| Foto: Aniele Nascimento/Gazeta do Povo
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Vivemos sob um sistema de administração pública que supostamente, muito supostamente, é uma democracia representativa. Os legisladores e executivos em tal sistema são representantes, como o nome indica. Até aí funciona. Mas quem é que eles representam? É aí que a porca torce o rabo. Por o sistema ser em tese democrático, ou seja, literalmente, governado pelo povo, eles teriam a função de representar este mesmo povo. Infelizmente, todavia, não é este o caso. Nosso sistema teima irracionalmente em fazer passar o poder do povo à classe política por intermédio de uma série de categorias ideológicas que simplesmente – como aliás escrevi outro dia aqui mesmo – não correspondem em nada à nossa cultura, à nossa maneira de ver a “res publica”, a coisa pública.

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Quer-se e insiste-se em que a nossa cultura de origem íbera, extremamente personalista, seja substituída por um impersonalismo ideológico que nos é completamente alheio. A teoria que orienta nosso sistema sustenta que na verdade os atores políticos seriam as ideologias, não as pessoas, e a mensuração eleitoral teria por fim apenas verificar a proporção popular de adesão a cada ideologia, supostamente representada por um dado partido. Contudo, não há, na prática, adesão a ideologias na nossa cultura. O que chega mais perto disto é um mero apoio parcial a uma visão de mundo, com mais exceções que conformações à suposta regra ideológica. Ninguém por aqui orienta perfeita e completamente sua visão de mundo ideologicamente; ninguém compra pacotes prontos de respostas ideológicas teoricamente racionais a toda e qualquer situação, como supõe irracionalmente o sistema em vigor. Daí ele ter uma infinidade de tramoias embutidas para fugir aos desejos não ideológicos do povo, fazendo dele apenas desculpa para dar poder a simulações das instâncias ideológicas típicas da Modernidade que já vai tarde. Vale comparar, neste sentido, nosso sistema aos vigentes nas duas cabeças maiores da Modernidade, a França e os EUA.

Lá como cá, aplica-se entre a vontade popular e o sistema de escolha de administradores e legisladores filtros categoriais ideológicos, ditos cá e lá “partidos”. A assunção subjacente é que as ideologias de todos e de cada um dos partidos estejam de acordo em alguns princípios básicos (democracia, representação, Estado de Direito, respeito a certos direitos fundamentais como vida e propriedade etc.), com uns e outros priorizando certos aspectos e oferecendo táticas pontuais diferentes para a obtenção dos mesmos fins, teoricamente correspondentes a um bem comum estável.

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Quer-se e insiste-se em que a nossa cultura de origem íbera, extremamente personalista, seja substituída por um impersonalismo ideológico que nos é completamente alheio

Na prática, claro, a plena adesão a tal núcleo comum de princípios é mais exceção que regra. Isto é facilmente demonstrado pela ascensão ao poder do nazifascismo europeu, que ocorreu por meios democráticos, representativos e coisa e tal. Foi no sistema e pelo sistema que foram elevados ao poder grupos radicalmente contrários à manutenção do próprio sistema que lá os colocara e de lá poderia retirá-los. Mesmo assim, devido ao fato de as populações francesa e americana terem introjetado o pensamento ideológico moderno a um grau altíssimo, ainda vale observar seus sistemas; daí poderemos facilmente apontar os problemas da importação de ideologias alienígenas ao nosso sofrido país.

Na França, os partidos são entidades, por assim dizer, de curta validade. Raros são os que perduram por décadas – ao menos sob o mesmo nome. Os poucos que o fazem são normalmente as versões “light” de ideologias extremistas e contrárias àquele pacote de princípios básicos. É o caso, por exemplo, do Partido Comunista Francês, que joga pelas regras do sistema democrático e nem sonha em pleitear que todo o poder seja dado aos sovietes ou que os meios de produção sejam retirados de mãos particulares. Os partidos mais normaizinhos, que correspondem à imensíssima maioria de tais agremiações ideológicas (são sempre muitos, lá como cá) e que atraem igualmente os votos da maioria da população, são geralmente montados e desmontados em função de políticas de relativamente curta duração. Em outras palavras, eles são o reflexo de respostas ideológicas relativamente complexas a questões do momento.

