Um desses problemas de comunicação que tornam o mundo um lugar mais curioso é o que vem acontecendo com os termos “globalização” e “globalismo”. A esquerda brasileira, provavelmente em reação de revolta reflexa contra a nova direita, insiste em que seriam a mesma coisa. “Ah, direitista é tão burrinho, tadinho, que não consegue entender que é tudo uma coisa só...” Ao mesmo tempo, a direita explica, replica e triplica que não, que são coisas diferentes, e que o globalismo – ao contrário da globalização – é um perigo real e iminente. Como poucas coisas me agradam mais que brigar com todo mundo, venho aqui explicar que são, sim, coisas diferentes, mas que a nova direita está com medinho de assombração, na medida em que o globalismo não apresenta perigo real algum pela simples razão de ser apenas um estertor dum cadáver insepulto.
É assim que funciona a coisa: “globalização” é o nome que se dá ao processo de “encolhimento” do mundo. Hoje eu posso pegar meu celular (por sua vez fabricado – ou melhor, montado – sei lá onde com peças oriundas de metade do globo) aqui na roça e encomendar diretamente da China um contêiner cheio de repimbocas da parafuseta. Mais ainda: as repimbocas encomendadas serão baratíssimas, mesmo porque, só pra enlouquecer marxistas, a China é um dos raros países ainda governados por um Partido Comunista, e só nesses países encontram-se condições de trabalho em semiescravidão iguais às denunciadas por Marx na Inglaterra do século retrasado. Ora, contudo, esta não é a primeira globalização. Ao contrário, até: já houve muitas. Aqui da minha janela eu vejo uma frondosa mangueira, árvore oriunda da Índia que achou seu caminho até o Brasil nas caravelas portuguesas e aqui se aclimatou ao ponto de ser tida por nativa. Foi numa globalização. O macarrão italiano, importado da China no Medievo, é prova de outra. E por aí vai. É só haver uma facilidade tecnológica qualquer que possibilite uma comunicação mais rápida – seja ela o lombo de camelo, a caravela ou a internet – que a globalização acontece e aumenta. Quando uma guerra ou outra coisa interrompe esses fluxos, ela se retrai. E assim anda a história.
É só haver uma facilidade tecnológica qualquer que possibilite uma comunicação mais rápida – seja ela o lombo de camelo, a caravela ou a internet – que a globalização acontece e aumenta
Ela não é nem má nem boa. Há aspectos péssimos, como as plantações de eucaliptos (oriundos da Austrália) que secam enormes parcelas do campo brasileiro, os jeans-com-tênis-e-camiseta que substituíram os belos trajes típicos elaboradíssimos de cada povo ou a concorrência desleal dos escravocratas chineses ou vietnamitas, que de tudo fazem mais barato. E há outros excelentes, como a difusão cultural que fez da China de hoje um celeiro de intérpretes fantásticos da música clássica ocidental, abandonada no lugar de seu nascimento em benefício de porcarias açucaradas comerciais. A globalização é simplesmente um fato da vida, e a diferença maior entre a atual e as anteriores consiste no fato de que agora sabemos de onde veio isto ou aquilo, por ela ocorrer na velocidade da luz (na internet) ou dos jatos. A manga era, para os índios, simplesmente uma fruta nova e gostosa. Eles nem sequer sabiam da existência da Índia, que dirá da confusão colombina que os tomou por indianos e lhes deu o apodo com que os designaram os europeus. Já o sushi, hoje especialidade culinária cearense, como o churrasco, continua sendo dito “japonês”, por ter vindo rápido o bastante para não trocar de pele no caminho. Mais uma vez, não é mau nem bom.
