Chamaram-me a atenção para um projeto interessantíssimo que está começando nos EUA. Para ser mais exato, em Austin, Texas, onde uma nova universidade, dedicada à busca da Verdade, está sendo lançada. O corpo docente é de primeira linha.
Deveria ser evidente que o estudo – todo estudo – é uma forma de busca da Verdade. Isto, infelizmente, não só não está na moda em nossos tempos pós-modernos como jamais existiu aqui no Brasil. A amiga que me contou do projeto da Universidade de Austin queixou-se no mesmo fôlego de que por aqui muito se fala e nada se faz. É verdade. Ainda que a partir de sua protestantização forçada no século 16 as universidades tradicionais do mundo anglo-saxão tenham em geral partido de péssimos pressupostos (Harvard, por exemplo, foi criada para ser uma espécie de seminário para pastores calvinistas), ainda havia nelas um certo espírito investigativo. Este, claro, em termos de efetividade na busca da Verdade sempre concentrou-se mais nas disciplinas exatas, menos atingidas pelos pressupostos teóricos das seitas que dominavam o campo da educação superior nos EUA.
Já aqui nem isso tivemos. Já comentei nestas mal-traçadas acerca da experiência do futuro Prêmio Nobel Richard Feynman quando pagou alguns pecados lecionando no Brasil: espantou-o tremendamente que a totalidade de seus alunos tratasse o objeto de estudo como uma espécie de jogo de memorização perfeitamente desligado do mundo ao redor. E eram, venham bem os senhores, estudantes de Engenharia. Não de Física teórica: de Engenharia. Mais ainda: isto ocorreu numa época em que a engenharia estava galopando mundo afora, ao aplicar os novos conceitos de uma física teórica que também avançava aos saltos. Foi provavelmente a época de maior avanço tecnológico da engenharia na sua história, que se confunde com a do homem.
Richard Feynman, quando pagou alguns pecados lecionando no Brasil, espantou-se tremendamente com o fato de que a totalidade de seus alunos tratasse o objeto de estudo como uma espécie de jogo de memorização perfeitamente desligado do mundo ao redor
O problema de base da educação brasileira, que leva ao comportamento que assustou o bom professor, é a tão imensa quanto daninha contaminação do pensamento brasílico pelo positivismo comteano. Para o positivista, “para quê” e “por quê” são perguntas inúteis, só interessando o “como”. Daí termos o problema oposto ao dos americanos, no trato das ciências: nós as tratamos como castelos nas nuvens, enquanto eles tendem a um utilitarismo pragmático e imoral. Das perguntas de que Comte não gostava, o “para quê” torna-se o foco absoluto nos EUA. Interessa apenas, ou mais, o que tem aplicação prática, o que serve para algo. O que dá dinheiro. O que funciona.
Daí a qualidade que costumava ter a engenharia americana. A Alemanha, onde surgiram originalmente os anglos e os saxões, também sofre do mesmo mal. Nela mostrou-se no Holocausto o perigo maior de tal utilitarismo, quando pela primeira vez na história a engenharia, a fabulosa engenharia alemã, serviu para o assassinato de inocentes em quantidade industrial. Milhões de pessoas foram chacinadas com eficiência alemã por uma bem-azeitada máquina de matar quando a engenhosa máquina de guerra alemã, dotada das armas mais bem elaboradas e bem construídas, avançou para o leste. Excelentes engenheiros, os melhores do mundo, desprezaram toda moral para perpetrar uma infâmia que viam apenas por um prisma utilitarista.
Aqui, por outro lado, simplesmente não temos engenharia digna de tal nome. É claro que sempre há exceções que confirmam a regra, mas a formação dita superior no Brasil sempre foi e dificilmente deixará de ser uma piada de mau gosto. A função básica do ensino superior no Brasil sempre foi a de servir como sinal de pertencimento ao estamento da classe média, com o ensino e aprendizagem num distantíssimo segundo (ou terceiro, ou quarto, ou milésimo) lugar. O brasileiro médio quer da universidade apenas um diploma, que – para ele – é pago em tempo e estudo. Se a universidade for particular, junta-se também aí o dinheiro. Ter um desconto na mensalidade, no tempo e no estudo, assim, é sempre um bom negócio. Na prática, isto significa que o suposto estudante faz o que puder para estudar menos, para aprender menos, ao longo do curso. É, claro, outro efeito do positivismo e seu desprezo por tudo que não o processo.