Não há (ou quase não há) representação partidária de cada ideologia de base; os partidos representam conjuntos intraideológicos de respostas pontuais. Assim, um político francês bem-sucedido terá ao fim da carreira pertencido a uma boa dúzia de aglomerações partidárias. Cada uma delas, dentro da mesma ideologia de base (centro-direita, democracia cristã, centro-esquerda, socialismo moderado etc.), refletia num dado momento a aplicação prática daquela ideologia a questões políticas pontuais. Assim, a cada eleição tem-se tantos partidos a representar tantas posições dentro de um número menor de ideologias, sem que haja partidos-guardachuva ideológicos em que subpartidos (ou “tendências”, como se diz na política brasileira) reflitam respostas intraideológicas diversas. Quando as questões daquele momento cederem lugar às de outro, os membros daqueles partidos “temporários” se espalharão por outra chusma de novos partidos.

Já nos EUA, em grande medida por herança de sua fundação calvinista, impera o dualismo. Há lá sempre dois grandes partidos, que são os únicos relevantes. Há igualmente alguns poucos partidúnculos insignificantes dedicados a visões ideológicas extremadas (comunismo, libertarianismo...), mas estes não têm na prática importância alguma para o sistema político. Curiosamente, com a evolução e modificação das questões sociais as ideologias dos partidos mudam, podendo um ou outro desaparecer (apenas para ser imediatamente substituído por um novo, para manter o binarismo) ou mesmo ambos trocar de posição. É o caso, por exemplo, da reviravolta radical ocorrida no século passado entre os partidos Democrata e Republicano. Antes era o Democrata o partido racista, ligado à população dos estados sulistas; hoje é o Republicano que exerce tal função. Do mesmo modo, o puritanismo ianque do nordeste do país, mais dado ao uso do Estado como forma de modelagem da sociedade, era representado pelos republicanos e hoje o é pelos democratas.

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Em todo caso, são sempre dois partidos, com as questões políticas do momento em geral recebendo reações diametralmente opostas neles. Se um é a favor, o outro é contra, e vice-versa. Ao contrário do modelo francês, busca-se a união de todas as “tendências” de um dado campo ideológico dentro de um só partido, em que idealmente as tendências dariam lugar a uma perfeita unidade ideológica da esquerda num partido e da direita noutro. Esta situação, inclusive, levou neste século a tamanha exacerbação das divisões políticas por lá que há uma séria preocupação com a emergência de uma nova guerra civil. A anterior, afinal, foi na prática uma guerra entre os adeptos nordestinos do Partido Republicano contra os sulistas adeptos do Partido Democrata.

E aqui? Bom, para começar a população simplesmente ignora o pensamento ideológico. Raríssimos são os brasileiros que veem a política pelos antolhos de uma ou de outra ideologia. Praticamente ninguém por aqui percebe a forma administrativa do bem comum de maneira clara o suficiente para ter opinião formada acerca de como lidar com as questões que venham a incomodá-lo pessoalmente. Quem tem uma percepção mais clara não a tem ideológica, mas pragmática, no mais das vezes. Mais ainda: são pouquíssimos os políticos que sequer proponham soluções (ideológicas ou não) para os problemas que efetivamente incomodam seus eleitores. Os problemas com que a administração pública terá de lidar raramente são tratados no discurso eleitoral. Passada a eleição, do mesmo modo, as diretrizes de cada administração e a propositura legislativa de cada legislador são normalmente movidas por forças completamente alheias a tais questões.

