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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Feiqueníus e factualidade

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“‘Stamos em pleno mar!”, já cantava Castro Alves. Estamos, hoje, em pleno mar de narrativas desconexas, o mar da pós-modernidade. Mas como chegamos nele e, mais ainda, como fazer algum sentido do que vemos ao nosso redor? A primeira coisa a perceber é que a modernidade acabou por ter-se esgotado. Na verdade, ela até demorou bastante para acabar, na medida em que já, desde seu início, ela não fazia sentido. Convenhamos: se me é impossível ter certeza da realidade dos fatos palpáveis, cheiráveis e que nos dão bicuda na canela, como queria Descartes, como poderíamos ter certeza não só da Razão (que, afinal, só tem como “brinquedos” o que antes nos passou pelos sentidos) mas, mais ainda, da razão alheia, como queria Kant? Como poderia ser “universal” uma razão expressa por seres cuja própria existência seria no mínimo duvidosa?

Mesmo com um buraco tamanho bem no meio de seus processos, contudo, a modernidade durou, prosperou e matou enorme quantidade de gente durante coisa de dois séculos, durante os quais a ideia valeu mais que a realidade. A ideia de que alguém (nobres, vendeanos, canudenses, burgueses, culaques, bebês no útero: o “inimigo” ideal do momento) não seria plenamente humano facilitou, aliás possibilitou, o surgimento do genocídio como ferramenta política. A centralização absoluta das sociedades, que alcançou seu auge nos totalitarismos do século passado, foi uma decorrência direta dessa estranha noção de uma ideia universal que definiria a quididade de seres cuja realidade palpável (e, com isso, sua humanidade) estaria sujeita à ideia que se fizesse deles. Uma enorme roubada social, portanto.

Mas a modernidade pôde se perpetuar por todo este tempo por ter sido na verdade o apodrecimento de uma sociedade anterior, esta baseada sobre a moral cristã. Mais ainda: a modernidade foi uma versão idealista de uma sociedade realista, transformando, por exemplo, a moral sexual cristã naquela sua horrenda contrafação que foi a moral burguesa, mais preocupada com as aparências (que seriam tudo o que nos é dado conhecer) que com a realidade. Por dois séculos, apenas a voz da Igreja ousou levantar-se contra o idealismo que matava os pobres de fome por vê-los seja como lumpemproletariado, a ser transformado no Novo Homem Socialista, ou como meros preguiçosos, pobres por culpa própria. Enquanto isso as barrigas roncavam e as crianças nasciam eivadas de problemas causados pela desnutrição.

No terceiro quarto do Século XX, todavia, explodiu-se a modernidade. O mais curioso é que a explosão não veio, como queriam os marxistas, do proletariado. E, mais ainda, não foi uma explosão movida pela inveja econômica, sim pelo nojo da ideia de economia como centro da sociedade, comum a quase todas as escolas modernas, somado ao nojo da moral burguesa e a diversos outros nojos bem saudáveis. Só é uma pena que esta revolta não tenha sabido encontrar novamente a realidade, levando o bestialógico moderno às últimas consequências em vez de cortá-lo pela base podre. Assim, em Maio de 1968, em Paris, os estudantes levantaram-se contra a moral burguesa que proibia visitas sexuais aos dormitórios femininos das universidades, sem perceber que o problema não era que a moral burguesa fingisse que as estudantes eram vestais impolutas, sim que elas já mais que haviam passado da idade de casar-se e ter filhos, e a sociedade impunha-lhes (e ainda lhes impõe) uma escolha de Sofia entre estudar e casar-se. O relógio biológico das moças apitava, desesperado, e os rapazes interpretaram erroneamente isto como significando que a sexualidade feminina seria naturalmente promíscua, como a masculina. E duma escravidão burguesa passaram elas a uma escravidão pós-moderna, em que, como uma famosinha dessas declarou hoje em dia ter sido muitas vezes seu caso, elas tinham que “dar por educação”.

Quase simultaneamente, nos EUA explodiu o “Verão do Amor”, em que à masculinização perceptual da sexualidade feminina e à liberação sexual (em grande medida causada, também, pelo fato de isso haver ocorrido no curto período em que a presença simultânea da pílula contraceptiva e dos antibióticos parecia fazer com que o sexo pudesse ser desprovido de quaisquer consequências) somava-se o uso de drogas como meio de “expansão da consciência”. Curiosamente, assim, substituiu-se à pseudo-racionalidade moderna uma irracionalidade alimentada por psicotrópicos, então tidos por “enteógenos” (ou seja, drogas que fariam surgir um “deus interior” ou besteira do gênero).

