia, com a exceção, na época, da Fox).

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Agora, nesta eleição, tudo acabou de explodir. O sistema eleitoral americano acabou, e com ele a legitimidade dos sacerdotes da religião cívica. Não importa mais quem será o presidente, na medida em que ele não será reconhecido por metade da população. Uma opção que começa a se mencionar é uma nova Secessão, dividindo os EUA em vários micropaíses. Os Estados Unidos tornarem-se Estados desunidos, e com isso acabar o dólar como moeda de troca internacional (coisa que já vem acontecendo, mas que deve ter um final abrupto relativamente logo) e, como dominós, derrubar toda a economia mundial. O centro da Modernidade cindiu-se em dois, como outrora ocorrera com o Império Romano. Não se pode prever nem o quê nem quando vai acontecer, mas, sociologicamente falando, é algo fascinante. Peço perdão.