“Como poderia haver um passado e um futuro, que o passado já não é mais e o futuro ainda não é? E quanto ao presente, estivesse ele sempre presente e nunca se transformasse em passado, já não seria tempo, sim eternidade.” Assim famosamente escreveu Santo Agostinho, um sujeito muito mais inteligente que eu. Mas a nossa sociedade faz-lhe ouvidos moucos, e age como se vivesse não no tempo, e sim nessa estranha “eternidade” em que o presente seria perpétuo. Isto ocorre em vários níveis, e em todos eles a situação é bem feia quando se sai deste “presente” imaginário. O primeiro deles, é claro, é o dito provincianismo temporal, em que as pessoas simplesmente ignoram que o passado não é o presente, e o julgam a partir de critérios hodiernos. É o caso, por exemplo, da condenação em bloco da Inquisição: no seu tempo, ela foi a forma mais leniente e mais “avançada” de inquérito penal. Muitos dos elementos hoje presentes nas investigações e julgamentos criminais – como o direito à defesa gratuita, por exemplo – surgiram na Inquisição. Quando, todavia, ela é julgada a partir de critérios presentes, ou seja, a partir do que foi feito depois dela, dos desenvolvimentos que a tiveram por base, é fácil condená-la. O mesmo vale para quase tudo; há até mesmo um livro tão ruim que chega a ser engraçado sobre a Idade Média em que o autor, horrorizado, aponta que não havia iluminação elétrica então. É o triste provincianismo temporal.
Mas o problema maior não é com o passado, ainda que este seja um problema muito sério. O passado, bem disse o santo, já não é mais. O mais grave é o que se faz ao futuro, ao porvir. O que temos nada menos é que um verdadeiro roubo, ou mesmo assassinato, do futuro, sacrificando o amanhã em favor de hoje. O desenvolvimento tecnológico e o consumismo, por exemplo, são capitaneados pelos Estados Unidos. Aquele país, todavia, tem sua economia baseada em empréstimos (uso-o como exemplo por ser o maior, mas a situação brasileira, com a diferença de não termos uma moeda de aceitação universal, é em muito semelhante). O que é um empréstimo, a não ser o roubo presente de uma riqueza futura? É o americano de hoje que gasta o que um dia ele espera que seus filhos ganhem. E gasta para quê? Gasta em quê?
Este é outro problema sério. Outro futuricídio. O gasto numa sociedade de consumo é basicamente… em itens de consumo. “Consumo”, originalmente, significava destruição pelo fogo. Uma casa incendiada é consumida pelas chamas. Já um telefone celular ou um automóvel não são “consumidos” neste sentido, sim em outro pior. Eles são feitos para durar pouco, pouquíssimo tempo. Depois de coisa de dois anos de uso um telefone celular vai para o lixo. E do lixo doméstico ele vai, fatalmente, misturado a todo tipo de tralha e nojeira, para um lixão, um monturo, um lugar onde será enterrado. É uma riqueza gigantesca, uma quantidade absurda de energia (tanto no sentido estrito quanto no figurado) que é literalmente enterrada. E o que faz um telefone debaixo da terra, ao longo de anos, décadas ou mesmo séculos? Ele vaza venenos. A composição do telefone, do carro, da máquina de lavar, do televisor, do que quer que a sociedade de consumo prefira descartar num lixão é tão complexa que é impossível reciclar os materiais de que foram feitos os bens “de consumo”. E, em meio a coisas relativamente baratas, como o plástico ou a lata, há enorme quantidade – quando se soma todos os eletrônicos assim descartados – de produtos altamente tóxicos, que ao longo dos séculos ficarão minando e envenenando as proximidades daquele lixão.
