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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Fascismo e genocídio

Mercado de Natal fechado em Salzburgo, na Áustria, país que impôs lockdown nacional após novo surto de Covid-19. (Foto: Christian Bruna/EFE/EPA)

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Como a única coisa em que concordo com Marx é que a história se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa, faço questão de citá-lo quando trato do assunto. É exatamente o que estamos vendo agora. E, como o Brasil certamente não é para iniciantes, ainda temos direito a uma virada divertidíssima para quem estuda o assunto.

O século passado provavelmente há de receber dos futuros historiadores algum apelido do tipo “Século das Trevas” ou Século do Genocídio”. Nunca tantas pessoas foram mortas pelos governantes dos lugares em que viviam, em toda a história da humanidade. Os avanços tecnológicos da Revolução Industrial culminaram no assassinato em escala industrial, com mais de 100 milhões de inocentes chacinados pelos próprios governos. Com teria dito um dos genocidas, “uma morte é uma tragédia, mas um milhão de mortes é uma estatística”. Lembro que a questão da legitimidade dos governos genocidas não entra na questão. Afinal, o modo como o poder foi capturado não os torna menos responsáveis de fato, ainda que não de direito, pelo bem-estar das populações que dizimaram.

As duas formas mais abertamente assassinas de (des)governo foram o comunismo e o nazismo – este, em sua variante nazifascista alemã. Ambos os sistemas eram totalitários, não meramente autoritários. Em outras palavras, eram governos que se arrogavam o direito de imiscuir-se em cada detalhe da vida de cada cidadão. Mais ainda: arrogavam-se o direito de determinar quem teria ou não o direito de continuar vivo, base do processo genocida. Foi este o fenômeno histórico em sua primeira forma, de tragédia. A tragédia anunciava-se desde o solapamento das bases da sociedade europeia em 1517, tendo sido informada em Vestfália e primeiro atualizada em rubra flor de sangue na Revolução Francesa. Mal que bem, ambos os totalitarismos do século 20 eram formas atualizadas desta primeira e mais radical experiência de modernidade coletivista: a raiz venenosa que inventou a primeira máquina de matar gente indesejada, a guilhotina. A combinação moderna da autoridade absoluta dos governantes – cujas decisões seriam, afinal, “científicas” – com a falta de uma base filosófica ou religiosa sólida a limitar os caprichos dos poderosos pode ter começado como uma forma de liberalismo, mas o ovo da serpente já estava ali desde o início.

Comunismo e nazifascismo eram totalitários, não meramente autoritários. Eram governos que se arrogavam o direito de imiscuir-se em cada detalhe da vida de cada cidadão. Mais ainda: arrogavam-se o direito de determinar quem teria ou não o direito de continuar vivo

O “Estado que nos salva do bicho-papão” de Hobbes e o “Contrato Social” de Rousseau apontam inexoravelmente para a personalização do mecanismo de governo no médio prazo e para a deificação do governante em etapa posterior. Não é por acaso que no comunismo, por exemplo, o governante tenha um papel semelhante ao da Virgem Maria na teologia católica, mediando todas as “graças” materiais e econômicas e merecendo a veneração pública de todos os seus “filhos”, com estátuas por toda parte e atribuição de todos os bens e de nenhum mal. No fascismo, menos dado a tais pseudo-humildades que a “vanguarda do proletariado”, o Líder (Duce ou Führer) vai infinitamente mais longe e se coloca diretamente na posição de Deus Pai, exsudando masculinidade e impondo os “mandamentos” que dariam ordem à sociedade.

Pois agora eis que o mesmo horror retorna, mas desta feita como farsa. Também era previsível que isso viesse a acontecer. Estou eu aqui há algumas décadas dizendo que o Primeiro Mundo estava no caminho de um fascismo frustrado por farsesco. Só a desculpa que apareceu para a totalitarização das sociedades ocidentais, de que tratarei mais à frente, foi surpreendente.

O fenômeno em si é tão simples que chega a ser evidente: o pensamento moderno é ideológico, ou seja, coloca a ideia de como a sociedade deveria ser acima da realidade dos fatos, e faz de tudo para que esta se dobre àquela. Cada modelo político da modernidade traça uma utopia (por definição irrealizável, e sempre negando a imutabilidade da natureza humana) e tenta, a ferro e fogo, ajeitar a realidade a tal leito de Procusto. Quem não se encaixa, como os pés de alguém maior que o lendário leito, é cortado fora de algum jeito. Daí o genocídio acabar sendo quase inevitável.