A população simplesmente ignora o pensamento ideológico. Raríssimos são os brasileiros que veem a política pelos antolhos de uma ou de outra ideologia

Tem-se, assim, Brasília impondo um modelo de tomadas novo e chateando o Brasil inteiro, ou exigindo a compra de “kits de primeiros-socorros” perfeitamente inúteis, ou ainda videogames de carrinho para as autoescolas, e por aí vai, para agradar algum amigo que tem a ganhar com aquilo. Têm-se administradores que compram compulsivamente viaturas policiais, mas não abrem concursos para repor os policiais que vão se aposentando ou mesmo pedindo demissão por não ter como sobreviver com salários defasados. Não se tem, todavia, qualquer orientação ideológica da administração ou legislatura. Nem mesmo questões reais e prementes, como a insegurança pública, a precariedade das comunicações pelo interior, o estado das estradas, a ausência de ferrovias e tantas outras coisas que dependem de decisões e prioridades políticas, deixam de passar no mais das vezes em brancas nuvens.

Os próprios políticos, claro, fazem carreira como pessoas, não como representantes intercambiáveis dalguma ideologia. Mesmo nos partidos de extrema-esquerda ou dedicados a causas pontuais (como o Partido Verde), é extremamente comum que o suplente de um legislador seja odiado pelos fãs do titular, e vice-versa. Foi o caso quando o bárbaro assassinato da vereadora carioca Marielle a fez passar da vida à fama: ela foi substituída por seu suplente Babá, do mesmo PSol. Quem votou nela, no entanto, via de regra o detesta, e não foram poucos os protestos de seus eleitores. A percepção dos candidatos pelo eleitor é personalista, não ideológica, e a pouca ideologia que venha a unir candidatos cessa totalmente de existir quando se sai dos partidos extremistas.

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No século passado, quando ainda fazia sentido isso de ideologia, houve algumas tentativas bastante sérias de criar partidos realmente ideológicos. Foi o caso, por exemplo, do PL de Álvaro Vale, que se dispunha a ensinar a ideologia liberal e demandava um curso de liberalismo a quem quisesse unir-se a suas fileiras. Em triste, mas inevitável ironia, o partido acabou sendo literalmente vendido a uma seita pentecostal interessada em angariar poder político quando do falecimento de seu fundador e – na prática – único verdadeiro ideólogo. Tivemos a UDN como partido “da lei e da ordem”. O PTB como partido do trabalhismo. Mas contam-se nos dedos de uma mão, até entre os próceres daqueles partidos, os que realmente abraçavam plenamente a ideologia. E, claro, nenhum deles cogitaria por um segundo ser representante impessoal de ideologia alguma. Um político brasileiro que não se julgasse insubstituível não chegaria nem a vereador antes de ter o tapete puxado e ser substituído por algum coleguinha mais soberbo e ambicioso.

Tendo, então, tal situação em mente, podemos perceber com mais clareza o absurdo do nosso sistema. Por exemplo: em qualquer unidade da Federação os candidatos a deputado estadual ou federal podem receber votos em todo o estado. Ora, em muitos estados a megalópole central abriga mais gente que todo o interior. Na prática, impede-se assim que o interior seja realmente representado por legisladores que tenham interesse em ouvir a população de cada região, e favorece-se enormemente o candidato que disponha de verba suficiente para fazer bem uma campanha espalhada por uma área maior que a de muitos países europeus. Do mesmo modo, o medonho voto de legenda faz com que os votos dados a certas pessoas “puxem” para os cargos em disputa uma cambada de gente em que por vezes nem a mãe votou, em detrimento dos que foram efetivamente escolhidos pela população. Lembro-me quando o popularíssimo Dr. Enéas, com sua figura caricata de cientista louco de desenho animado, conseguiu dar pelo voto de legenda uma cadeira de deputada federal a uma certa “Senhorita Suely”, que nem sequer fizera campanha e ninguém conhecia.

Do mesmo modo, não é permitida a inscrição de candidatos independentes; ou bem o sujeito finge ter uma ideologia e inscreve-se num partido que finja acreditar nos próprios estatutos, ou não pode concorrer. E, claro, ao fazê-lo o mais comum é que a vítima, ops, o inocente pré-candidato seja forçado a dar dinheiro a próceres da legenda de aluguel, precise unir publicamente o seu nome aos de gente mais suja que pau de galinheiro, e por aí vai. É uma situação que, mutatis mutandis, lembra a da felizmente bolsoeliminada Contribuição Sindical obrigatória: uma maneira legal, porém imoral, de dar poder a quem jamais o receberia pela escolha dos supostamente representados!