Celulares e automóveis são feitos para durar pouco, pouquíssimo tempo. Depois de coisa de dois anos de uso um telefone celular vai para o lixo. Uma riqueza gigantesca, uma quantidade absurda de energia (tanto no sentido estrito quanto no figurado), é literalmente enterrada
Um arqueólogo de hoje fica feliz ao encontrar restos de carvão, cacos de cerâmica e, quiçá, uma que outra sementinha num local de escavação. Não sobrava muito mais que isso onde viveram nossos antepassados, pela razão simples de que as sociedades anteriores não haviam ainda descoberto o nefando truque de sacrificar o futuro em prol do presente. O que elas faziam, o que elas produziam, voltava para o planeta num ciclo natural: os dejetos humanos tornavam-se adubo, não componentes de monturos venenosos.
E há pior, muito pior ainda: a energia tida como mais “limpa”, a nuclear, produz dejetos radioativos que continuarão sendo perigosíssimos ao ser humano séculos, milênios mesmo, após o fim da civilização que os produziu. Agora, neste momento, é fácil saber que são perigosos. Daqui a 5 mil ou 6 mil anos, todavia, continuarão perigosos, muito depois de todas as placas de aviso virarem pó. Dejetos químicos acumulados em monturos, gosminhas assassinas que vazam de eletrônicos descartados por ter sido atingido o fim de sua curta vida útil, são uma armadilha quase gentil comparada a dejetos nucleares. Estes, além de matarem silenciosamente quem se aproxima deles, ainda o fazem de modo suficientemente lento para que seja incerta a origem da doença e – gota d’água da crueldade – brilham no escuro, para garantir que despertem o interesse de quem os encontrar daqui a alguns milênios.
Numa sociedade de consumo como esta em que vivemos, o que mais fazemos é “consumir”: deixar de usar e descartar, mandar pro lixão, coisas que funcionam perfeitamente. Ou quase. Afinal, se uma pecinha ridícula de uma máquina de lavar quebra, é frequentemente mais barato comprar outra máquina que trocar a pecinha. Esta provavelmente nem é mais fabricada, se a máquina não for nova. O mesmo vale, claro, para todos os demais bens de consumo. A ideia do consumo, a ideia da sociedade de consumo, é justamente esta: descartar. Consumir, como que pelas chamas. Produzir bens para destruí-los, e produzir sempre mais para destruir mais ainda. Numa modalidade de destruição que, ainda por cima, é extremamente ineficaz, na medida em que a utilidade do bem é que se perde, mas não seus perigos (toxicidade, esgotamento de matéria-prima, desperdício de energia...).
Para que se possa produzir sempre mais para destruir sempre mais, há inúmeros truques. O primeiro deles, e mais evidente, é a substituição, que se faz passar por “progresso”. Hoje é impossível comprar o computador que se comprava cinco anos atrás, ainda que o que hoje compramos não seja objetivamente melhor (a Lei de Moore, segundo a qual o poder de processamento dobraria a cada dois anos, aparentemente atingiu o seu limite). É ainda possível, com algum esforço, encontrar um farol de um automóvel de cinco ou dez anos. Se não o encontrarmos, contudo, o carro perde sua utilidade. Lixão com ele. Mas o que são cinco ou dez anos comparados com o enorme dispêndio de energia e material necessários para produzir um automóvel?! Ao produzi-los com peças que são usadas apenas para aquele modelo daquela marca naquele ano, garante-se artificialmente que, por falta de uma delas, o carro todo vá para o lixão. Quarenta anos atrás, praticamente todos os automóveis usavam o mesmo modelo de farol. O farol de um Opala, uma Brasília, um Fusca, um jipe… era exatamente o mesmo. Já hoje o farol de um dado modelo de automóvel produzido neste ano já não caberia no mesmo modelo produzido ano passado. Propositadamente. Afinal, para que haja consumo (ou seja, destruição sistemática, envio sistemático para o lixão para envenenar quem tiver o azar de morar por ali daqui a 500 ou 800 anos), é necessário que a vida “útil” dos bens seja artificialmente reduzida; e, convém lembrar, a vida útil de um bem é igual à vida útil do mais frágil dentre todos os seus componentes.