Já o globalismo é outra coisa. Ele seria (não é, porque jamais virá a ser; por ora o que se tem é apenas um desejo) o auge inalcançado da modernidade. Esta começou, em termos geopolíticos, com o Tratado de Vestfália, que “resolveu” as guerras de religião iniciadas com a revolta protestante dando aos governantes o obsceno poder de definir o certo e o errado, como Adão e Eva queriam obter ao comer do fruto da árvore do conhecimento. Cuius regio, eius religio: a religião oficial passou a ser a do rei de cada cantinho. Ora, isso colocou os reis, literalmente, acima de Deus. A eles passou a competir dizer qual religião é a correta, que moral é a certa, que culto é o desejado. Foi o absolutismo. Na próxima etapa, o cetro de supradivindade passou às garras de um ente de razão dito “o povo”. É o que temos na nossa medonha Constituição: “todo poder emana do povo e em seu nome será exercido”. Poderíamos dizer que o poder “emana do povo” como o chulé emana do tênis: vem dele, mas não é ele nem tem ele poder sobre aquilo. As pessoas que em tese constituiriam “o povo” continuaram sem ter poder algum, tendo sido o poder verdadeiro que elas tinham arrancado de suas mãos pelos reis absolutistas que se viram dotados do poder de negar ao pobre as práticas que sempre lhe haviam dado forças para viver o dia a dia.
Já o “em seu nome será exercido” virou arroz de festa. Todo tipo de déspota, tirano e fanfarrão passou a dizer que governava “em nome do povo”. “Democracia” (ou seja, “o povo no governo”) passou a ser o nome de fantasia de todo tipo de governo e desgoverno, do comunismo stalinista linha-dura (em que a “vanguarda do proletariado”, leia-se o Partido, leia-se o Secretário-Geral do Partido, governa “em nome do povo”) à democracia direta suíça, passando pela representativa de modelo anglo-saxão. Uma coisa, contudo, todas essas formas de governo ou desgoverno tinham em comum: todas elas arrogavam-se poderes infinitamente maiores que os que tiveram os absolutistas que se lhes antecederam. Quando se pensa que estes, por sua vez, já se arrogavam poderes divinos, inimagináveis a seus antepassados medievais, poucas gerações antes, dá para imaginar o quanto as pessoas (“o povo”) perderam.
E foi assim que, aos pouquinhos, chegamos a uma situação ridícula como a atual, em que políticos em Brasília se acham no direito de, sei lá, determinar se, quando e como podemos mudar a cor do carro que compramos. Ou nos exigem que joguemos tantas horas de videogame para que possamos dirigi-lo, mesmo o tendo comprado com nosso suado dinheirinho. Ou, ainda, que os mesmos políticos (ou ministros do Supremo, ou seja lá que raça de candidato a déspota esteja em ação naquele microssegundo) vejam um crime em que os pais eduquem seus próprios filhos, e achem perfeitamente natural arrancar dos pais as pobres criancinhas para que elas não sofram o horror de estudar de verdade com tutores amorosamente escolhidos por seus pais em vez de ficar jogando bolinhas de papel nos coleguinhas cinco horas por dia numa “escola” reconhecida por burocratas.
A modernidade, assim, marca-se por esta ascensão do poder de mando, cada vez mais distante das pessoas a ele submissas. Um prefeito hoje arroga-se poderes que um governante qualquer de há poucas centenas de anos jamais sonharia em ter, um governador se percebe como um semideus, e um presidente da República pode até – como soem fazer os americanos – acordar de mau humor e mandar tacar mísseis na cabeça de um monte de gente inocente. O poder foi subindo, desprovendo os seus donos legítimos, de tal forma que hoje a superstição absurda segundo a qual as crianças pertencem ao Estado e este cede aos pais alguns direitos passa por verdade, passa por lei. O governo, ou, antes, a legiferação diarreica passou a ocorrer em um nível cada vez mais alto, cada vez mais distante das pessoas reais. Tão alto, que cada vez menos é possível percebê-la e cada vez menos é possível fazê-la valer.