Além disso, o uso do diploma como sinal de estamento social sempre impediu que as universidades tupiniquins correspondessem à sua função elementar de estudo superior. O que nelas sempre foi superior não é o ensino, mas tão-somente a classe social do corpo discente. Nunca interessou muito a capacidade intelectual do aluno: sendo de classe média e do sexo masculino, seu “devido lugar” como jovem adulto seria o banco de uma universidade. Na era petista, o problema foi ainda agravado pela política deliberada de proporcionar às classes mais baixas os sinais exteriores de pertencimento à classe média, e apenas eles. Não houve qualquer esforço no sentido de melhorar o ensino fundamental e médio; muito pelo contrário, aliás. A saúde pública continuou péssima, e as medidas sanitárias mais elementares, como a coleta de dejetos e seu tratamento, não foram tocadas.
Por outro lado, a famosa “calça jeans para uma jovem de 16 anos [que] custa mais de R$ 300”, o telefone celular e o famigerado diploma passaram a estar ao alcance das classes mais baixas. A distribuição petista de sinais de pertencimento à classe média operou-se pela multiplicação dos planos de crédito (inclusive para pagamento de cursos superiores) e pela multiplicação de campi universitários públicos desprovidos dos elementos mais básicos (como salas de aula!) para o cumprimento de sua suposta função precípua de ensinar. Os pobres não passaram à classe média, mas ganharam direito de acesso a seus sinais. Com isso, como não poderia deixar de ser, a já tradicionalmente péssima qualidade dos cursos chegou a um nadir absoluto. Hoje nem mesmo um diploma de doutorado garante que seu portador saiba ler e escrever, e qualquer vaga de recepcionista em uma grande capital demanda um diploma universitário.
Em termos econômicos, podemos dizer que, com o aumento exponencial da oferta de diplomas superiores, o seu valor social despencou também exponencialmente. O diploma superior passou a ser não mais sinal de pertencimento ao estamento superior, mas mera garantia de ausência de sinais por demais visíveis de pertencimento ao estamento inferior. Em outras palavras, pede-se um diploma superior para ter certeza de que o balconista não chegará para trabalhar de bermuda e chinelos, terá todos os dentes da frente e reprimirá seu impulso de dançar o pior do funk carioca durante o expediente.
O brasileiro médio quer da universidade apenas um diploma, que – para ele – é pago em tempo e estudo. Se a universidade for particular, junta-se também aí o dinheiro
Um ensino superior digno deste nome, que é o que o povo lá de Austin está querendo oferecer, é algo voltado forçosamente para uma elite intelectual. Um ensino que se diga superior, mas esteja ao alcance intelectual de mais de uma pessoa em cada 30 ou 40 não é realmente superior. Não importa, no senso mais estrito, se a pessoa teve ou não uma infância de classe média se ela houver conseguido remediar suas deficiências, aprender o que a escola não é capaz de ensinar e fomentar a curiosidade e a capacidade intelectual. A vantagem evidente de uma criação na classe média tradicional (que é mais próxima no Brasil, sociologicamente falando, duma elite tradicional análoga à nobreza, mesmo por ser a classe média tradicional descendente da pequena nobreza do Império) é ter sido criado numa casa com livros, por pais dedicados a trabalhos intelectuais ou burocráticos, não manuais ou mecânicos, num ambiente de relativa fartura, em que os perigos da desnutrição ou das doenças mais graves não estavam presentes.