É por isso que, enquanto motores dos carros de outrora eram feitos de aço, os de hoje são uma fraca combinação de plásticos e alumínio. É por isso que os carros, hoje, sob o pretexto fantasioso de proteger seu ocupante, são produzidos de forma a sofrer perda total em um choque frontal a 40 km/h (não queira saber o que ocorre num choque lateral a 70 km/h). E os telefones têm telas desprotegidas, que, ao cair no chão, se quebram e se riscam. E os liquidificadores têm encaixes de copo feitos do plástico mais vagabundo e mais sujeito a ressecamento. E os plugues de fones de ouvido são planejados para perder o contato quando usados frequentemente. Os próprios fones raramente duram mais que uns poucos meses. Os armários de cozinha feitos de metal têm as peças metálicas conectadas por pecinhas plásticas vagabundas, que garantem que o móvel não possa jamais ser desmontado e remontado sem prejuízo. E assim, claro, vá para o lixo. Para o lixão. Tudo, em suma, é feito tendo em vista não o uso, a utilidade propriamente dita, mas o envio daquele produto ao lixão. Assim como os arqueólogos chamam de “sociedade dos vasos encordoados” um grupo de pessoas que deixou para trás, para seu futuro e nosso presente, apenas alguns cacos de vasos decorados com cordas, a nossa civilização será condenada pelas próximas como a “sociedade dos lixões venenosos”. Ou “sociedade das pedras brilhantes assassinas” (os resíduos radioativos de nossas usinas).
Matamos o futuro para gozar de um presente que, na verdade, nem é tão bom assim. E para isso, para produzir o que em última análise nada mais é que lixo, gastamos enorme quantidade de energia e de recursos minerais. Tomando por exemplo os telefones, que são a forma mais obscena deste desperdício, o que temos? Basicamente, uma pessoa de 30 anos há de ter tido hoje no mínimo meia dúzia de aparelhos. E se for só isso, é quase um ludita. Ao falecer, ele terá tido várias dúzias de aparelhos, todos com mais ou menos a mesma função. Para uma função apenas, ao longo da vida de uma pessoa, terá sido gasto o suficiente para construir uma escola. Afinal, uma escola é um investimento no futuro, e é muito simples de se fazer: um teto, um quadro, carteiras e (o mais importante) um professor, e ela está pronta. É um investimento. Mas é simplesmente um gasto, um desperdício absurdo, que haja uma sucessão de telefones de que somos fiéis depositários em seu caminho para o lixão, um após o outro, assim que a sua peça mais frágil pife ou mesmo que o fabricante force sua obsolescência mandando “atualizações” que lhe entopem a memória e impedem que funcione. E com ele vão os carros, e as embalagens tetrapak das gosmas doces com que fingimos nos alimentar, e as lâmpadas, e os mouses dos computadores, logo seguidos por todo o resto destas engenhocas complexíssimas e altamente poluentes. Lixão nelas. O lixão é delas, o lixão é para elas como elas são para o lixão.
Para produzir o que em última análise nada mais é que lixo, gastamos enorme quantidade de energia e de recursos minerais
E veja só, caro e raro leitor, como a coisa fica ainda mais feia quando prestamos atenção nela: os elementos (muitas vezes raros e de difícil obtenção) que compõem o telefone ou o computador que acabamos de descartar não voltarão para as minas de onde foram extraídos. Ao contrário dos dejetos de toda e qualquer civilização anterior, não devolvemos à terra o que dela tiramos. Ao contrário: nossa sociedade envolve intrincadamente um elemento no outro, produzindo peças de enorme complexidade, cujos materiais jamais poderão ser novamente separados. E então joga tudo no lixão. Temos, assim, elementos minerais raríssimos literalmente jogados no lixo. Roubados das futuras gerações e transformados em veneno, um veneno insidioso que daqui a séculos ainda estará minando e poluindo os lençóis freáticos da região ao redor de cada lixão. Um lixão, do ponto de vista de sua composição físico-química, é uma complexíssima combinação de quantidades individualmente minúsculas de elementos preciosos, mas que pela repetição tornam-se grandes quantidades. Sempre, contudo, de tal forma mescladas a outros elementos que é quase impossível extraí-las. E assim elas ficam ali, servindo apenas para envenenar nossos descendentes longínquos, que provavelmente nem saberão que ali houve um dia um lixão. Só comerão os frutos das árvores e das hortas plantadas na região e morrerão cedo, envenenados pelo presente de grego que nós, seus antepassados, deixamos para eles.