Quando do início da modernidade, o que se fez, em primeiro lugar, foi uma vasta demolição no atacado de entidades de autogoverno e mesmo de culturas locais, tudo em prol duma vasta centralização geral. A Revolução Francesa, por exemplo, fez pela força desaparecerem de circulação centenas, ou talvez mesmo milhares, de línguas diferentes faladas pelos sete cantos do país, impondo uniformemente em seu lugar a língua de Paris, a que hoje chamamos “francês”. Algo mais ou menos semelhante aconteceu tardiamente no Brasil, com a despótica proibição pelo infame Getúlio Vargas dos dialetos alemães e italianos que então se falavam em muitas partes do país. Antes mesmo disso já houvera o fim da dita língua geral, inventada pelos jesuítas e que era a língua franca de São Paulo e parte de Minas Gerais (é a língua em que até hoje são denominados muitos bairros e cidades daquela vasta região: ibirapuera, butantã, m’boi mirim, caraguatatuba, pindamonhangaba, itamonte, itanhandu, caxambu, guaratinguetá, itagaçaba etc. são expressões da língua geral).
O poder “emana do povo” como o chulé emana do tênis: vem dele, mas não é ele nem tem ele poder sobre aquilo
A modernidade, assim, veio basicamente uniformizar a língua e, em grande escala, a cultura das vastas regiões que tinham o azar de “pertencer” a um único governante-semideus. A lei passou a vir de cima para baixo. As “nações” modernas – termo que se confunde mesmo com o de “Estado”, mais ainda na medida em que, havendo um Estado moderno, as demais nações existentes no mesmo território eram sempre massacradas até que sobrasse uma só coisa pasteurizada e homogênea – na verdade são criações artificiais, oriundas da aplicação maciça de força de cima para baixo em todos os campos: legal, cultural, religioso (foi o primeiro), político etc.
E o tal globalismo, o que seria? Nada mais simples: ele seria a aplicação disso em um estágio superior. Uma ultracentralização num ultraestado. Assim como o Estado “nacional” francês destruiu culturalmente as muitas nações occitanas, bretãs, d’oil, etc., o globalismo teria por objetivo fazer o mesmo com as “nações” que tivessem decorrido deste processo: a alemã, a francesa, a espanhola etc. É neste sentido que a União Europeia, por exemplo, surgiu como zona de comércio comum e em pouquíssimo tempo se arrogou mais e mais poderes, chegando ao sublime do ridículo de querer determinar como deveriam ser fabricados os queijos típicos de cada região. Os revolucionários franceses, das ardenas mais profundas do inferno, devem ter visto isso, dado um tapa na coxa e reclamado “como é que não pensamos nisso quando foi a nossa vez?!”...
Ou seja: o que os pseudonacionalismos modernos fizeram ao destruir culturalmente de modo quase completo as muitíssimas nações que existiam antes deles alcançarem o poder, o globalismo faria com as “nações” artificiais da modernidade. Seria o próximo passo lógico da modernidade, que se caracteriza (ou caracterizava) pela ideia de jerico segundo a qual a universalidade da razão (ou seja, a opinião única, em última instância) seria algo mais “seguro” que a própria existência do próximo. “Não sei se você existe, mas você tem de pensar como eu” poderia ser o lema da modernidade. Daí a necessidade de pasteurização, de centralização de tudo, que só deveria acabar quando todos pensassem exatamente do mesmo modo, vestissem-se igual (isso aconteceu), falassem a mesma língua (talvez uma forma simplificada do inglês) etc.
Beleza; até aí dá para entender, não é mesmo? Mas aconteceu um probleminha, uma pedra no meio do caminho da ascensão da modernidade a ultramodernidade. Este obstáculo é o fato de que a antinaturalidade da modernidade, ou seja, a sua incompatibilidade com o “hardware” mental do ser humano, impede que ela vá mais além. Ao contrário, até: ela começou já a se desmanchar, e muito rapidamente. Se o “generalíssimo” Francisco Franco sustentou pela força por décadas a ideia moderna de uma Espanha única, hoje os catalães já estão enfrentando a polícia e o Judiciário espanhóis para fazer renascer uma Catalunha em última instância pré-moderna. Na nave-mãe da modernidade tardia, os Estados Unidos, as diferenças culturais entre as costas e o vasto interior já estão levando muitos a aventar a possibilidade de guerras civis e secessões, tamanho é o fosso que se abriu entre as culturas seminacionais que perfazem os EUA. Em muitos outros lugares, as populações estão se levantando contra Estados demasiadamente centralizadores, de forma descoordenada, mas perfeitamente ilustrativa de um ethos, um zeitgeist, um kairós, um momento histórico.