Dos dois lados do Atlântico, destarte, com consequências que aqui chegavam atrasadas e no mais das vezes transformadas em ainda outra coisa (Novos Baianos sucedendo Caimmy como sucedâneo do movimento hippie sucedendo os crooners de jazz, por exemplo), explodiu a pós-modernidade. Nela a suposta impossibilidade moderna de ter certeza da existência das coisas fora da cabeça foi levada à sua consequência lógica, negando-se também a possibilidade de conhecimento duma Razão supostamente universal. E sem razão e sem ter lá muita certeza até mesmo de se ter braços ou pernas, o que ocorreu foi uma hiperfragmentação, ainda tremendamente idealista, das percepções: cada um passou a ter a “sua própria verdade”, ou mesmo “verdades” cambiantes. De uma certa maneira, o sonho marxiano se tornou realidade, na medida em que a pessoa pode acreditar-se caçador uma hora (sem jamais ter visto um bicho não domesticado, sem jamais ter tocado numa arma; não interessa, e ainda há sucedâneos digitais de tudo isso!), pescador outra e, finalmente, à noite dedicar-se à critica de orelhas de livros que jamais leu.

O discurso relativista, que prega a suposta verdade absoluta de não haver verdade absoluta, negando assim liminarmente a existência mesma da realidade comum em que vivemos (que, lembremos, foi a primeira coisa a ser sacrificada na modernidade, tendo sido trocada pela crença numa razão universal) e – e eis a novidade pós-moderna – a possibilidade de existência de um discurso racional que atinja a todos. Nisto têm razão; naquilo não.

Esse discurso irracionalista e idealista conquistou a academia, a mídia e, em uma boa medida, o discurso das autoridades. As crianças passaram a ter aulas não mais de História, mas de “desmitificação” e “desconstrução”. Dom João VI passou a ser uma pessoa conhecida por andar com frangos assados no bolso, não por ter sido a única autoridade a conseguir livrar-se de Napoleão sem precisar disparar um tiro. E por aí vai. As aulas de português passaram a ser aulas de… de que seriam elas? Como chamar aulas em que o português falado pelas crianças toma o lugar da norma culta, por não haver mais razão universal a justificar a norma culta, nem – o que é muito pior – possibilidade de compreensão de discursos diferentes daquilo que já se conhece? O ensino como um todo passou a ser uma celebração do atual, sem procurar por um instante que seja empurrar as crianças à atualização de seus potenciais. E daí vieram gerações de analfabetos funcionais, incapazes de ler e entender um texto.

Como já escrevi ad nauseam, o marxismo substituiu o proletariado qua categoria oprimida por um caleidoscópio sempre cambiante de categorias oprimidas, muitas vezes incompatíveis entre elas. São os trans, os sertanejos, os pretos, os traficantes, os crentes, os islâmicos, os macumbeiros, os viciados, as mulheres, as crianças, os velhos, os novos… Só o que sobrou foi um estilo literário marxiano, segundo o qual toda história tem que ter um oprimido, um opressor e um levante daquele contra este. E este estilo tornou-se a forma narrativa fundamental da mídia, da academia e da política. Saiu daí, é-se necessariamente um opressor. Claro, em bom modo pós-moderno, os que negam o politicamente correto passaram a definir-se, com orgulho, como “opressores”. Como diria Narcisa Tamborindéguy, este avatar vivo e sacolejante da pós-modernidade, “que loucura, gente, que loucura”.

O fato real, todavia, consiste em que a pós-modernidade, exatamente como a modernidade, nega a possibilidade de conhecimento do real. A coisa em si continua inapreensível. Com a pulverização das narrativas, todavia, o que aconteceu foi que passou a haver um enorme esforço voltado para o controle delas, mais ainda que para o controle da realidade. Curiosamente, estava eu outro dia lendo um livro francês sobre a situação francesa, em que a sociedade, como um avestruz, esconde a cabeça debaixo da terra e se recusa a encarar o fato real e gravíssimo da negação prática de toda a narrativa moderna de construção da sociedade laicista francesa pelos grupelhos de islamistas radicais que conseguiram, no mais das vezes em conluio com traficantes locais, o domínio político de fato dos conjuntos habitacionais das periferias. São lugares em que uma mulher sem véu pode ser estuprada e morta sem que ninguém levante o sobrolho, lugares em que, como nas favelas cariocas, a polícia só pode fazer incursões em carros blindados, em que o controle não é mais do Estado moderno todo-poderoso. Pois bem, neste livro, em um dado momento o autor de um dos artigos que o compõem diz que a substituição da realidade por miríades de narrativas que a negam é a prática obrigatória da imprensa, da academia e da política. O mesmo, claro, poderia ser dito nos EUA ou na Alemanha. E, evidentemente, no Brasil.

