Nada surge do nada. Toda ação humana, todo pensamento, todo raciocínio, toda organização social, e até mesmo a percepção de doenças e remédios têm uma base de crença anterior, muitas vezes subconsciente e jamais examinada, mas sempre presente. Esta base aponta para a visão que cada pessoa (e, a fortiori, cada agrupamento político ou social) tem da organização geral de tudo o que existe. Como na nossa sociedade herdamos o pensamento grego e semita, com sua noção racional de um Deus único e necessário como intermediário entre o nada e a existência de tudo o que é contingente, chamamos a esta visão da ordem de todas as coisas religião, do latim re-ligare, re-ligar a criatura humana e o Criador. Afinal, na nossa cultura é Ele o criador e mantenedor desta ordem.
Evidentemente, todavia, não é necessário que se tenha a crença cristã no Deus pessoal para que se tenha maneiras de lidar com essa ordem, com alguma coerência interna a informar, ou ao menos a servir de platô para a construção de um vasto sistema que pode englobar de tudo o que existe a – nos casos mais reducionistas, como o marxismo ortodoxo – apenas as relações econômicas entre classes sociais. Esta visão, em todo caso, não deixa de ser se não uma religião em sentido estrito, ao menos uma em sentido lato; um marxista vê o mundo pelo prisma de sua “religião” materialista e reducionista, em que o deus é o processo dialético que moveria a História. Religião será ainda, todavia, a sua visão, e com isso ela terá sempre todos os atributos de qualquer religião que se preze, duma ortodoxia (que necessariamente implica em milhares de heterodoxias – ou heresias – possíveis) a um clero, passando por um sucedâneo da graça divina, outro da oração, outro de cada um dos Sacramentos, e por aí vai. Não vale a pena alongar-me aqui nesta questão, mas quem parar para pensar reconhecerá todos estes elementos em qualquer uma das religiões ateias dos últimos séculos.
A maior parte dessas pseudorreligiões, todavia, permanece inconsciente. A imensa maioria das pessoas jamais se preocupa em examinar aquilo em que acredita, partindo todavia ainda das bases subconscientes das suas decisões pessoais. E, como disse Chesterton, quem não acredita em Deus acaba acreditando em qualquer besteira. Daí, claro, os famosos gnomos. A alguns anos, era comum que gente dada a falsos misticismos e espiritualidades supostamente arreligiosas cultuasse “gnomos”, no mais das vezes na forma de bonequinhos de pano. Ora, os gnomos, originalmente, não tinham chongas a ver com esse besteirol nova-era. Seu besteirol era outro. Tratava-se, para resumir, da maneira como os celtas íberos recém-chegados à Irlanda representavam os nativos anteriores, por eles chacinados. Um pouco como um “preto velho” ou “menino do pastoreio” no Brasil, eles eram tidos por entidades que podiam variar entre o abertamente malévolo e o benéfico, e que, claro, não estavam acima de serem compradas ou de fazer algum tipo de comércio. Já os gnomos dos apartamentos de classe média brasileiros eram coisinhas fofinhas, simbolizando uma vaga bondade universal jamais examinada racionalmente. Mas guardemo-los por ora em banho-maria, para que não esfriem muito, enquanto continuamos a passear pelas falsas manifestações religiosas da modernidade.
A modernidade é uma brincadeira de mau gosto com mais ou menos quinhentos anos de idade. Traça-se a sua origem ao gesto dramático do mau monge agostiniano Lutero, que pregou uma lista de ideias mal-cozidas na porta duma igreja cheia de relíquias na véspera do Dia de Todos os Santos, quando, claro, esperava-se a chegada de multidões. Bom marqueteiro e péssimo teólogo, ele iniciou o que se convencionou, erroneamente, chamar de “Reforma” protestante. Não se tratava de uma reforma, sim de uma recriação ou refundação, na medida em que, justamente, ele negava – no mais das vezes sem se dar conta, por pura ignorância – os elementos mais básicos da Fé cristã, basicamente substituindo a Igreja pela Bíblia e negando na prática a Encarnação do Verbo.
O resultado deste fenômeno foi, claro, a segunda parte do título deste artigo: o iconoclasmo. Iconoclasmo significa, literalmente, “quebra de imagens” em grego. E foi o que aconteceu na revolta luterana (e nas outras formas que imediatamente tomou o monstro saído da Caixa de Pandora aberta pelo alemão, o calvinismo e o anglicanismo): multidões de pessoas que até a véspera rezavam diante daquelas imagens, num surto de fúria, levantaram-se e as quebraram, em massa. Não foi a primeira vez na História, nem a primeira vez na Igreja. Nesta, já havia surgido um surto de iconoclasmo por influência da novel heresia islâmica, no início do Século VIII. Fora dela, do mesmo modo, substituições religiosas haviam se operado da mesma maneira. Os próprios missionários cristãos, por exemplo, cortaram inúmeras “árvores sagradas” dos pagãos no Norte europeu, além de destruir miríades de imagens de deuses greco-romanos mais ao Sul. Na própria Escritura, vemos no Antigo Testamento a destruição de imagens pagãs pelas tropas hebraicas, na conquista da Terra Santa e em outras ocasiões.
