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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Gratidão e merecimento

(Foto: Gabriel Ribeiro/Pixabay)

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Ainda no século passado conheci a então esposa de um ex-aluno. Tive pena, muita pena, do pobre rapaz. Afinal, como um personagem de programa de humor vagabundo, a moça soltava a cada dois minutos um bordão idiota. No caso, “ninguém merece!” As coisas supostamente imerecidas eram infinitas, e consistiam de todo e qualquer dissabor, por menor que fosse. Já por estes dias eu vi, no meio do bestialógico açucarado dos votos de feliz ano novo pelas redes afora, um pobre desgraçado que desejava que todos se dessem conta de “merecer” a felicidade, a riqueza, que sei lá eu. A hoje ex-mulher do meu ex-aluno concordaria enfaticamente.

Ora, receita melhor para frustração e infelicidade permanentes é difícil de achar. Para que tenhamos o ar que nos enche os pulmões, por exemplo, é preciso que todo o universo seja ordenado de maneira a garantir que a Terra mantenha a atmosfera como ela é. As leis da física e da química são necessárias, bem como as distâncias entre os planetas e estrelas e miríades de outros pequenos ajustes cujo resultado é podermos respirar aqui no nosso querido planetinha azul. Para quem não parte do pressuposto materialista que nega qualquer teleologia à realidade, é perfeitamente possível conceber que tudo isso tenha por objetivo permitir a vida humana aqui. A vida humana ao longo dos milênios; não umas curtas interrupções desagradáveis da pureza atmosférica. Mesmo assim, a moça se ofende por “não merecer” uma lufada de mau cheiro exalada por uma lata de lixo no calçadão praiano por onde passeia todo dia. Ora, há talvez uns poucos metros no entorno de uma lata de lixo em que o ar está contaminado com o cheiro de podre. Todo o resto da caminhada (previsivelmente, ela não passeia: “faz caminhada”) só lhe traz a boa brisa do mar.

Ainda que entremeados de instantes de dor, de sofrimentos físicos, morais e mesmo espirituais, os motivos para gratidão estão sempre presentes

Quem se convenceu da besteira absoluta de merecer só experiências agradáveis, no mais das vezes, acaba sendo incapaz de perceber os infinitamente mais numerosos motivos para gratidão. Evidentemente, nem toda experiência é agradável. Algumas – muitas, mesmo – são extremamente desagradáveis. Ao focar nestas e, pior ainda, percebê-las como afronta a um suposto merecimento, garante-se que sejam elas a nos ocupar a mente.  As tantas coisas boas, de que elas são a exceção, passam desapercebidas por serem tidas por “merecidas”.

Meu paciente leitor certamente é uma pessoa muito melhor que eu, e por isso não me atrevo a tentar determinar o que mereça. Contudo, podemos de modo geral apontar que o merecimento é algo relativo a méritos próprios. O atleta olímpico merece a medalha que ganha, por exemplo. Não por ter nascido, não por achar que mereça, mas por ter dedicado a vida àquele esporte, aprimorando-se a cada dia apesar das dores e contusões até conseguir um desempenho acima do de seus competidores na prova mais importante. Não sei nem tenho como saber dos infindos méritos do meu leitor, mas sei que, quanto a mim, o que eu mereço é uma boa sova. Já fiz chorar quem me amava; já me omiti quando deveria agir e me meti no que não me dizia respeito; calei na hora de falar e falei na hora de calar; faltei ao respeito devido ao próximo muito mais vezes que posso contar...

Quais seriam, então, tais merecimentos meus, tais méritos que não apenas anulariam as tantas razões para que eu apanhe, mas me elevariam acima do vulgo e me fariam merecedor de experiências agradáveis? Ou, pior ainda, de ter exclusivamente experiências agradáveis? Ora, bolas, nenhum. Frio e calculista, reconheço que conviver comigo – como com qualquer outro filho de Adão deste lado do Céu – não há de ser experiência garantidamente agradável. Quem com ferro fere com ferro será ferido, e quem causa dissabores os recebe por seu lado.

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Contudo, ainda que entremeados de instantes de dor, de sofrimentos físicos, morais e mesmo espirituais, os motivos para gratidão estão sempre presentes. Batuco no teclado com um gato a dormir no meu colo, e sou grato por isso. Se ele pensasse, creio que apreciaria o espaço extra que a ausência da minha perna direita lhe dá. Escrevo, e sou grato por isso. Ao contrário da imensa maioria dos enfileiradores de letras, ganho até um faz-me rir com as palavras de segunda mão que vendo, vejam só os senhores! Há sempre, aqui na roça onde moro, passarinhos cantando, árvores dançando ao vento e outros mimos, pelos quais seria uma lástima não ser grato. Ouço boa música, e toco meus instrumentos. Leio bons livros e invento maquininhas; algumas delas até funcionam. Ainda que sempre haja um certo suspense mensal, em geral consigo pagar meus boletos. Alguns eu chego ao luxo de conseguir pagar em dia. Não me falta comida, consigo comprar meus remédios e encher o tanque uma vez ao mês. Para inveja de toda a humanidade anterior ao século 20, as luzes na minha casa se acendem magicamente quando mexo nos interruptores, em decorrência do tal pagamento de boletos. Minha vida tem muito mais luxos que a do Rei-Sol. Ao contrário do que sempre foi a regra na vida do homem, não há grandes ameaças a rondar nem o perigo de fome generalizada ou de pestes que matem duas em cada três pessoas. Ao contrário, até: nosso conforto é tamanho que a expectativa de vida avançou ao ponto de o câncer (normalmente doença de idosos) tornar-se causa bastante comum de morte.

