Gosto muito de tudo o que é mecânico e de tudo o que se mexe. Juntando os dois, evidentemente gosto imensamente de carros. Não consigo, todavia, gostar da imensíssima maioria dos carros novos. Dentre eles, só gosto dos absurdamente caros. O mais engraçado é que não se trata de uma apreciação como a de quem acha chique ter carro caro. Ao contrário, até: carro, para mim, é normalmente um gasto, não um investimento. Afinal, trata-se de um bem que deprecia o tempo todo, e que nos força a gastar com combustível, manutenção e impostos obscenos (imposto sobre um bem que deprecia mesmo parado na garagem de noite? Sério?!). Eu jamais compraria um carro por questões de status, e quando compro um carro “caso” com ele, e só o vendo por razões de força maior.
Meu problema com os carros novos é principalmente estético. Há, sim, algumas outras razões para não gostar deles: tração dianteira, por exemplo, é uma economia idiota. Com tração dianteira, afinal, não se pode subir uma ladeira com um pouquinho de lama que seja, e eu moro na roça. Eles também tendem a ter “desnecessórios”, como diz um amigo, que os tornam inutilmente complicados e caros para consertar. Para quê, por exemplo, motores elétricos para regular o retrovisor, que está ao alcance da mão?! É só mais uma coisa para quebrar. Mas isso é nada, perto do problema de base, que é estético.
Tenho um Fusca, que para mim é um troféu. Ele me foi dado por leitores meus, que fizeram uma vaquinha e me deram o carrinho de presente no pior momento da minha vida, quando minha esposa amada, mãe de meus filhos, após mais de duas décadas de casamento, largou-me sozinho, doente, aleijado, deprimido, de cama, incapaz até mesmo de tomar banho sozinho. Largou-me e levou o carro que havíamos comprado com o dinheiro do seguro da minha perna para me levar ao médico, aliás. Deste fusquinha, portanto, jamais me desfarei. Voltando à estética, todavia, e deixando de lado a questão do valor sentimental do meu carrinho, afirmo sem hesitar que qualquer Fusca minimamente bem tratado é belíssimo quando comparado com as porcarias que vejo estacionadas na rua. Os carros novos são simplesmente feios, além de serem tão parecidos uns com os outros que me é dificílimo saber qual é qual. Para mim são todos “bolotinhas”, “fubequinhas” feiosas, que podem servir utilitariamente, levando e trazendo seus donos daqui para lá, mas que enfeiam as ruas e ferem os olhos.
Tenho também um Opala 1977, um carro belíssimo, que infelizmente está em reforma há mais de ano (o lanterneiro é um preguiçoso e enroladíssimo, mas topou trocar a reforma numa moto minha que eu não tenho mais como usar desde que amputei a perna). Tanto o Fusca quanto o Opala, assim como os jipes Willys, o Ford Galaxy e o Karmann-Ghia TC que já tive, são obras de arte, além de peças sublimes de engenharia. São peças belíssimas, sumamente estéticas. Ao contrário das horrendas fubequinhas – Gols, Pálios, o que for – que se amontoam pelas ruas, descansamos os olhos ao contemplá-los. E, ao contrário delas, eles não têm frescuras: são simples, feitos para usar e para durar, não para quebrar. Um Fusca ou Opala bem tratado simplesmente não acaba. Já as fubequinhas são outra história. Há já uns anos, um primo meu trancou a faculdade para passar um ano viajando pela Oceania. Vi-me no Rio de Janeiro, não me lembro bem por quê, sem carro para voltar para casa. Pedi então à mãe dele que me deixasse voltar com o carro dele, e ela aquiesceu. Fui à garagem ver a fubequinha (um Peugeot, se não me engano), abri o capô e pus-me a examinar o motor. Afinal, o carro estava parado havia coisa de seis meses. Apoiei-me numa mangueira d’água do radiador para o motor e, surpresa!, ela se desfez em pó na minha mão. Era feita de uma espécie de plástico vagabundo, assim como o radiador, e simplesmente por ficar sem uso uns meses havia se ressecado ao ponto de se desfazer à menor pressão. Acabei trocando metade do sistema de refrigeração do motor, só para ter certeza de que não teria surpresas desagradáveis na estrada.