Voltando ao projeto gringo e sua aplicabilidade no Brasil, lembro que tanto a USP quanto a UnB começaram justamente com propostas semelhantes às da Universidade de Austin. De nada serviu; os pseudodiscípulos brasileiros dos gringos trazidos para iluminar nossas cabecinhas provincianas atiraram-se com volúpia à velha enganação positivista assim que puderam. Mais ainda, até: em grande medida foram eles que criaram o minotauro burocrático que constrói um labirinto de regras absurdas para o que passa por ensino no Brasil. Por mais absurda que seja a ênfase absoluta do positivismo no “como”, na medida em que o papel aceita tudo foi possível construir um labirinto inigualável de regras e norminhas sem sentido. Cada ínfimo detalhe do processo, dos rituais de passagem em que se transformou a “educação” brasileira, é regrado minuciosamente.
É como uma caricatura dos processos alemães, sempre muito regradinhos. Lá, contudo, todos os rituais são orientados teleologicamente em função da utilidade prática ou teórica: faz-se aquilo tudo para garantir que o aluno seja um engenheiro magnífico, um físico estudioso e dedicado, um filósofo ou sociólogo ao menos coerente e bom conhecedor do status quaestionis daquilo de que trata. Já aqui o fim das regras é a própria regra. Assim como o artista famélico que se recusa a “corromper” sua arte adequando-a ao mercado, o educrata brasileiro recusa-se a confrontar suas regrinhas com a realidade. Para ele, seu papel não é garantir que as universidades formem pessoas capazes; seria uma “corrupção” da burocracia dar-lhe outro objetivo que não a manutenção e aumento da própria burocracia. Ars gratia artis; burocratia gratia burocratiae.
Assim, quando incomoda demais a gritaria dos pais ao ver que seus filhos não aprenderam nada ao longo de um ano de 180 dias letivos (como se o governo federal devesse se meter com tais assuntos, que são da alçada exclusiva de cada educador, de cada escolinha!), a resposta dos educratas é dar mais daquilo que comprovadamente não funcionou. A pobre molecadinha perde 20 dias de férias da fábrica de salsichas que passa por educação, mas continua sem saber ler e escrever. O currículo imposto a cada aluninho por este Brasilzão afora, das elites endinheiradas ao filho de pescador no interior da selva que nunca viu um carro, é exatamente o mesmo. Sua aplicação é microgerenciada por uma burocracia para a qual o mundo real não interessa. Só o que lhes interessa é, como sempre no positivismo, o “como”: quantos dias letivos por ano, por mês e por semana; quantas aulas por dia; quantos minutos por aula; que matéria a ser dada a cada mês em cada disciplina; que disciplinas devem ser ministradas; que diplomas são requeridos do professor de cada uma delas, ou da diretora; quantas faltas cada aluno pode ter, e quando aboná-las; quantas aulas cada disciplina deve ter por semana...
A listagem de meios, de “como” deve ser a escola, é quase infinita. E, insisto indignado, ela é a mesma em cada escola de cada cantinho deste país de dimensões continentais. O resultado prático, como se poderia prever, é péssimo: a imensa maior parte dos alunos forma-se no ensino médio e adentra uma faculdade sem saber sequer ler e entender um texto – que dirá fichá-lo, resumi-lo ou compará-lo a outro com distinto ponto de vista sobre a mesma questão. É até curioso que Paulo Freire, bicho papão da direita, tenha tão brasileira e positivistamente concebido... um “método”. Um “como”. Que a destruição total das bases que deveriam ser adquiridas no ensino fundamental tenha ocorrido pela introdução de nada mais nada menos que “métodos”: a (não-)alfabetização por palavra inteira e a “nova matemática”. Não interessa, nunca interessou e jamais interessará aos educratas que os tais “métodos” tenham na prática negado o objetivo mais básico e elementar do ensino – o aprendizado –, pois para eles o importante é que se tenha um “método” minuciosamente elaborado, um “como” bem definido. O “para quê” (aprender a ler, escrever e fazer contas, por exemplo) é-lhes irrelevante.
