Toda sociedade civilizada preza seus mortos. O escritor inglês G. K. Chesterton falava, com razão, da superioridade de “uma democracia onde também os mortos tenham direito a voto”. Raro é o povo oriental que não tem o salutar hábito de manter em casa um pequeno oratório em memória dos falecidos da família.
Eu mesmo tenho na parede, enquadrado como se um diploma fosse, um documento antigo em que a princesa Isabel dá a um antepassado meu uma condecoração. A ideia sempre foi de que ao vê-lo me viesse à mente – e a meus filhos, por que não? – aquela responsabilidade familiar de fazer o melhor, de agir da melhor maneira possível, que há de ter dado a nosso antepassado aquela honraria.
Na sociedade como um todo, honramos os falecidos nos nomes das ruas, e na própria disposição delas; o que centenas de anos atrás foi a construção, casa a casa, de um caminho de bordas habitadas hoje é uma rua asfaltada, movimentada, com sinais de trânsito e automóveis. Mas é o mesmo traçado ancestral, do mesmo caminho ancestral.
Honramos ainda os mortos ao manter vivos os seus valores, ao lutarmos nós também pela preservação daquilo que o suor e sangue deles conquistou. Se nossos antepassados conseguiram pôr fim à escravidão, é um ato de veneração a eles tratar bem os empregados. Se nossos antepassados desenvolveram instrumentos musicais e complexas regras de harmonia, é também venerá-los tocar esses instrumentos e ter em mente essas regras. Se nossos antepassados fizeram comidas magníficas, é um preito de veneração refazê-las e manter vivas as receitas antigas.
E nós, os brasileiros, temos a graça de sermos descendentes de praticamente o mundo inteiro. Ao contrário do que acontece com os povos isolados, como o islandês ou o aborígene australiano, que apresentam baixíssima variedade genética, estando sempre sujeitos a doenças recessivas, nós brasileiros somos os maiores mestiços do mundo. Não há povo que não esteja representado na nossa formação. Todos são nossos antepassados, se procurarmos bem, e de todos temos heranças benditas. Dos godos que se uniram aos celtas e semitas no atual Portugal, ainda em tempos romanos, aos nativos de várias partes da África, vencidos em guerra, trazidos e explorados como escravos, mas depois livres como é o direito de qualquer ser humano, tendo-se-lhes feito justiça pela pena da Redentora, mesclando-se a todos os demais povos ao tornar-se seus descendentes maridos e esposas de outros ainda, vindos da Itália – terra em que todo o Mediterrâneo se mescla com os Bálcãs, do distante Japão e de onde mais for. Nossas árvores genealógicas são, felizmente, tão ricas que podemos nos ver como descendentes de todos os povos, e assim como justos herdeiros de todas as riquezas culturais e espirituais que cada um deles veio a produzir. Aqui, nesta Terra da Santa Cruz, judeus casam-se com árabes e têm genros japoneses. Aqui no Brasil a mentira assassina da “raça” não vai mais longe que o espelho.
E é por termos tantos avós, bisavós e trisavós a nos enriquecer culturalmente que aqui é tão importante a veneração que prestamos aos ancestrais, somada à intercessão por suas almas que a fé cristã manda fazer. Hoje, dia de Finados, os cemitérios se enchem de famílias, as Cruzes das Almas se veem cercadas de velas, as igrejas abrem as portas para mais e mais missas em benefício dos nossos queridos antepassados. Ensina a fé cristã que hoje – aliás, mais ainda: generosamente, a Igreja prorroga por toda esta semana! –, ao rezar numa igreja ou cemitério, podemos libertar uma alma do purgatório.
É o dia deles, o dia daqueles que nos trouxeram até aqui. O inventor do automóvel que nos leva ao cemitério já faleceu, como faleceu o gênio que primeiro asfaltou uma rua; cada casa antiga que vemos no caminho provavelmente foi construída por pessoas que também já foram ao encontro de sua eterna recompensa. A vela que acendemos é igual às velas que nossos bisavós acendiam, quiçá diante da mesma cruz, diante do mesmo túmulo.
A sociedade inteira só existe porque cada geração se coloca sobre os ombros dos falecidos e de suas descobertas. Se a cada geração precisássemos inventar tudo de novo, nem a roda teríamos. Mas, graças aos que nos precederam, graças àqueles por quem hoje podemos e devemos rezar, temos tudo: mercados repletos de comida, casas confortáveis, automóveis e ônibus velozes a percorrer ruas asfaltadas… Tudo isso é herança dos antepassados. E, brasileiros que somos, temos a graça de sermos descendentes de todos estes povos. Nenhum brasileiro, felizmente, pode se dizer membro de uma “raça” pura, menos ainda arrogar-se o direito único de aproveitar a herança de um dentre os infinitos povos cujo sangue, graças ao amor divino e humano, veio a correr por nossas veias.
Ouçamos hoje o voto dos falecidos ao levar-lhes nossa homenagem: é graças a eles que estamos aqui, é graças a eles que temos tudo o que está ao nosso redor.
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