Não é que se tenha perdido a capacidade de fazer bons carros: é que a obsolescência planejada requer que eles se desfaçam, que eles não durem mais que coisa de dez anos, para que as pessoas se vejam obrigadas a comprar outro, e outro, e outro. A cada ano mudam algum detalhezinho ínfimo, como o desenho das lanternas, fazendo com que quando uma quebre seja mais difícil achar uma peça de reposição. Afinal, que loja poderia manter um estoque decente de uma peça usada num só modelo num só ano? Já nos carros mais antigos, as peças frequentemente são intercambiáveis entre modelos e mesmo marcas; o farol do Opala (da General Motors, americana) e o do Fusca (da Volks, alemã), por exemplo, são o mesmo. O famoso “cilibrin” (“sealed beam”, em dialeto de mecânico brasileiro)
Lembro-me até hoje quando surgiu a primeira fubequinha, o Fiat Uno (que depois mudou de nome, tornando-se Uno Mille e finalmente só Mille, para que o nome “Uno” fosse para outra fubequinha). Na verdade foi uma espécie de “elo perdido”, pois apesar de ter quase todas as desvantagens das atuais, não foi feita para ser jogada no lixão após cinco anos de uso. É um carrinho feio como a fome, com tração dianteira e um motor que demanda ferramentas feitas sob medida, mas pelo menos é resistente. Eu olhava aquela coisa horrenda andando pelas ruas e pensava “onde vamos parar?!”. E, realmente, a má influência daquela porcariazinha conseguiu afetar até o Opala, que sofreu uma “reestilização” para que ficasse mais feio, mais quadrado, mais parecido com aquela aberração automotiva. E, claro, a partir de então os faróis dele deixaram de ser intercambiáveis com os outros anos, modelos e marcas. Depois lançaram o Corsa (feito para parecer um ursinho de pelúcia. Sério), e todas as fubequinhas viraram bolinhas feiosas como ele. E a decadência de lá pra cá só fez aumentar.
Outra desvantagem das fubequinhas é a falta de espaço no compartimento do motor e na própria cabine. Os fabricantes, creio que por pura crueldade, enchem tudo com plásticos ocos, de tal modo que é quase impossível mexer no motor sem tirar um monte de peças plásticas, por pura falta de espaço para enfiar a mão. Uma vez encontrei com amigos parados na beira da estrada: o Ford Ka deles estava fervendo, porque alguma coisa complicada do sistema complicado de ligar complicadamente a inutilmente complicada ventoinha elétrica parara de funcionar. A ventoinha do Opala fica ligada direto, bem como a do jipe, e o Fusca (melhor ainda!) não tem nem precisa ter ventoinha. Já o Ka tem, e complicada, claro. É uma guerra entender na beira da estrada qual é o problema. Acabou que peguei um fio de energia do computador de um dos ocupantes da triste fubequinha e fiz uma ligação direta da bateria para o motor da ventoinha, fazendo-a funcionar sem interrupção, para que pudessem voltar para casa. Não fosse a complicação toda, eu a teria ligado nalgum fusível que só tivesse carga quando a chave estivesse ligada, o que seria indubitavelmente melhor. Mas quanto mais complicado é o sistema, mais difícil fica fazer uma boa gambiarra pra chegar em casa. Dei então ao dono do carro o conselho de procurar um mecânico especialista. Seria fácil encontrá-lo, disse: ele certamente tem braços da finura dum dedo, com pelo menos quinze cotovelos. Pessoas normais não conseguem mexer naquele motor nem alcançar a bendita ventoinha elétrica sem se queimar, abrir uns bons talhos no dorso da mão, e por aí vai.
O mesmo vale para o interior dos veículos. Quando se vê uma fubequinha dessas que pegou fogo, chama a atenção o vasto espaço interior. Quando em condições normais de uso, todavia, os ocupantes mal têm espaço para se mexer. Isto ocorre porque os fabricantes cobrem a estrutura metálica delas com metros cúbicos de plástico oco, com o único propósito discernível de diminuir o espaço interno. Isto faz a alegria dos contrabandistas e traficantes, porque o que não falta é lugar para esconder suas muambas. Já houve até casos de contrabandearem pessoas escondidas no oco dos plásticos do painel de carros, para cruzar fronteiras.
Mas nem tudo é feiura no reino dos carros novos. Volta e meia eu vejo um carro novo realmente bonito, ou pelo menos não feio. Aponto-o ao meu filho, que sempre tem a mesma resposta: “este custa tantas centenas de milhares de reais”. São BMWs, Volvos, que sei lá eu. Carros caros, carros de luxo. Ora, se há carros novos bonitos, é porque a arte de desenhá-los não foi perdida. Não é como, por exemplo, o que aconteceu com as sobrancelhas das moças, hoje substituídas por desenhos horrendos que mais lembram o logotipo da Nike que uma parte do corpo feminino.
O que aconteceu é que, por razões comerciais, espirituais, sei lá, aparentemente os diretores dos grandes fabricantes de automóveis dirigem-se a seus desenhistas e os orientam para que façam, na mesma prancheta, com as mesmas ferramentas, carros horrendos para vender “barato” (dezenas de milhares de reais por um bem que só faz depreciar e não dura mais que cinco anos não é barato nem aqui nem na China) e carros bonitos para vender pelo resgate de um rei. Notem, não estou falando de motores potentes, de bancos de couro, nada disso. Refiro-me às linhas do automóvel. Assim como o Fusca sempre foi um carro barato (Volkswagen significa “carro popular”) e é belo, o Opala era um carro de luxo, e é igualmente belo. Um ao lado do outro não faz feio.