Há relativamente pouco tempo, houve um caso interessante que mostra bem o quanto é curta a memória das sociedades: um pessoal estava fazendo um churrasco no quintal de casa, quando subitamente uma explosão monstruosa matou-os todos. Isso foi, se não me engano, num subúrbio de Belo Horizonte, uma cidade de 130 anos de idade. Ora, 130 anos não são nada; Roma está lá há cerca de vinte vezes isso. Mas este pouco já bastou para que fosse totalmente esquecido o fato de que bem ali, onde era atualmente o quintal da casa desse pessoal tão azarado, houvesse tido uma vasta criação de porcos, que deixou para as gerações futuras uma grossa camada de dejetos que, por sua vez, ao se decomporem e voltarem à natureza, liberam gás metano. E metano explode quando incendiado. E nada melhor para incendiá-lo que uma churrasqueira sendo acesa. Ora, convenhamos que uma ou duas toneladas de fezes suínas nada são perto de dezenas de toneladas de metais pesados misturados a plásticos e outras porcarias, como num lixão. Ou, muito pior, uma piscina de material altamente radioativo, dejetos de uma usina nuclear já esquecida na memória dos tempos.
E para que servem as usinas nucleares? Para a mesma coisa que as termelétricas: para produzir vastíssimas quantidades de energia elétrica, para a qual a cada dia inventam-se novos usos. Novas coisas percorrendo o rápido caminho da fábrica para o lixão, com uma rápida passagem pelas mãos de quem endivida as futuras gerações para ser fiel depositário de alguma engenhoca pelo curto prazo de um ou dois anos. É até curioso observar como qualquer casa com mais de 50 anos tem, para os padrões de hoje, um sério problema de falta de tomadas. Afinal, naquele tempo a tomada servia para uma tevê na sala (se fosse o caso) e um abajur em cada quarto. Bastava, assim, uma tomada por cômodo. Já hoje espera-se que se tenha onde ligar ao mesmo tempo pelo menos um carregador de celular, um computador, talvez um tablet, provavelmente uma caixa de som amplificada, uma tevê por cômodo... Tudo, claro, com uma curtíssima vida útil: a tomada de casa é apenas uma rápida escala entre a produção em massa e o descarte em massa. Em detrimento, claro, de nossos pobres descendentes.
As usinas geradoras de eletricidade têm como uso principal da eletricidade que produzem a indústria. Em outras palavras, a fabricação de bens de consumo, que têm por meta o lixão. Produzem-se dejetos radioativos ou uma fumaceira desgraçada (no caso das termelétricas), neste último caso ainda literalmente queimando um combustível fóssil que pode perfeitamente fazer falta no futuro, com o objetivo básico de mandar mais matérias-primas preciosas para o lixão, após rápidas passagens pela mão dos “consumidores”. Na verdade, diga-se de passagem, este é um título enganoso. Nós não “consumimos” nada. Nós simplesmente temos em mão os bens de consumo até que eles mesmos, por desígnio dos fabricantes, “consumam” a si mesmos, deixando de funcionar, e sejam finalmente liberados para ir àquele destino que era desde o princípio o buscado: o lixão.
Tamanho é o ódio às gerações futuras que nossa sociedade demonstra por seus atos (que sempre valem mais que as palavras), que não é de se estranhar que a cada dia diminua a fertilidade de nossas jovens. É o futuricídio.
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