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Estando assim por definição desligada da realidade que tenta amoldar à ideia, a reação moderna quando surge algo imprevisto ou meramente desviado do caminho da utopia é sempre fazer mais do mesmo, com mais força ainda, sem nem sequer tentar discernir as causas de tal emergência. Para o manejo cotidiano da população, contudo, não basta um alvo positivo (a utopia). Um bicho-papão de plantão é essencial para que o Estado assuma uma missão hobbesiana de proteção. Quanto mais totalitário for o Estado, mais necessário é que haja um inimigo; afinal, só uma ameaça realmente assustadora pode justificar a tremenda capilaridade social de um sistema totalitário. Ele pode ser os judeus, os kulaks, as pessoas de óculos (foi assim no Camboja), os fascistas, os comunistas, os terroristas islâmicos, os trans, os anti-trans, os LGBT*¨&%$%¨#$@+, o que bem se quiser. Sem um bicho-papão bem feio de que a população esteja em tese sendo protegida pelo Estado, o bafo estatal no cangote seria insuportável.

Dado o domínio da Academia pela esquerda, ou mesmo pela extrema-esquerda, em todo o Primeiro Mundo, o bicho-papão fascista era a bola da vez até ano retrasado. Cabe lembrar que – coisa mui prática – para a extrema-esquerda o “fascista” não é apenas quem segue as teses de Mussolini e seus camaradinhas, mas todo e qualquer ator político insubmisso a seus ditames. No finzinho da Guerra Civil Espanhola, quando os stalinistas conseguiram dominar completamente o governo republicano (aproveitando para levar para Moscou toda a reserva de ouro da sofrida Espanha), até mesmo os trotskistas e anarquistas eram tratados de “fascistas”. Chega a ser engraçado.

Ironicamente, as péssimas experiências de socialismo real do século passado, bem como os feudos comunistas ainda persistentes em Cuba e na Coreia do Norte, levaram a extrema-esquerda a procrastinar o ponto principal de sua suposta utopia. Explicou perfeitamente São Tomás de Aquino, coisa de 800 anos atrás, que o que engorda o boi é o olho do dono. Assim, um boi de propriedade coletiva – como na utopia comunista – estará ou bem esquelético ou bem morto. Quem contava com sua carne ou com o leite da vaca, claro, fica a ver navios e a fome se instala. Tendo percebido esta obviedade (ao custo de coisa de 100 milhões de mortos), a esquerda passou a tolerar o que era o pecado maior no catecismo da extrema-esquerda. A famigerada “propriedade particular dos meios de produção”, ainda que alinhada aos interesses do Estado, afinal, é o que garante que haja um olho de dono a engordar o gado. Lembro que Lênin teve de fazê-lo emergencialmente na Rússia com sua Nova Política Econômica, desmanchada por Stálin assim que pôde. A esquerda agora permite negócios particulares, sim, desde que completamente engessados pelo Estado e respondendo às demandas do Estado, não necessariamente do mercado.

Quanto mais totalitário for o Estado, mais necessário é que haja um inimigo; afinal, só uma ameaça realmente assustadora pode justificar a tremenda capilaridade social de um sistema totalitário

Ora, esta é exatamente a forma fascista de organização da economia. Os pequenos negócios são alijados do mercado pela regulamentação pesada até que sobre apenas um punhadinho de grandes bancos, grandes redes de supermercado, grandes latifúndios com gigantescas áreas de monocultura, e por aí vai. Convenhamos que é muito mais fácil obrigar um ou dois grandes negócios a seguir os arbítrios do governante que os impor a uma multidão de pequenos negócios.

O último plano infalível da esquerda, seguindo a tendência das fases anteriores da Era Moderna, era a implantação em escala global ou quase global de algo semelhante ao que levou os burocratas não eleitos de Bruxelas a efetivamente governar as supostas democracias da União Europeia. Até o fim de 2019, em preparação para a planejadíssima e desejadérrima tomada global de poder, o bicho-papão com que a esquerda tentava meter medo em todo mundo era um muito próprio seu: a ditadura fascista. Os malvadões seriam os populistas, únicos opositores reais da mesma esquerda que os usava de bicho-papão para lubrificar o parto da mesma ditadura, que nos “protegeria” dos fasciopopulistas malvados. A concentração dos bancos na era petista no Brasil, por exemplo, foi algo que faria Mussolini sorrir de orelha a orelha. Os “sistemas pedagógicos” de apostilas escolares tupiniquins, então, o fariam suspirar e revirar os olhinhos.