É isto, aliás, que explica um pouco a suposição de mérito próprio. Ortega y Gasset, o único filósofo heideggeriano a escrever com clareza, chama de “senhoritos satisfeitos” a gente como a infeliz moça de quem falei. São – em grande medida, somos todos – os que nascemos no berço de ouro de uma civilização construída a duras penas e tomamos por natural (ou merecido) o confortável entorno. Comportamo-nos como um herdeiro pródigo, que se crê merecedor da fortuna que herdou de laboriosos antepassados, mas não a aumenta, sim a dissipa. Hoje a criança já parece nascer com um celular na mão; no parto há muito menos dor e uma segurança obstetrícia inimaginável poucas gerações atrás. A maior parte das dores físicas desaparece após deglutir um comprimido barato e ubíquo. Roupas custam tão pouco que conheço quem prefira jogá-las fora a lavá-las. Poucas são as mães que ainda precisam lavar fraldas, mesmo nas classes menos favorecidas. Quando não se tem carro, há ônibus por toda parte. Mendigos são obesos mórbidos!, nestes nossos tempos interessantes.

Quem crê ter direito a uma vida de perfeita felicidade vive permanentemente frustrado, pois tal coisa é impossível à mera natureza humana

Tudo isso leva ao vício de crer com certeza inabalável que é tudo merecido por cada um. Que nosso destino natural é a fama, felicidade e fortuna. Que as conquistas materiais de infindas gerações humanas são tão naturais quanto o ar que se respira. O resultado é duplo: por um lado, desaparece toda razão para gratidão. Nem os inventores, nem os antepassados, nem o Criador, ninguém recebe a devida gratidão. Por outro lado, o nível de exigência de conforto só faz aumentar. Daí que “ninguém merece!” uma breve lufada de um cheiro que um londrino de 150 anos atrás tomaria por ar puro. Daí a postura de petulante increpação de absolutamente tudo – do cônjuge ao Criador, passando pelo prefeito e por quem mais for – que vier a gerar o mínimo desconforto.

E, pior ainda, daí o foco total naquelas besteirinhas desagradáveis insignificantes que fazem parte da condição humana. Quem crê ter direito a uma vida de perfeita felicidade vive permanentemente frustrado, pois tal coisa é impossível à mera natureza humana. Como, para piorar, tais expectativas conduzem a menosprezar o bem que se tem, o que sobra é apenas a frustração. Não há razões para gratidão se se pensa que o mundo – o universo, Deus, a sociedade, ou o que quer que se considere responsável por fazer cumprir as altas expectativas – não está fazendo a sua parte. Os passarinhos cantam e são ignorados. O oxigênio do ar, ao não ter virado gás metano subitamente, não fez mais que sua obrigação. O pouco sal da comida na mesa ganha mais importância que o fato de ela ser boa, farta, e acompanhada por vinho de boa cepa. Os boletos pagos não são nada, mas a companhia de luz é viciosa e cruel ao cortá-la quando não se os paga. A capacidade de caminhar é tida por merecida, mas o pequeno tropeço é um horror que nega todas as belezas do passeio.

Quem acha que merece tudo de bom espera que o universo “conspire a seu favor”, e por isto mesmo vive frustrado

Trata-se, em suma, da mais completa receita para a infelicidade. Como de hábito, ela tem por origem um erro crasso sobre si mesmo, gerado pelo orgulho humano. O orgulho nos faz superestimar os próprios méritos, e com isso nos negamos à merecida gratidão e criamos as tais expectativas infundadas. E esta combinação, claro, faz com que cada pequena e inevitável frustração ganhe corpo em nossa mente e nos faça superestimar os dissabores em relação exponencial à autoimportância que o orgulho nos faz crer termos.

O que se tem, quando se vê as coisas de maneira pouquinha coisa mais clara, é uma escolha entre a gratidão e a crença em um suposto merecimento. Quem acha que merece tudo de bom espera que o universo “conspire a seu favor”, e por isto mesmo vive frustrado. Acha que o cônjuge existe para fazê-lo feliz, mas não o contrário. Toma por ofensa o que é inócuo e por exceção o que é ubíquo. Já quem prefere a gratidão sempre é capaz de encontrar alguma beleza, ainda que no pior dos lugares. Algum amor, mesmo imerecido. E razões, tantas razões, muitas razões, para sorrir mais uma vez.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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