Mais ainda, o desvio às mancheias (igualmente imoral, ainda que legal) do suado dinheirinho do contribuinte pelos partidos para custear as campanhas “partidárias” (na prática, ele vai para as escolhas pessoais dos chefetes da famiglia, ops, partido), que já seria péssimo, ainda tem como critério a inversão mais absoluta da moral e da lógica. Afinal, o critério básico para a distribuição do que é arrancado do cofre da Viúva é dar mais poder financeiro a quem tem mais poder político. O partido com mais cadeiras, que teoricamente seria o mais conhecido, o mais popular e o menos necessitado de ajuda, é quem fica com o grosso. O partidinho minúsculo, recém-chegado à rinha após monstruosa burocracia que exige que ele tenha representação nacional (!!!), fica de mãos vazias.

Voto de legenda, Fundo Partidário, inscrição obrigatória, exigência de “fidelidade”... Tudo isso pode estar no papel, mas é profundamente imoral num país em que o pensamento ideológico, felizmente, é uma ficção

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Ainda há tantas e tantas tramoias legalíssimas e imoralésimas para manter a ficção ideológica em nossa política que nem vale a pena prosseguir em sua listagem. Já salta aos olhos o absurdo de nossa legislação quando nos damos conta de que essa palhaçada de união em termos de linhas ideológicas é coisa que não colou aqui nem quando estava na moda mundo afora, coisa de 100 anos atrás. Para que haja representação do povo, não das supostíssimas ideologias partidárias, tudo deveria ser refeito. Na prática, não há nenhuma razão honesta para que partidos sejam sequer reconhecidos formalmente pelas leis brasileiras, que dirá para que exerçam esse papel de intermediários entre o povo e o resultado das eleições. Voto de legenda, Fundo Partidário, inscrição obrigatória, exigência de “fidelidade”... Tudo isso pode estar no papel – que aceita qualquer coisa –, mas é profundamente imoral num país em que o pensamento ideológico, felizmente, é uma ficção.

Do mesmo modo, para que haja representação real, é necessário que haja um mínimo de conhecimento popular acerca do candidato e algum interesse por parte dele em ouvir aqueles que em tese representa. Para isto seria necessária a adoção do voto distrital, que ainda tornaria as campanhas muito mais baratas (logo, mais abertas à entrada de quem não tem rabo preso com os mandatários oligárquicos da política) por não mais precisarem cobrir áreas tão vastas.

E, finalmente, um fator que apenas aparentemente não está ligado às questões de que trato acima é a centralização (esta, sim, ideológica) da mídia. O maior eleitor do Brasil é a programação da emissora em que os onipresentes televisores dos ambientes frequentados pelas classes B, C e D estão sempre sintonizados. Não deveria ser permitida ou mesmo tolerada a retransmissão sistemática de programação radiotelevisiva gerada alhures. O alcance máximo de uma dada transmissão deveria ser a área de alcance de uma torre potente. Do mesmo modo, a rara retransmissão simultânea deveria ser limitada à duração de um filme longo, e olhe lá. A produção radiotelevisiva local deveria ser incentivada e a repetição de conteúdo “enlatado” nacional ou estrangeiro, fortemente desincentivada por meios tributários e por legislações locais. Assim se poderia começar a descentralizar a hipnose em massa radiotelevisiva e a diminuir o injusto poder retido por poucos, tão poucos, que tanto mandam em nosso amado e sofrido Brasil.

Então, quem sabe, nosso sistema representativo poderia começar a realmente estar no rumo de se tornar uma democracia representativa, não mais uma oligarquia pseudoideológica. Seria um primeiro passo; os seguintes, felizmente, estariam nas mãos do povo. Pela primeira vez em nossa história.

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