Evidentemente, o mal que é feito aos pequenos também é feito, e de forma ainda mais intensa, no que passa por ensino superior. Os diplomas garantem que o formado tenha sido submetido a um método – a um ritual, em outras palavras –, não que tenha aprendido. Mais ainda: só podem existir os diplomas que estejam numa listagem, e para cada um deles é determinada em nível federal (!) toda minúcia, todo detalhe. Alguém que tenha interesse em uma área que abranja aspectos de várias disciplinas (por exemplo, a publicidade cientificamente orientada pela psicologia humana) ou bem faz duas graduações, passando pelo “método” de (não) formar psicólogos e pelo de (não) formar publicitários, ou bem cursa apenas uma delas e aprende o resto por fora – o que acaba sendo mais comum. Estudar num mesmo curso matérias de áreas distintas é quase impossível, e as que estude só valerão ao aluno como crédito de matérias eletivas e não constarão de seu diploma.
Os diplomas garantem que o formado tenha sido submetido a um método – a um ritual, em outras palavras –, não que tenha aprendido
Em qualquer universidade do Bananão, do mesmo modo, o mais comum é que os alunos não leiam mal e mal nada além de fotocópias de capítulos indicadas pelo professor. É perfeitamente possível, e diria eu que comum, que as pessoas se formem em Letras ou Filosofia sem jamais ter lido um livro inteiro. Muitos deles nem sequer disfarçam o desinteresse pelo que é abordado em classe. Afinal, é a contragosto que “pagam” pelo diploma com o esforço de estudo, e estudar menos seria para eles uma fantástica economia. Pois um membro de tal maioria, que consiga passar raspando em todas as matérias com o cérebro enfumaçado de maconha, terá exatamente o mesmo diploma do seu colega que tenha lido os livros inteiros e ainda buscado bibliografia por fora, concluindo a graduação com conhecimento real daquilo de que o tal “método” nem tenta garantir que se tenha uma vaga noção.
Como, então, fazer uma Universidade de Pindorama, no molde da de Austin? O primeiro problema seria, claro, a cultura; a USP e a UnB são perfeitos exemplos de como o bem que se faça não dura quase nada quando sabotado pela cultura. Mesmo assim, há realmente gente que gosta de estudar e quer muito fazê-lo. Estes, no Brasil, geralmente correm por fora: são os autodidatas; são os estudantes de História ou Filosofia que estudam o que é malvisto nas horas vagas, por amor ao saber, mas garantem seus diplomas com as imbecilidades da moda; são os cientistas que fogem do país em busca de ambiente mais acolhedor, como o célebre caso de Suzana Herculano-Houzel.
O segundo problema é o bendito MEC. Seria impossível criar uma universidade de verdade no Brasil de hoje e tê-la reconhecida pelo MEC. Afinal, ela não seguiria o “método”. Fazer “como” o MEC demanda implica não ensinar. A única brecha seria conseguir o reconhecimento da instituição no exterior, para que os alunos depois passem por um processo burocrático longo, caro e demorado para ter reconhecidos aqui seus canudos mágicos. Acabaria mais fácil para eles cursar um mestrado no exterior e reconhecer apenas o diploma de mestrado ao voltar.
O terceiro e último é a questão do vil metal. Nos EUA toda faculdade é paga, e há um vastíssimo sistema de crédito educacional. Quem pretende cursar uma universidade lá já sabe que estará endividado por muitos anos. Já aqui no Brasil as faculdades menos péssimas são públicas e gratuitas; uma pessoa com real capacidade intelectual sabe que o caminho normal haveria de ser cursar uma graduação, mestrado e doutorado gratuitos. Para esse público, uma universidade de verdade – como a de Austin –, mas não apenas não reconhecida pelo MEC como paga, seria algo inesperado, uma novidade absoluta que no mais das vezes acabaria tendo de ser cursada simultaneamente a um curso na mesma área numa universidade pública. Afinal, eles precisariam do famoso diploma, mesmo que tivessem o estudo real como objetivo primeiro.
Resumindo: é, sim, possível, mas é bastante improvável que se tenha como fazer algo realmente bom. Na situação atual, valeria mais a pena a quem estivesse querendo investir em educação de verdade apostar no ensino fundamental e médio, para os quais a mesma brecha do reconhecimento no exterior igualmente existe.
Que São Tomás de Aquino, padroeiro do ensino, tenha piedade de nossa terra tão sofrida!