Imagens, afinal, são coisas que apontam para outra coisa. Ninguém – com a exceção de um fã de arte moderna – ao ver uma imagem, deixa de pensar naquilo que ela representa. Quando o representado é ostracizado, são destruídas suas imagens. Daí a iconoclastia protestante, que se seguiu à negação prática da Comunhão dos Santos pelo clero neoprotestante. Ou a dos missionários, que negavam Thor, Odin e outros futuros personagens de histórias em quadrinhos.
A modernidade, inaugurada com a subjetivação da Fé pela substituição da Igreja por sua filha a Escritura Sagrada, levou, por óbvio, à negação liminar da própria possibilidade de haver Fé. Daí o surgimento de todo um panteão humano, demasiadamente humano, em que a santidade não interessava, mas a influência histórico-geográfica material era crucial. Retomando a prática pagã romana, os governantes passaram a ser representados em imagens, inaugurando-se todo um novo gênero de hagiografia e iconologia ao representá-los a cavalo, de pé, sentados, o que for, com cada representação tendo seu próprio código e fundamento na pseudorreligião civil da modernidade. O auge desta, claro, ocorreu no Estado mais moderno, em que a nacionalidade é antes de tudo a adesão ideológica, não supostamente genealógica: os EUA. Neles há estátuas grandiloquentes dos Pais da Pátria, verdadeiros templos a Washington, Lincoln e outros herois-santos-fundadores duma religião civil, à qual toda religião deveria ser subordinada (e, para nossa eterna vergonha, acabou muitas vezes sendo, com bandeiras dos EUA no presbitério de igrejas, no mais das vezes delirantemente “contrabalançadas” por bandeiras tão nada-a-ver quanto do Estado do Vaticano!).
Faz parte do mito fundador a reabsorção do Sul rebelde no todo americano após a derrota daquele na Guerra da Secessão. Daí a manutenção de estátuas de generais confederados, o uso de bandeiras da Confederação, e por aí vai. Mas agora, subitamente, em meio à loucura coletiva provocada em igual medida pela evidência da falência dos Estados nacionais diante da crise do coronga e pelo desespero da população trancada dentro de casa há tanto tempo, começou nova iconoclastia, nova derrubada generalizada de imagens de uma ordem pseudorreligiosa anterior em benefício de uma nova maneira de perceber a ordem de todas as coisas, de uma releitura dos mesmos elementos, de uma, em suma, refundação caótica da modernidade, equivalente atual da pseudorreforma protestante ou da evangelização do Norte europeu. Uma compreensão da ordem, uma maneira de ver o mundo, uma série de pressupostos inconscientes subitamente vê-se negada e transformada em outra. É um desses fenômenos que fazem a alegria dos historiadores, mas que são bastante desagradáveis para seus coetâneos. Que somos nós.
E eis-nos de volta aos gnomos. O que ocorreu com eles, neste intervalo, com estes simpáticos representantes de pano das infinitas besteiras em que acreditam os que não acreditam em Deus? Seria possível uma destruição maciça de gnomos, uma queima iconoclasta de montanhas de gnomos de pelúcia nas ruas das cidades? Dificilmente, mesmo por eles terem sido, justamente, um dos primeiros sinais desta transformação que ora se opera em grande escala. O gnomo, afinal, não é alguém. O gnomo é uma vaga ideia, ao contrário de Churchill, Leopoldo II, o general Lee, Cristóvão Colombo ou quem mais tenha sido destruído em efígie ao ter sua efígie destruída como um boneco de Judas (outra iconoclastia clássica, aliás, em nossa cultura). Os filhos de quem tinha um busto de Voltaire tinham gnomos nas prateleiras. E agora é o busto de Voltaire que cai, enquanto os gnomos, a seu modo, perduram. Tornam-se gnomos trans, ou trans-gnomos, abertos a toda e qualquer releitura… desde que esta não represente alguma forma de retorno às fontes. Um missionário no Norte da Europa pagão os queimaria alegremente, vendo neles um familiar dos Thores e Odins dos cultos pagãos. Mas este missionário pré-moderno não seria aceito numa reorganização do edifício mental de percepção da ordem de todas as coisas que procura, justamente, reorganizar a ordem moderna sem perder suas peças.
