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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Falsa desburocratização

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Sempre achei engraçado isso de haver uma “certidão de nascimento”, como se alguém vivo pudesse não ter nascido. Mas tal é a lógica da burocracia: nada existe que não os papéis, e os papéis carimbados. O resultado é que para qualquer tipo de atuação em que a administração pública tenha interesse ou curiosidade mórbida é necessário transformar a realidade em papéis, muitos papéis, papéis aos magotes. Para complicar mais ainda a existência das pessoas, negócios e tudo o mais que vive neste imenso espaço sublunar, só um papel pode atestar a validade doutro papel. É daí que surgem, claro, as gincanas burocráticas em que papéis têm de ser atestados por outros papéis, que por sua vez demandam a preexistência de ainda outros papéis, e eis que a esta altura a realidade já ficou para trás.

O único jeito de cortar esse nó górdio acaba sendo a concessão de superpoderes burocráticos a pequenos grupos de pessoas, cuja palavra é presumida verdadeira. Em outras palavras, se um desses privilegiados do mundo burocrático falou, ’tá falado. O ônus da prova recairia sobre quem quisesse contestar sua palavra. Curiosamente, minha saudosa mãe e eu tivemos este superpoder, obtido em áreas bastante diferentes, mas pelo mesmo mecanismo: o concurso público. Eu, como perito criminal, e ela, como tradutora juramentada, tínhamos naquilo em que pespegássemos nossos carimbos mágicos (hoje já virtuais) absoluta presunção de verdade e acerto.

“Fé pública” é o nome de tal fulgurante superpoder, que infelizmente não vem com uma capa esvoaçante, mas felizmente não requer usar as cuecas por cima das calças. Sempre brinquei que ter fé pública significa apenas que podemos rezar na praça, mas no mundo burocrático a coisa é realmente uma mágica caprichada. Num dado momento dos anos 1970, aliás, minha mãe “abusou” de seu poder para ajudar a salvar uma vida: escreveu uma declaração em que ritualmente invocou ao máximo seus poderes e coloriu com todos os seus carimbos, atestando que um rapaz que precisava urgentemente fugir do Brasil por razões políticas falava francês perfeito. Com tal papelucho mágico, o rapaz (que provavelmente não saberia sequer perguntar onde fica o banheiro na língua de Victor Hugo e Edith Piaf) conseguiu um visto e deixou o DOI-Codi a ver navios.

Para qualquer tipo de atuação em que a administração pública tenha interesse ou curiosidade mórbida é necessário transformar a realidade em papéis, muitos papéis, papéis aos magotes

No fantástico mundo da burocracia, papéis carimbados efetivamente substituem a coisa. Por exemplo, um diploma de Letras com a chancela duma faculdade reconhecida pelo MEC ou mesmo um certificado de conclusão do ensino fundamental provariam além de qualquer dúvida que seu portador sabe ler e escrever. Lindo, não é? Pena que não é verdade. A alternativa, porém, seria ainda pior quando aplicada à burocracia. Se para provar que se sabe ler e escrever fosse necessário fazê-lo diante de tantas testemunhas, estas, por sua vez, precisariam provar não apenas sua identidade como sua capacidade de determinar se a pessoa efetivamente leu e escreveu diante delas, o que por sua vez requereria que elas mesmas comprovassem isso diante de outras tantas testemunhas, que por sua vez... E por aí vai. O inferno é o limite da burocracia.

Daí a importância dos superpoderes obtidos por concurso público. A presunção de veracidade que a fé pública dá corta pela raiz esses mecanismos de dúvida metódica burocartesiana. Cada país lida dum jeito com estes problemas, mas não sei de nenhum em que não haja esta maneira de evitar loops burocráticos infinitos. Em cada canto do mundo emitem-se certificados a quem cursou isto ou aquilo, papéis que formalizam um pedacinho duma árvore genealógica, ou documentos que atestam a identidade das pessoas ou sua habilidade de fazer tal e tal coisa.

