Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo| Foto:

Toda sociedade civilizada preza seus mortos. O escritor inglês G. K. Chesterton falava, com razão, da superioridade de “uma democracia onde também os mortos tenham direito a voto”. Raro é o povo oriental que não tem o salutar hábito de manter em casa um pequeno oratório em memória dos falecidos da família.

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Eu mesmo tenho na parede, enquadrado como se um diploma fosse, um documento antigo em que a princesa Isabel dá a um antepassado meu uma condecoração. A ideia sempre foi de que ao vê-lo me viesse à mente – e a meus filhos, por que não? – aquela responsabilidade familiar de fazer o melhor, de agir da melhor maneira possível, que há de ter dado a nosso antepassado aquela honraria.

Na sociedade como um todo, honramos os falecidos nos nomes das ruas, e na própria disposição delas; o que centenas de anos atrás foi a construção, casa a casa, de um caminho de bordas habitadas hoje é uma rua asfaltada, movimentada, com sinais de trânsito e automóveis. Mas é o mesmo traçado ancestral, do mesmo caminho ancestral.

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Honramos ainda os mortos ao manter vivos os seus valores, ao lutarmos nós também pela preservação daquilo que o suor e sangue deles conquistou. Se nossos antepassados conseguiram pôr fim à escravidão, é um ato de veneração a eles tratar bem os empregados. Se nossos antepassados desenvolveram instrumentos musicais e complexas regras de harmonia, é também venerá-los tocar esses instrumentos e ter em mente essas regras. Se nossos antepassados fizeram comidas magníficas, é um preito de veneração refazê-las e manter vivas as receitas antigas.

E nós, os brasileiros, temos a graça de sermos descendentes de praticamente o mundo inteiro. Ao contrário do que acontece com os povos isolados, como o islandês ou o aborígene australiano, que apresentam baixíssima variedade genética, estando sempre sujeitos a doenças recessivas, nós brasileiros somos os maiores mestiços do mundo. Não há povo que não esteja representado na nossa formação. Todos são nossos antepassados, se procurarmos bem, e de todos temos heranças benditas. Dos godos que se uniram aos celtas e semitas no atual Portugal, ainda em tempos romanos, aos nativos de várias partes da África, vencidos em guerra, trazidos e explorados como escravos, mas depois livres como é o direito de qualquer ser humano, tendo-se-lhes feito justiça pela pena da Redentora, mesclando-se a todos os demais povos ao tornar-se seus descendentes maridos e esposas de outros ainda, vindos da Itália – terra em que todo o Mediterrâneo se mescla com os Bálcãs, do distante Japão e de onde mais for. Nossas árvores genealógicas são, felizmente, tão ricas que podemos nos ver como descendentes de todos os povos, e assim como justos herdeiros de todas as riquezas culturais e espirituais que cada um deles veio a produzir. Aqui, nesta Terra da Santa Cruz, judeus casam-se com árabes e têm genros japoneses. Aqui no Brasil a mentira assassina da “raça” não vai mais longe que o espelho.

E é por termos tantos avós, bisavós e trisavós a nos enriquecer culturalmente que aqui é tão importante a veneração que prestamos aos ancestrais, somada à intercessão por suas almas que a fé cristã manda fazer. Hoje, dia de Finados, os cemitérios se enchem de famílias, as Cruzes das Almas se veem cercadas de velas, as igrejas abrem as portas para mais e mais missas em benefício dos nossos queridos antepassados. Ensina a fé cristã que hoje – aliás, mais ainda: generosamente, a Igreja prorroga por toda esta semana! –, ao rezar numa igreja ou cemitério, podemos libertar uma alma do purgatório.

É o dia deles, o dia daqueles que nos trouxeram até aqui. O inventor do automóvel que nos leva ao cemitério já faleceu, como faleceu o gênio que primeiro asfaltou uma rua; cada casa antiga que vemos no caminho provavelmente foi construída por pessoas que também já foram ao encontro de sua eterna recompensa. A vela que acendemos é igual às velas que nossos bisavós acendiam, quiçá diante da mesma cruz, diante do mesmo túmulo.

A sociedade inteira só existe porque cada geração se coloca sobre os ombros dos falecidos e de suas descobertas. Se a cada geração precisássemos inventar tudo de novo, nem a roda teríamos. Mas, graças aos que nos precederam, graças àqueles por quem hoje podemos e devemos rezar, temos tudo: mercados repletos de comida, casas confortáveis, automóveis e ônibus velozes a percorrer ruas asfaltadas… Tudo isso é herança dos antepassados. E, brasileiros que somos, temos a graça de sermos descendentes de todos estes povos. Nenhum brasileiro, felizmente, pode se dizer membro de uma “raça” pura, menos ainda arrogar-se o direito único de aproveitar a herança de um dentre os infinitos povos cujo sangue, graças ao amor divino e humano, veio a correr por nossas veias.

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Ouçamos hoje o voto dos falecidos ao levar-lhes nossa homenagem: é graças a eles que estamos aqui, é graças a eles que temos tudo o que está ao nosso redor.