Para que houvesse um globalismo ultramoderno, ou seja, um gigantesco Estado único em que a ONU fizesse as vezes de Moscou, Pequim, Washington, Paris e Brasília de uma vez só, seria necessário que houvesse Estados nacionais sobre cujos ombros pudesse se levantar o superestado, ou ultraestado. Moscou, Pequim, Washington, Paris e Brasília precisariam colocar suas tropas a serviço da ONU (ou do que quer que fosse desempenhar este papel de ultragoverno do ultraestado) para fazer valer as novas ultraleis por toda parte.
Mas não é mais este o momento histórico. Alcançamos o “peak centralization”, o ponto máximo da maré montante de centralização. Ela chocou-se com a barreira de pedra da natureza humana, que simplesmente não consegue lidar com instituições demasiadamente distantes da escala humana e familiar. Na exata medida em que os Estados nacionais modernos foram roubando poderes das famílias e das instituições de cooperação mútua intermediárias entre estas e o Estado, eles foram enrolando uma corda no próprio pescoço, aproximando-se cada vez mais do ponto que finalmente alcançaram, em que aos olhos da população como um todo eles pararam de fazer sentido.
Em muitos lugares, as populações estão se levantando contra Estados demasiadamente centralizadores
Os “coletes amarelos” franceses não conseguem perceber sentido algum nas leis que emanam como chulé do tênis pútrido que se tornou o Estado francês. Os ingleses chegaram à conclusão de que Bruxelas enlouqueceu, e não duvido que em breve os escoceses tentem novamente livrar-se do tacão inglês. Os legiferadores simplesmente chegaram a um ponto em que estão longe demais, em que se tornou impossível distingui-los das ervinhas do Monte Olimpo onde julgam estar. Com isso, eles perderam o poder de fato, mesmo que ainda não o tenham percebido.
Os recrudescimentos nacionalistas húngaro e polaco nada mais são que um primeiro movimento de recuo; estes países, lembremo-nos, acabam de se ver livres da tentativa brutal de globalismo forçado que foi a União Soviética. Não se trata de uma ascensão nacionalista sobre elementos infranacionais (como no discurso que quer percebê-la como antissemita), sim de uma afirmação nacional sobre elementos supranacionais, ou antes ultranacionais. Há muito mais em comum entre a Catalunha e a Hungria, a Polônia e a Inglaterra do Brexit que entre qualquer uma destas e os nacionalismos do século passado, que eram simplesmente a fase final da centralização “nacional” que hoje começa a se desmanchar. Hitler juntou sua Áustria natal à vasta (e então novíssima) Alemanha, tentando criar uma nação germanófona única. Para isso, inclusive, ele começou anexando os Sudetos e rumando à Konigsberg de Kant. Já os nacionalistas alemães de hoje, como o AfD, estão tentando sair do monstro de Frankenstein em que a cabeça (ou antes o bolso) alemã foi costurada ao resto da Europa por Bruxelas, negando todos e cada um dos pertencimentos nacionais ou infranacionais em prol de uma ultranacionalidade, um ultraestado, uma ultracentralização que jamais virá a ocorrer plenamente.
Assim, é evidente que, sim, claro, o globalismo é péssimo e não merece apoio algum. Por outro lado, sua chance de efetivamente ocorrer, de ir mais longe que o que já foi, é simplesmente nula. Negativa, mesmo. O que se vê por aí, nas UE e ONU da vida, são simplesmente estertores da decomposição do cadáver insepulto da modernidade. Quando um cadáver arrota, ela não está demonstrando vida como um bebê que o faz, e sim provando sua putrefação, ao libertar os gases formados pela decomposição de suas entranhas. Não precisamos ter medo de cadáveres, sim de gente viva demais.