Evidentemente, melhor seria acabar logo com essa palhaçada burocrática, que tanto perpassa nosso mundo que esquecemos ter apenas um século de existência. Cem anos atrás era possível dar a volta ao mundo sem documento algum. Hoje, todavia, precisamos de papéis mágicos até para ir à esquina. E se formos de carro, multiplicam-se os papéis necessários, já que no mundo de fantasia da burocracia tanto a existência do carro quanto sua propriedade e nossa habilidade de conduzi-lo têm de virar papeluchos mágicos.

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Aqui em Pindorama temos, ainda, outro problema legal legalzinho, que é o fato de a última flor do Lácio ser a língua oficial. Destarte, não importa se um burocrata encarregado de receber um papel mágico emitido alhures e escrito em outra língua já tiver visto centenas de papéis semelhantes e entender perfeitamente a língua em que está escrito. Ele não pode reconhecê-los se estiverem noutra língua que não a de Camões e Anitta. Se o portador do tal papel – digamos que seja um diploma polonês dado a um brasileiro que morou lá – fosse traduzir oralmente, ou mesmo por escrito, o tal documento, abriria-se outra caixa de Pandora burocrática. Digamos que o documento ateste que o sujeito tenha uma capacidade, e por interesse pessoal seu portador afirme que ele atesta outra capacidade, mais valiosa. Ora bolas, polonês é uma língua que quase ninguém fala, e dificilmente testemunhas presentes terão a capacidade de assegurar o acerto da tradução para evitar este tipo de fraude. Mesmo que tivessem, tais falantes de polaco ou javanês teriam de atestar dalgum jeito sua capacidade, e eis que estamos mais uma vez no mesmo loop burocrático infinito. Como garantir, então, que a tradução seja verídica?

A solução brasileira, aliás muito engenhosa dentro do modus operandi da burocracia moderna, é a figura do tradutor público, ou tradutor juramentado. Trata-se de um profissional autônomo reconhecido pelo Estado, com fé pública para a tradução de quaisquer documentos. Cria-se tal criatura com um concurso público, geralmente muito concorrido apesar de não haver salário nem aposentadoria e o preço da lauda de tradução ser bastante baixo. O feijão-com-arroz do trabalho do tradutor juramentado é, justamente, a tradução de documentos de identidade e certificados educacionais, com alguns documentos judiciais no pacote. Para fazer direito o trabalho (e é isso que o concurso testa), é necessário que o sujeito conheça bastante bem as terminologias técnicas específicas de ambas as línguas, coisa que não é nada evidente. Como ele tem a tal fé pública, o documento traduzido não requer qualquer comprovação ulterior, sendo aceito pela burocracia como correspondente vernáculo do documento original, exatamente como uma cópia autenticada em cartório (que também tem fé pública) seria para um documento em português. Elimina-se assim enorme quantidade de trâmites burocráticos.

Num desses tiros no pé em que a máquina burocrática é mestra, todavia, este excelente sistema de facilitação está correndo sério perigo. Uma medida provisória de desburocratização, de número 1.040 de 2021, está tramitando na Câmara dos Deputados. Ela propõe, em seu artigo 22, parágrafo único, a dispensa do concurso público “àqueles que obtiverem grau de excelência em exames nacionais e internacionais de proficiência”. É aí que a porca torce o rabo. Afinal, o concurso público de tradutor juramentado é exatamente isto: um exame competitivo de proficiência na tradução de documentos legais, extremamente concorrido, que na medida do possível dá segurança de que o trabalho será bem-feito. Que outros “exames de proficiência” seriam estes?

Um certificado de proficiência em inglês, francês, ou javanês não garante em absoluto que a pessoa saiba escrever uma linha em português

Meu temor – e da vasta classe dos tradutores públicos, entre os quais não me conto – é que sejam simplesmente os exames de proficiência em línguas estrangeiras, como os das universidades de Cambridge e Michigan para o inglês, de Nancy para o francês, e por aí vai. Ora, tenho uma pasta cheia de tais certificados, mas não sou competente o bastante para a tradução de documentos públicos. A razão não é não ter feito o concurso, mas o simples fato de que no jargão jurídico as palavras frequentemente têm sentidos bastante distantes dos usuais na língua. Sem conhecer tal jargão, eu jamais passaria no concurso. Criei todavia dois filhos como tradutor, especializando-me em sociologia, filosofia e áreas correlatas (em que, aliás, também são comuníssimos sentidos técnicos raros dados a palavras de uso comum noutra significação). Mesmo tendo domínio de várias línguas estrangeiras melhor que o de muitos nativos, os jargões e brocardos usuais em documentação pública e judicial certamente me induziriam frequentemente a erro.