Tivemos, contudo, interrupções brutais do processo aqui e nos EUA. Sua causa foi justamente a subida ao poder de populistas. Trump e Bolsonaro foram pintados pela esquerda como líderes fascistas, satanizados como se desejassem e pudessem implantar ditaduras no dia seguinte à posse. Seus mandatos desregularam o avanço do processo global. Isto ocorreu devido ao fracasso total da tática esquerdista de assustar a população com o pseudofascismo desses bichos-papões. Mesmo depois de a esquerda tentar tocar o terror pintando suásticas por todo lado, na ilusão de que seriam atribuídas a seguidores do malvado populista, a população continuou preferindo os populistas. Eles foram eleitos, e só então a esquerda descobriu que é só ela que tem medo do bicho-papão “fascista”. Mais ainda, claro, quando sua falsidade é tão evidente para quem não acredita no papai noel Marx. A repetição como farsa da história, assim, começou do modo mais farsesco possível. Convenhamos: a base do processo e do sistema fascista é um culto à pujança da masculinidade jovem; à força, à agressividade potencial quase palpável de grandes grupos de rapagões musculosos uniformizados. Daí, inclusive, a grande atração exercida pelo fascismo sobre os homossexuais, de Ernst Röhm a Milo Yannopoulos. Um líder fascista que não seja a figura paterna substituta de um bando de latagões uniformizados não é um líder fascista.

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Figuras solitárias e desprovidas de tropas de assalto obedientes e adoradoras da morte, como Trump ou Bolsonaro, não servem nem poderiam servir de figura paterna hipermasculina para quem quer que seja. Tampouco, aliás, teria como exercer tal função psicossocial o Lulinha-Paz-e-Amor que levou o PT ao poder. Há, é verdade, enorme quantidade de órfãos de pai vivo por aí, que seriam uma excelente massa de manobra para um líder fascista. Felizmente, todavia, não há líderes fascistas no mercado atual. Ainda que Ciro Gomes, por exemplo, tenha o temperamento irascível necessário, faltam-lhe o essencial componente psicopático e, mais ainda, aquela insegurança profunda que faz com que o líder busque incessantemente a adulação das massas e dela se alimente; precise sempre provar-se o melhor, o mais inteligente, o mais arguto, o mais forte, o mais poderoso. Ciro tem a arrogância de um seguríssimo coroné nordestino, e não acha que precise provar nada a ninguém. Mutatis mutandis, o mesmo vale para Trump, que nunca lidou com alguém que não pudesse comprar; para Lula, que se afirmou com todas as letras um homem “sem pecado” (o primeiro desde São João Batista!); para Bolsonaro, que se contentou com o baixo clero da Câmara por décadas. Pessoas seguras de si não têm as características psicológicas necessárias para que se tornem líderes fascistas bem-sucedidos.

Mesmo sem líderes “capacitados” (no pior sentido do termo), contudo, o retorno ao modo de farsa do fascismo está de vento em popa. Tendo fracassado junto ao grande público o bicho-papão do suposto fascismo dos populistas, caiu no colo da esquerda globalista o monstro perfeito ao surgir a Covid. O inimigo que espreita como um leão a rugir agora está debaixo da pele de cada concidadão, está no ar, nas cédulas de dinheiro, nas barras dos ônibus. Vendeu-se como gigantesco o perigo do que na verdade não passa de uma gripe especialmente forte, oferecendo real perigo apenas aos já em perigo por causa da idade ou de comorbidades preexistentes. Tão assustador bicho-papão justificaria fechar tudo e trancar as pessoas em casa. Lockdown geral.

Isto, claro, leva à falência os pequenos negócios e aumenta mais ainda a oligopolização do mercado buscada no modelo fascista. Tão perigoso bicho-papão faz com que os não vacinados possam tornar-se o (extremamente necessário) bode expiatório. É irrelevante, para o discurso de terror, o fato de que a imunização dada pela vacina faz com que só corra real perigo quem não a recebeu. Na Austrália, por exemplo, os não vacinados já estão sendo levados para campos de concentração, mesmo que tenham já contraído o vírus e por isto mesmo sejam ainda mais imunes que os vacinados. Tão gigantesco seria o risco que inúmeros gestos arbitrários de pequena obediência podem ser decretados, preparando o caminho para obediências maiores. E tome gente dirigindo sozinha de máscara, gente que só a tira no banho, por aí vai.

