Para variar, mais uma medida meia-boca do governo Bolsonaro, que tira apenas uma pluma de pombo de sobre a pesadíssima carga que a legislação brasileira deposita sobre os ombros dos inocentes, provocou uma grita como se por ela o Brasil fosse transformar-se em um país com dezenas de milhares de mortes violentas por ano. Ah, já é? Então, justamente.
Desta vez a “vítima” é a absurda medida que obriga os pais a enfiar as crianças em cadeirinhas especiais para que a babá-Estado (lembro que “Estado” é o coletivo de “políticos e burocratas”) permita que andem de carro – permitindo sempre, contudo, que no ônibus, muito mais perigoso, não só não existam cadeirinhas como se possa levantar, ir ao banheiro, etc., mesmo enquanto o motorista canaliza seu Ayrton Senna interior nas curvas duma estrada de montanha.
As crianças estariam mais seguras em cadeirinhas que sentadinhas direto no banco, ou, como manda o manual do meu Opala 1977, de pé atrás dos bancos da frente? Estariam elas mais seguras que eu no “buraco”, como chamávamos em criança aquele espaço atrás do banco de trás do Fusca de minha mãe? Ou que meus filhos nos bancos da frente e de trás do Monza de minha esposa, duas décadas atrás? Sem dúvida. Mais seguras ainda, contudo, estariam se não saíssem de casa. E em casa, mais seguras estariam se jamais saíssem da cama. E se na cama estivessem de capacete e camisa-de-força. A questão, no entanto, não é a segurança, ou não se teria onde parar nas medidas destinadas a tornar teoricamente mais segura a nossa sociedade. A questão está, como sói ocorrer em nossa pátria, na linha traçada na areia entre a autoridade de cada pai de família ou mesmo indivíduo e a autoridade estatal. Esta, faço questão de lembrar, só poderia entrar legitimamente em ação depois de esgotadas todas as tentativas de todas as instâncias inferiores, do indivíduo e sua família aos bairros, municípios etc.
Já é um absurdo, uma obscenidade sem nome, que seja o Estado (e o federal!) e não cada um a decidir se quer ou não usar cinto de segurança no carro ou capacete ao andar de moto. Eu mesmo andava sem capacete, antes de ele ser obrigatório, até que um dia vi um sujeito escorregar com a moto em primeira marcha, na velocidade de uma pessoa andando, e ficar desacordado no chão por meia hora. Se fosse numa estrada, pensei, um caminhão teria passado por cima. Daquele dia em diante, passei a usar regularmente capacete. Mas, contudo, no entanto, todavia, ao encontrar uma donzela em apuros precisando de uma carona, jamais pensava duas vezes antes de passar-lhe meu capacete e assumir eu mesmo, cavalheirescamente, o risco em caso de acidente. Aí tornaram o bendito do capacete obrigatório. Passei a carregar um capacete tipo “coquinho” na maleta da moto, para poder continuar sendo um bom samaritano. Aí proibiram o coquinho. Chegará o dia em que as pessoas terão de andar fantasiados de boneco da Michelin para pilotar uma moto. Ora, bolas, a cabeça é minha. Sou eu quem decido se a ponho em risco desta ou de outra maneira.
O mesmo, claro, vale para cintos de segurança. Já fui multado porque, ao dar carona para uma família amiga, um dos membros se esqueceu de se amarrar. E eu é que fui multado, porque o Estado quer que eu exerça a função de preposto seu, de capitão-do-mato, caçando os desobedientes que ousam decidir por eles mesmos se querem ou não se amarrar, com todo o desconforto que isso implica.
No caso das cadeirinhas, todavia, a coisa é ainda mais grave. Afinal, não se trata apenas da decisão sobre si mesmo, mas de uma decisão sobre os filhos, que naturalmente só poderia competir aos pais. É uma negação dos direitos dos pais, em favor de uma invenção tão recente, mas tão recente, que muita gente que andou sem cadeirinha no banco da frente do carro quando era molequinho ainda não faz a barba. O que se há de pensar, claro, é qual haverá de ser a próxima medida, a próxima loucura, depois de proibirem as crianças de andar no banco da frente do carro – atrapalhando, assim, enormemente a vida das mães que levam a criança pra lá e pra cá, e agora não a podem mais ver, acalmar quando chora, etc. –, inventarem essas cadeirinhas que tanto dinheiro deram aos amigos do Rei (os fabricantes de cadeirinhas, que provavelmente fizeram um investimento excelente em algumas campanhas eleitorais), ao tornar obrigatório e depois mudar de ideia acerca do famigerado kit de primeiros socorros, e por aí vai.