Mais ainda: um certificado de proficiência em inglês, francês, ou javanês não garante em absoluto que a pessoa saiba escrever uma linha em português. Pombas, se um diploma de Letras não o prova hoje em dia, que dirá algo em que nem mesmo se tenta examinar o domínio do vernáculo pelo interessado! A tradução, de que já escrevi aqui e cuja crise também apontei neste espaço, exige muito mais que o mero conhecimento duma língua estrangeira e do próprio vernáculo. E o conhecimento necessário duma e doutra língua, igualmente, não é o mesmo conhecimento exigido no uso cotidiano – exatamente o que é medido em exames de proficiência. Conheço gente que morou fora e fala, lê e escreve perfeitamente noutra língua, mais ou menos no mesmo nível que domina a própria. Vendo-se diante de uma tradução mais simples, como a de um romance policial, contudo, é praticamente garantido que faça um péssimo serviço, justamente por não conhecer nem o português nem a outra língua ao modo necessário. Quando lemos ou falamos, via de regra não cogitamos se não do sentido mais amplo do que se diz. As minúcias e a exatidão que indicam os limites do que é dito raramente são examinadas na vida comum. Ora, elas mudam, tremendamente, duma língua a outra. A tradução literal, à moda Google, simplesmente não funciona na tradução de qualquer argumento mais complexo, ou mesmo na descrição de coisas que julgaríamos serem universais, como as emoções ou a saúde física.

Quando a isso se juntam as dificuldades de ordem técnica e vocabular exigidas na labuta cotidiana do tradutor público, que acaba tendo de conhecer os sistemas jurídicos e educacionais de todos os países que emitem documentos nas línguas com que trabalha, a diferença entre a capacidade medida num teste de proficiência e a requerida para um bom trabalho na tradução juramentada aumenta exponencialmente.

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Fica, assim, a dúvida: o que virá em decorrência desta medida provisória, se ela se tornar lei? Uma classe – a dos tradutores públicos – dividida em duas camadas, uma competente e outra incompetente, sendo que o mau trabalho desta fatalmente plantará dúvidas sobre o trabalho daquela? Se com um mero certificado de proficiência em língua estrangeira se tornar possível obter fé pública para tradução de documentos, são favas contadas que isto venha a acontecer. Ou será o fim da tradução juramentada, levando fatalmente a um aumento tremendo da burocracia necessária para coisas tão simples quanto a aceitação duma CNH estrangeira?

Para desburocratizar de verdade qualquer parte do vasto sistema que engessa e atrofia a administração pública (e, indireta mas brutalmente, a livre iniciativa), é necessário que se leve sempre em consideração o resto do sistema burocrático. Se se desse fé pública a todos os habitantes do país, conjugada com cadeia certa e fechada para quem mentisse formalmente, talvez fosse possível eliminar a tradução pública. Enquanto, todavia, a fé pública é um raro superpoder, e só por meio dele se consegue evitar loops burocráticos infinitos, é necessário que sua oferta seja restrita o bastante para que ela tenha valor. Dar fé pública na dificílima tradução de documentos a quem prova saber pedir almoço em língua estrangeira é, na prática, acabar com a possibilidade de se confiar nas traduções juramentadas. E daí, claro, só fazem crescer os problemas burocráticos que a instituição do tradutor autônomo concursado evita de maneira tão eficiente e econômica.

Conhecendo-se a burocracia e sua tendência a crescer sempre mais, inclusive, não duvido que se acabe “resolvendo” o problema criado pela tal medida provisória criando-se um órgão público federal (possivelmente espelhado por outros estaduais e quiçá municipais), com salários monumentais, aposentadoria integral, prédios, carros e o quê mais, com o único intento de fazer traduções oficiais. Levar-se-á lá um documento e, alguns anos depois, tendo sido devorados milhões arrancados do contribuinte, será emitida a tradução oficial. Provavelmente eivada de erros, aliás.

Afinal, é bem assim que a banda toca.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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