O desenho de um automóvel não o torna mais caro ou mais barato, ou ao menos não tem razão alguma para o fazer. A lata usada para os carros mais caros é a mesma que se usa para fabricar os menos caros. As máquinas usadas na produção são as mesmas. Mas os mais fabricados, os voltados para o público de massa, os que endividam famílias de classe média baixa, estes são horrendos. De propósito. Afinal, na mesma fábrica se pode encontrar modelos horrendos – e menos caros – e bonitos – e extorsivamente caros. Os desenhistas de um e de outro provavelmente são os mesmos. O resultado, todavia, é completamente diferente, e marca uma separação nítida entre o carro “de elite” e o “popular”.
Ora, como já apontei, o Opala era um carro de elite, enquanto o Fusca era um carro popular. As diferenças entre eles, todavia, consistem em coisas que fazem sentido. Enquanto o Fusca tem um motorzinho fraco e atinge pouca velocidade, o Opala tem um motorzão de todo tamanho. Enquanto o motor do Fusca fica atrás, para poder tracionar com mais facilidade as rodas de trás, o motor do Opala fica na frente, para equilibrar melhor o carro, mas é ligado às rodas de trás por um eixo maciço caro e pesado. O Opala é muito maior que o Fusca, usando assim mais material para ser fabricado. E por aí vai; são diferenças que fazem sentido. Quem quisesse mais espaço interno, mais velocidade, mais conforto, etc., gastaria mais para comprar um Opala, e estaria pagando por coisas reais. Mas ambos eram bem desenhados, ambos eram simples de manter, de regular e de consertar. Há espaço bastante para que se alcance qualquer parte do motor de qualquer um deles sem precisar ter braços finíssimos e vários cotovelos. Ambos têm quebra-ventos, para que não seja necessário ligar um condicionador de ar (que o Fusca nem tem, aliás, sendo um carro popular) para poder conversar com os passageiros num dia mais quente.
Já nos modelos novos hoje disponíveis, a diferença estética gritante não tem nenhuma razão de ser, a não ser a de “premiar” o milionário que pode gastar centenas de milhares de reais numa fubequinha bonita. Os carros ditos populares são, como os de luxo, cheios de “desnecessórios” que só servem para quebrar e encarecer o produto. Um e outro têm mais plástico que metal. Mas os populares são feios, propositadamente feios, apontando para uma quase conspiração para enfeiar as ruas, para treinar as pessoas para o mau gosto, estragando seu senso estético e fazendo-as apreciar o que é inapreciável.
E aí entra outro elemento tristíssimo: há toda uma “hierarquia” entre as fubequinhas feias, uma hierarquia composta basicamente de elementos arbitrários de preço e status. As pobres vítimas do consumismo se encalacram até a medula para trocar uma fubequinha horrenda por outra fubequinha igualmente horrenda e – aos olhos destreinados de quem não está nem aí para status de fubequinhas, como eu – tão absolutamente igual à outra que as diferenças são imperceptíveis até nos serem apontadas. E, quando o fazem, muitas vezes gastando o que não têm e deixando de fazer investimentos reais na própria qualidade de vida, os bobos estão convencidos de que “conquistaram” a fubequinha pouca coisa mais cara e igualmente feia. Que “subiram na vida”. Patético.
Mas a beleza dos carros caríssimos não faz parte dessa hierarquia que os otários escalam, deste truque barato de publicidade que tira o leite das criancinhas em benefício dos acionistas das montadoras. Os carros bonitos estão em outro patamar, na prática inatingível para o pobre sujeito de classe média que sonha diuturnamente em “subir” da fubequinha feia A à fubequinha feia B, igualzinha, só que custando dez mil reais a mais.
Trata-se de uma feiura proposital, justamente localizada no cerne daquela faixa de preço que mais escraviza – pois quem tem dinheiro para comprar uma BMW ou Land Rover dificilmente vai pensar em termos de “escalada” de status duma fubequinha à outra, e é ainda menos provável que venha a endividar-se irresponsavelmente apenas para “subir um degrau” numa hierarquia sem sentido. Só o que pode explicar isso é realmente uma doença espiritual, de que faz parte também o próprio consumismo, a próprio noção de caro como símbolo de status vazio, simbolizado por algo que faz tanto sentido para quem está fora quanto medalhas e broches de escoteiros, chaveiros dos Alcoólicos Anônimos, ou quaisquer outros sinais voltados para um público restrito. Esta doença espiritual faz querer o feio, deixar de lado o importante em prol do ignóbil, e, mais e mais, escravizar-se numa rodinha de hamster consumista que não tem como levar a lugar algum.
Se eu morasse na cidade, aliás, dificilmente teria carro. Na roça não há outro jeito, mas na cidade, hoje em dia, simplesmente não vale mais a pena. Alugar uma fubequinha quando se quer viajar sai muito mais barato que pagar prestação, vaga e IPVA de uma em que não se pode sair à noite (pois há a famigerada “lei seca”, punindo as pessoas pelo aumento percentual de chance de cometer um crime) e que não vale a pena usar para ir ao trabalho (pois as vagas no centro estão pela hora da morte, cobradas por minuto). E se, por alguma razão, eu realmente precisasse ter carro próprio, muito me entristeceria olhar para minha garagem e ver nela uma fubequinha medonha. Melhor um Fusca.
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