O trânsito é uma área onde confluem a autoridade pessoal e a do Estado. É ótimo que haja sinais combinados entre todos, como a sinalização semafórica e fixa, os meios-fios rebaixados, faixas amarelas, azuis, e o que mais vier. Esta é a parte do Estado. Só o que mais lhe competiria, se ele não fosse tão ganancioso de poder, seria punir quem faz mal real no trânsito. Quem mata, aleija, quebra. Mas não. O Estado se arroga o direito de punir severamente alguns por haver, em tese, uma chance porcentual maior de causar um acidente (a “Lei Seca” é exatamente isso, bem como as multas por “excesso de velocidade”); quem realmente provoca um acidente, quem sobe numa calçada e mata cinco, entretanto, é “punido” com o pagamento de uma cesta básica. É o oposto do que deveria ser. Não há problema algum em um pai de família tomar uma cerveja com o jantar e depois voltar para casa dirigindo, como não há mal algum em que um molequinho viaje ao lado do pai. O que é errado seria o sujeito beber como um gambá e depois não prestar atenção no que faz, não se dar conta de que está com os reflexos prejudicados, e aí causar um acidente. Ora, é para isso que existe dolo presumido. Que o sujeito seja condenado por homicídio doloso; nada contra. Mas tenho tudo contra um Estado que se propõe a criminalizar comportamentos perfeitamente inocentes, como beber uma cerveja e querer ter o filho ao lado.
O projeto do Bolsonaro nem sequer elimina o pseudocrime de não usar a cadeirinha, vejam bem; só lhe retira a multa pecuniária, presume-se que para que o pobre motorista e pai use o dinheiro ajudando um milionário dono de fábrica de cadeirinhas.
Outra medida meia-boca do projeto é aumentar de 20 para 40 pontos a quantidade necessária para cassar a habilitação de um condutor. Ora, não faz sentido nem sequer que exista a carteira de habilitação! Seu único objetivo é engordar os amigos do Rei, mais uma vez, desta feita os donos de autoescolas. No mundo real, a palhaçada que é o ritual de obtenção da CNH, que não transforma ninguém nem em motorista nem, muito menos, em um melhor motorista, já é tão custosa que na prática os pobres são impedidos de dirigir. Dá pra comprar um Chevetinho com o que se paga num pedaço de papel que não prova rigorosamente nada. É apenas um breve para espantar o guarda ou – na pior das hipóteses –, em sua ausência, um instrumento para um mau policial extorquir um inocente.
Esta prática sumamente supersticiosa de achar que carteirinhas de alguma maneira demonstram algo do mundo real é uma deformação até interessante, do ponto de vista antropológico, de nossa cultura, mas é algo que está muito longe de corresponder à realidade dos fatos. Só o que a habilitação prova é que a pessoa decorou e manteve na ponta da língua por uns poucos dias respostas a questões sem sentido sobre um trânsito ideal, esquecendo tudo assim que passa na prova escrita (aliás, de múltiplo chute), e que foi adestradinha para dar aquela volta no quarteirão, tomando cuidado com um monte de absurdos que em nada interessam na vida real e descuidando de coisas realmente sérias.
Minha esposa já dirigia por anos quando resolveu tirar a CNH. Ela dirigia muito bem, aliás. Lembro-me como se fosse hoje como a cada dia ela chegava irritada da aula, por ter de aprender besteiras arbitrárias para passar na bendita prova prática. E, mais ainda, acostumada a carros potentes (quem gosta de motorzinho é dentista!), dirigir o Ka 1.0 a gás da autoescola a exasperava. Eu mesmo escrevi aqui há uns meses sobre a feliniana experiência de fazer novamente prova de baliza para tirar a CNH especial para deficientes. A única coisa, repito, que uma CNH prova é que em algum lugar a conta bancária dum dono de autoescola ficou mais gorda. Assim, o aumento da validade das CNHs é outra medida meia-boca que torna a situação menos péssima, mas que ainda está longe de corresponder a algo próximo de verdadeira justiça.
Daí também ser menos péssimo que se tenha 40 pontos para “gastar” em radares de 40 km/h às duas da manhã em estradas desertas ou coisas que o valham. Mas continua sendo péssimo, como continua sendo péssimo que pais se vejam obrigados pelo Estado a amarrar os filhos no banco de trás… ou a nem sequer carregá-los, se as imensas cadeirinhas não couberem todas lá. Um banco que leva três pessoas leva só duas cadeirinhas. E aí? Fazer o quê? Ligar para Brasília e pedir um carro maior de presente?