Tendo fracassado junto ao grande público o bicho-papão do suposto fascismo dos populistas, caiu no colo da esquerda globalista o monstro perfeito ao surgir a Covid

Por todo o Primeiro Mundo, mesmo já tendo evidentemente passado o pior da epidemia (não creio que o uso do termo “pandemia” seja justificado), restrições cada vez mais draconianas estão sendo impostas às populações. Por sua vez, a reação do populacho tem tomado a forma de manifestações cada vez mais violentas. Sem tropas de choque de latagões apaixonados pela masculinidade tóxica do Grande Líder, contudo (quem se apaixonaria pelo que sobra do Biden, essa velha raposa política empalhada?!), os governos de esquerda que vêm tentando fechar o clima e implantar as famosas ditaduras fascistas (o “Grande Reset”) só podem recorrer às forças policiais. Todavia, policial de esquerda é coisa raríssima; afinal, não há crença rousseauniana na bondade intrínseca do homem que sobreviva a um plantãozinho policial que seja. O resultado é que está cada vez mais frequente que os policiais desobedeçam às ordens ou mesmo recusem-se a receber a vacina e peçam demissão quando obrigados. No Primeiro Mundo, apenas nos poucos lugares governados por populistas sem interesse na fascistização da sociedade as forças policiais estão intactas.

Têm-se, assim, basicamente, duas formas de reação à pandemia: a esquerda tira dela o que pode, fomenta o alarmismo ao máximo e o usa como instrumento de aquisição de mais e mais poder, de arma contra os pequenos negócios e de adestramento pavloviano da população, enquanto a direita populista tenta trocar o medo da doença pelo das vacinas, chegando em alguns casos a negar até mesmo a própria existência do vírus. A grande mídia em geral está do lado da esquerda, e quem acompanha a situação apenas por ela pode ter a impressão de que a Covid é coisa mais grave que a gripe espanhola do século passado, que as pessoas estão caindo mortas como frutos maduros pelas ruas, que o próprio ar tornou-se venenoso.

Daí a curiosa virada da política brasuca. Quando o bolsopresidente era apenas bolsocandidato, o discurso esquerdista em Pindorama imitava, para variar, o da esquerda gringa em relação ao Trump – confesso que sinto saudades de quando a nossa esquerda não era tão cegamente americanizada. O que faziam era basicamente garantir a todos que haveria bolsocampos de bolsoconcentração para, sei lá, homossexuais, quilombolas, o que for. Afirmar com todas as letras que acabaria a liberdade de imprensa. Dizer que todo mundo seria torturado em algum momento. Chegaram a espalhar que a Lei Áurea seria revogada! Em suma, o bicho-papão de então era uma bolsoditadura fascista, iniciada assim que o bolsocandidato fosse empossado bolsopresidente.

As medidas alarmistas mundo afora não ajudaram em quase nada a conter o número de mortes por Covid. Por outro lado, o que esses governos estão fazendo é nada mais nada menos que a implantação de um regime fascista

Como qualquer pessoa com meio neurônio funcionando sabia, contudo, isso era apenas um delírio da extrema-esquerda, a que absolutamente ninguém aderia fora de seus quadros partidários. Como escrevi mais acima, um tremendo e previsível erro de cálculo da parte destes. Curiosamente, após o bicho-papão do suposto fascismo populista ter sido trocado pela Covid ocorreu uma reviravolta daquelas de tirar o fôlego. O bolsopresidente acertadamente deixou aos estados (e, mais ainda, na prática, aos municípios) o encargo de lidar com a epidemia, sem impor lockdowns nacionais, sem obrigar ninguém a se vacinar, sem cercear a liberdade de imprensa e sem aderir ao alarmismo globalista de esquerda. Não deixou, claro, de comprar as benditas vacinas e fazer o pouco que pôde, mas recusou-se peremptoriamente a entrar no corinho do alarmismo esquerdista mundial. Tratando-se de quem se trata, evidentemente também golfaram da bolsoboca algumas pérolas de grosseria e insensibilidade, para deleite e proveito da esquerda.

Daí a mudança do discurso da esquerda, que passou a chamá-lo de “genocida”. Sentido zero, é óbvio, uma vez que simplesmente não tem sentido algum um “genocídio culposo”, e que evidentemente não é o caso de ele, ao acordar um belo dia, ter dado uma bolsogargalhada maligna e resolvido matar a todos por inação. Mas ele seria genocida por não ter feito o mesmo que os governos globalistas de esquerda, cuja cartilha a esquerda brasileira segue. Não entra no discurso, claro, o fato de que as medidas alarmistas mundo afora não ajudaram em quase nada a conter o número de mortes por Covid. Por outro lado, o que esses governos estão fazendo é nada mais nada menos que a implantação de um regime fascista. Exatamente aquilo que o bolsocandidato era absurdamente acusado de pretender (e ter como!) fazer.

Aquele que se acusava de pretendente a ditador fascista, em suma, agora é tido por “genocida” por ter-se recusado a agir como um ditador fascista. Mudam os ventos, mudam as palavras, mudam as acusações; só o que não muda é a arrogância santarrona da esquerda.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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