Ora, a modernidade, mormente a modernidade iluminista, que é a base maior do pensamento político-social do Ocidente ora iconoclasta, foi um fenômeno curiosíssimo de loucura coletiva, em que uma suposta “razão universal” (ou, antes, “Razão Universal”, uma nova deusa que chegou a ser coroada, na forma – imagem – de uma prostituta viva e peladinha, com todas as suas DSTs, no altar-mor da Catedral de Notre Dame de Paris) dava motivos para divisões como as que jamais houvera desde a cristianização da sociedade. Pretos, vermelhos e amarelos passaram a ser “inferiores” aos brancos europeus; ideologias passaram a não só digladiar-se pelas ruas das cidades mas a buscar a eliminação física dos aderentes de qualquer uma que parecesse “herética” aos detentores do poder, com o trotskismo sendo apodado de “fascismo” e o próprio Trótski mimoseado com uma picaretada no crânio. Diplomas passaram a fazer as vezes de conhecimento, CNHs e quejandos de capacidade, e por aí vai.
A reconstrução revolucionária da modernidade que ora se busca fazer tenta obliterar algumas de suas bases históricas mais abertamente repulsivas ao pouco que sobrou de consciência cristã na sociedade, como o escravagismo e o colonialismo de exploração. Um cristão que não se alegre com a derrubada dos ídolos reverenciadores de Leopoldo II, Churchill, os bandeirantes e alguns outros psicopatas genocidas festejados pela modernidade seria um triste cristão. Por outro lado, na ignorância e boçalidade barbárica que inevitavelmente acabam por orientar atos destrutivos (Savonarola que não me deixe mentir), sempre se vai o bebê com a água do banho, e estátuas de Pe. Antônio Vieira, São José de Anchieta e (não sei, não vi, mas não duvido) do próprio Bartolomeu de Las Casas seriam, claro, alegremente destruídas pela turba ignara. Há até mesmo uma freudianíssima campanha pela castração dos ancestrais, ops, pela demolição da Torre de Belém.
Outras razões para a iconoclastia, todavia, atêm-se ainda aos elementos empregados até agora há pouco na exitosa tentativa de desconstrução da ordem social burguesa que nos conduziu à situação de agora. É o caso, por exemplo, da rapidíssima (em termos civilizacionais) campanha que conseguiu, em tempo recorde, eliminar a condenação social de um dos quatro crimes que bradam aos Céus por vingança, substituindo-a, espantosamente, por sua equiparação ao Sacramento do Matrimônio, operada até mesmo no meio clerical de alguns territórios semisselvagens da periferia da Cristandade, como a Alemanha e a Holanda. Esta foi imediatamente sucedida por outra campanha, ainda mais forte em sua violência social, que busca convencer a todos de que não há nem homem nem mulher, e que um rapaz de vestido de chita é uma bela moçoila. E daí os gnomos transformaram-se decididamente em gnomos trans. O gnomo que antes era masculino ou feminino hoje é multissexuado, bem como o Bob Esponja é gay. Tudo serve no intuito destruidor. Toda imagem será destruída, toda sexualidade biológica será negada, toda relação entre povos interpretada como exploração genocida.
Que as cerimônias iconoclastas de queima de bruxas (por ora, ao menos, somente em forma de estátuas) são religiosas, é difícil negar. O gesto de ajoelhar-se diante dos novos ídolos (os pretos, em geral, nos EUA, mas poderiam ser os trans, quiçá os gnomos trans), as rezas de mantras como “black lives matter”, repetidos até perderem o sentido próprio e se tornarem uma forma de esvaziar completamente o cérebro, os neo-sacerdotes exigindo novos sacrifícios (na dita Zona Autônoma Livre de Policiais de Seattle, uma espécie de invasão da reitoria em escala ampliada ocorrida na capital da esquerda gringa, por exemplo, conclamaram os brancos a tirar dez dólares do bolso e dá-los ao primeiro preto que lhes cruzasse o caminho), e a própria exigência de ortodoxia, devidamente acompanhada de anatematização dos “hereges”, e por aí vai.
Como ocorreu com Lutero, todavia, ainda não se tem como saber no que dará a subjetivização completa da crença iluminista, operada pela negação da Razão Universal, semelhante em muito à negação luterana do Papado que levou à subjetivização e invisibilização da Igreja. O que é certo é que os novos sacerdotes do subjetivismo devem preparar para encontrar enorme quantidade de variações heterodoxas de suas ideias, como ocorreu com Lutero. Ele mandou os príncipes que foram para o seu lado na ânsia de verem-se livres da moral cristã “matarem como cães” os heterodoxos cuja interpretação da Escritura conflitava com a sua. O que acontecerá com as heterodoxias surgidas do novo subjetivismo? Será que para alguns os gnomos trans deverão ser queimados? Ou mesmo os trans por uns e os gnomos por outros? Não há ainda como saber, mas é fácil reconhecer o processo histórico ora em curso como substituição religiosa revolucionária. Como disse no começo deste texto, não é nem a primeira nem a última vez que ocorre uma revolução iconoclasta. Apertemos os cintos e aguentemos.
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