Outra medida da proposta presidencial é interessante, por livrar a alguns de possíveis extorsões por maus policiais, ao colocar com todas as letras no texto da lei que luzes de rodagem diurna servem como… luzes de rodagem diurna, não sendo necessário acender o farol baixo quando se as tem. Nem preciso falar da imbecilidade rematada que era fingir que elas não serviriam. Mas posso falar do abuso que é exigir que se as use, mesmo quando nada nas condições meteorológicas o demande. Eu mesmo, que moro na roça e preciso percorrer uns quilômetros de estrada para ir aonde quer que seja, instalei um trocinho que acende os faróis sozinho 15 segundos depois que se liga o carro e os desliga quando se desliga o carro. Melhor isso que ser multado. Mas para quê ando eu com o farol ligado num dia como hoje, com um belo sol de inverno tão brilhante que só se perceberia a luz do farol enfiando a cara nele? Ora, para não ser multado. Só. Não há nenhuma utilidade disso para o trânsito ou para a segurança de quem quer que seja. Só quem ganha com isso são os eletricistas que instalam esses aparelhinhos e os fabricantes de lâmpadas. E, claro, os maus policiais que extorquem os motoristas, as multas “legais” que também arrancam seu suado dinheirinho por não haver lembrado de uma exigência absurda e arbitrária, e é assim que a coisa vai, como sempre na lei brasileira.
Outra medida, ainda, da proposta é liberar os caminhoneiros da obrigatoriedade de exame toxicológico. Aí, dizem alguns, há um problema de verdade: do Oiapoque ao Chuí, caminhoneiros alucinados de anfetaminas passam dezenas de horas direto ao volante. “A lei resolve isso”, bradam os que preferem ter uma babá em forma de burocracia monstruosa a tomar jeito por conta própria. Aí eu lembro que tanto as anfetaminas quanto dirigir por mais de umas poucas horas já são objeto de proibição. E, mais ainda, que há uma razão simples para que os pobres caminhoneiros se envenenem e tornem nossas estradas mais perigosas: todo o nosso sistema de fretes opera contando que seja assim. E não havendo nem sequer a concorrência saudável das estradas de ferro que deveriam ligar o país, só resta aos caminhoneiros aceitar o que se lhes dá. Se um caminhoneiro disser que não lhe é possível atravessar o país dirigindo sem parar, que ele precisa de quatro ou cinco dias para um frete que é, via de regra, combinado para dois dias, adivinhem o que acontece? Ele perde o frete, claro. Neste contexto, o “rebite” (anfetaminas) não é o problema, sim a solução. Solução porca para um problema porco. Mas não há de ser criando toda uma indústria de venda de xixi sem anfetaminas para os exames, nem engordando donos de laboratório de análises clínicas, que o problema será sanado. O problema é outro.
Que valha a pena comentar neste artigo, só duas medidas meia-boca a mais: uma que acaba com a equivalência entre alguns veículos elétricos e os ciclomotores, e outro que joga no colo da camarilha de burocratas do Contran a “regulamentação” dos veículos elétricos e bicicletas a motor. O primeiro é bom por eliminar uma equivalência absurda. Na verdade, um bom começo seria retirar todo e qualquer veículo que não atinja 100 km/h do rol dos amarrados por burocracias obscenas (CNH, IPVA, capacete, cinto, etc.). Ainda não estaria bom, mas seria menos mau. O segundo é péssimo, porque burocratas não eleitos tendem a simplesmente aumentar a burocracia, por serem fidelíssimos crentes na horrenda superstição dos poderes mágicos dos papéis, “portarias” e quetais.
Em suma: os problemas da legislação de trânsito brasileira não são nem sequer tocados por este projeto. Ele apenas torna menos péssimas umas que outras medidas, sem contudo representar uma melhoria verdadeira no que quer que seja. A postura supersticiosa e hipercentralista da burocracia de trânsito continua intocada, os ataques ao pátrio poder e à autodeterminação individual continuam lá. A farsa das CNHs está intocada. Tudo como dantes no quartel de Abrantes. Um belo dia o sistema todo vai cair de podre; as pessoas vão simplesmente desistir, e preferir rodar sem CNH, pagando um guardinha de vez em quando – como aliás já acontece em muitos lugares – e todo esse gigantesco e fantasmagórico edifício de farsas, amuletos (como a CNH e o CRLV), papeluchos “bentos” por carimbos e demais farsas burocráticas vai desmoronar. Que seja logo.
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