Li hoje mesmo um artigo de opinião escrito por jornalista importante de veículo importante de cidade importante de nosso desimportante país. O sujeito primeiro dizia que a esperança estava em tal e taloutra categorias. Adivinham quais eram? Pois bem, eram os famosos “oprimidos” das miríades de discursos atomizados do marxismo pós-moderno. Pretos, pobres, trans, LGBTCIAFBI+, et caterva. Todo o pessoal que na verdade não está nem aí para a esquerda e suas narrativas de vitimização, mas que é usado sem dó por ela como bucha de canhão. Depois, claro, a referência obrigatória ao Che Guevara da modernidade brasuca: para o autor, esse pessoal todo teria sido vitimizado no assassinato da grande Marielle Franco (encomendado, aliás, por um político fisiologista à moda antiga, sem qualquer razão ideológica e absolutamente desligado de qualquer categoria de vitimização a que a falecida tenha supostamente pertencido). E, finalmente, os culpados de sempre: a PM, a PM, a PM e mais alguém; talvez a PM.

Note-se o desligamento absoluto da realidade. Ela continua importando tão pouco quanto importava para os pobres palhaços que realmente acharam que meia-dúzia de jornalistas e filhinhos-de-papai genéricos armados no Araguaia iriam fazer um “foco guerrilheiro” que poderia ser a Sierra Maestra brasileira, conduzindo este país todo a uma ditadura totalitarista igual à cubana. Evidentemente, tomaram tamanho piau dos militares que até agora estão lambendo as feridas.

A diferença, agora, é só que o relativismo absoluto, esta contradição em termos, impera. Ou seja: não dá mais para dizer, como diziam os foquistas, que o futuro lhes pertencia por suposta lei da História. Ao contrário: agora tudo o que é sólido desmancha no ar, e a atitude “progressista” de ontem hoje é abominavelmente politicamente incorreta. Peço perdão pela quantidade de adjuntos adverbiais de modo, mas é que na pós-modernidade eles são necessários para desprover os verbos de sentido, e assim os tornar palatáveis ao relativismo total.

Ora, o que é relativo, por necessidade, não pode ser absoluto. A inexistência de verdades objetivas não pode ser uma verdade objetiva. Isto, todavia, é confundido na pós-modernidade com uma busca de retorno às grandes narrativas modernas, não conseguindo os pós-modernos perceber que se trata simplesmente de realismo, de uma percepção verdadeira e objetiva da existência de uma verdade objetiva e real, segundo a qual se a gente avança com os dedos pros olhos dum relativista ele os fecha e recua. Ele sabe que tem olhos, e percebe que os nossos dedos podem feri-los, mas se nega a aceitar a realidade dos fatos.

O resultado é que o que passa por realidade na verdade é algo que consegue ser ainda menos que uma narrativa moderna, por si já afastada da realidade. Tendo sido substituída por miríades de pós-verdades, de micronarrativas, a realidade passa a ser, para a mídia, a academia e a política, uma sequência de micronarrativas (tratadas como “fatinhos” de coluna de faits-divers do início do século passado), de que só interessa o estilo. Assim, se o bolsopresidente diz algo que antes foi dito por Mussolini, há o “fatinho” segundo o qual “Bolsonaro cita Mussolini”. Para os igualmente pós-modernos bolsomínions, todavia, o “fatinho” é que alguém falou aquilo antes de Mussolini. A realidade, ou seja, os fatos a que o bolsoboquirroto estivesse se referindo, a adequação ou não de sua visão a eles, e tudo o mais, é simplesmente ignorado, submergindo na guerra de micronarrativas a ser substituída amanhã mesmo por outra, de modo a criar, mais que uma leitura da realidade, um modo emocional de lidar com ela.

E assim a população se divide pelos seus ódios e amores, pelo seu político de estimação, e de acordo com esta divisão ou bem se dedica a tentar manter-se a par das micronarrativas em conflito para repetir como papagaios cocainados o “contra-fatinho” do fatinho adversário, ou vice-versa, ou os dois ao mesmo tempo. A coerência é perfeitamente irrelevante e opcional. A maioria, claro, suspira, pensa “que gente chata”, e vai ver a “notícia” pela qual uma bonitona torcedora do time tal posou de calçolas e fez sucesso, ou o 61o divórcio ou casamento de outra subcelebridade. Que, na verdade, tampouco passam de “fatinhos”; até mesmo o que passa por religião na maior parte das portinhas de garagem e altares domésticos tornou-se uma sucessão de “fatinhos” desconexos.

Assim, o que determina se uma notícia é ou não feiqueníus é apenas e tão somente o seu efeito emocional sobre quem a julga: se ela lhe aquece o coraçãozinho, não é; se o revolta, é. Isto faz com que, por exemplo, o trabalho das agências de conferência de fatos seja irrelevante na melhor das hipóteses, e tremendamente enviesado na regra. Do mesmo modo, o que uma dada autoridade glandecéfala percebe como feiqueníus é forçosamente diversa da leitura feita por um bolsomínion. E jamais os dois lados se encontrarão. Daí o perigo da criminalização de supostas feiqueníus: só o que isso faria seria criminalizar o coraçãozinho de alguns, para gáudio de outros. E os juízes, quem seriam? Não existe isenção se não pode haver nem realidade nem razão.

E durma-se com um bagulho desses, como diria o marido da mulher feia.

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