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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Aborrescência

A ativista ambiental Greta Thunberg durante o "Smile for Future Summit for climate". (Foto: Fabrice Coffrini/AFP)

A única coisa boa da tal adolescência é que ela passa. Na verdade, ela simplesmente não existe: inventou-se a adolescência no século passado, quando pela primeira vez passou a ser relativamente normal – ao menos nos países mais ricos – começar a trabalhar em tempo integral e a se casar mais tarde. Notemos que a parte, digamos, biológica da adolescência sempre existiu: do começo da puberdade até que os hormônios se acalmem, as emoções sempre estiveram à flor da pele, a capacidade de aprendizagem sempre deu um salto, o corpo sempre passou pelas mesmas desajeitadíssimas fases. O que é novidade é tratar esse período como um período à parte, situado a fórceps entre a infância e a idade adulta. Há algum (pouco) sentido nisso, como há algum sentido em falar, por exemplo, do climatério feminino. Este, contudo, não se tornou uma máquina de dar dinheiro a corporações gigantes, ao mesmo tempo fazendo sofrer as multidões de “afetados” pelo estranho fenômeno e suas famílias inteiras. Já a adolescência, de sua invenção para cá, tornou-se verdadeira chaga no mundo.

Neste texto fico com dois exemplos, convenientemente situados na gringa, onde ninguém me lê. Assim cada um dos meus poucos leitores pode procurar exemplos próprios. O primeiro deles é alguém que usa essa noção de adolescência como arma. Alguém que, em qualquer momento entre o surgimento do homo sapiens e o começo do século passado, seria considerada simplesmente uma mulher jovem, uma moça pronta para casar: Greta Tintin Eleonora Ernman Thunberg, de 16 anos de idade, a ativista que quer que os demais aborrescentes do mundo matem aulas às sextas-feiras para protestar contra as mudanças climáticas. Duas, e apenas duas, são as suas armas: a primeira é o seu diagnóstico como pertencente ao espectro do autismo, que a faz mais ou menos “café-com-leite”. Afinal, falar mal dela é falar mal de alguém que “tem um problema”. Deixo de lado a questão de se estar situado no espectro do autismo é ou não um problema. Eu mesmo assim fui diagnosticado molequinho ainda, e não me tirou pedaço algum. Diria eu que é um modo de ser, um modo de estar no mundo como qualquer outro. Mas o fato é que a moça usa e abusa de seu diagnóstico: sua autodefinição no Twitter é “16 year old climate activist with Asperger”, “ativista de dezesseis anos de idade com [síndrome de] Asperger [hoje mais comumente chamada ‘autismo de alto desempenho’].

Sua outra arma tem mais importância no contexto deste texto: suas trancinhas infantis. Dei-me ao trabalho de fazer uma busca de imagens dela, e a esmagadora maioria a apresenta com trancinhas. Das duas em que ela está sem elas, uma a apresenta com um igualmente infantil arquinho, e na outra a moça usa um vestidinho perfeito para uma primeira comunhão que poderia ter sido feita aos sete anos de idade. Sua aparente infantilidade – ou antes infantilismo – é uma arma potente. É, todavia, a ideia de adolescência como um período entre a infância (a que evidentemente o adolescente, plenamente capaz de se reproduzir do ponto de vista biológico, não mais pertence) e a idade adulta (a que sempre pertenceram as pessoas nessa faixa etária, até a invenção da adolescência) que faz com que ela possa, sem ser ridicularizada (e quem ridicularizaria a pobre mocinha autista, ó meu Deus?), aparecer com trancinhas que ficariam adequadas em alguém com metade de sua idade. E, claro, sem um pingo de maquiagem, ao contrário das meninas bem mais novas que ela que vi tristemente bêbadas na festa da cidade sexta passada.

Em outras palavras, ela se apresenta como “criança”. A flexibilidade do termo anglo-americano kid, que engloba basicamente qualquer um que ainda não tenha se casado nem já tenha desistido disso por estar velho demais, a ajuda nisso. Já li textos em que ela se dizia kid. Ora, um kid não tem responsabilidade, e nossa sociedade em decomposição nega responsabilidade pessoal aos adolescentes. Daí a facilidade com que ela pode pregar coisas que ninguém mais poderia. Se, por exemplo, a não-mais-adolescente Alexandria Ocásio-Cortéz, a semi-kid nova deputada americana, aparecesse com trancinhas mandando as crianças matar aula como protesto hebdomadário, ninguém a levaria a sério. Todos, entretanto, levam Greta a sério. Aliás, levam-na tão a sério que uma deputada francesa foi expulsa do Twitter por ter dito que Greta mereceria uns tapas no traseiro (apontando assim o ridículo duma moça que se apresenta como criança).

“Todos os problemas do mundo acabarão quando” é o típico começo de frase de ideologias simplificadoras

Quem é, em termos sociais, a Greta? Nenhuma novidade, diria eu. O nazismo e o comunismo subiram ao poder nos ombros de multidões de Gretas e Gretos, de jovens que abraçaram alguma espécie de simplificação da realidade e a confundiram com a própria realidade. O ambientalismo radical de Greta comodamente faz de um processo tão absurdamente complexo que ninguém pode entender, como é o clima, algo que depende “apenas” de nós. Fosse assim, que se fizesse chover no Nordeste, ou que ao menos se fizesse uma previsão de tempo decente pra daqui a uma semana. Nisso ele não é menos nem mais simplificador que o nacionalismo exacerbado e mesmo racista do nazifascismo, ou a luta de classes marxista. “Todos os problemas do mundo acabarão quando” é o típico começo de frase de ideologias simplificadoras, e não há tanta diferença assim se a panaceia universal será o despertar da Alemanha, o fim da propriedade particular, ou uma diminuição radical na produção de comida de planta, ops, gás carbônico. Este é um dos problemas desta fase da vida, aliás, e confesso que prefiro as soluções tradicionais para lidar com ele.

Até o começo do século passado, um rapaz, ao passar da puberdade, normalmente começaria a trabalhar como aprendiz de alguém. Em outras palavras, seria posto sob as ordens de um homem feito, capaz de indicar-lhe como e quando fazer o quê. Com o magnífico cérebro recém-capaz de abstração que os adolescentes têm, ele aprenderia depressa, e sua tendência a simplificar demais as coisas seria controlada pelo mestre ou oficial que se encarregasse dele. Já uma moça, no mais das vezes, iria simplesmente se casar. Minha bisavó casou-se aos treze, por exemplo, na virada do século retrasado para o passado. Desta forma, aquela emoção toda era mais ou menos ordenada, e seu marido – um rapaz alguns anos mais velho, que já passara pelo período de aprendizado – tinha por ela amor suficiente para aguentar as pontas. Tadinho.

Já hoje, abre-se um enorme par de parênteses quando passa a puberdade, e a pessoa passa a ser considerada “alguém que se comporta como criança quando não é tratada como adulto” (outra definição desta fase, tristemente verdadeira pelo fato de que é raríssimo que um “adolescente” seja hoje tratado como adulto, o que leva multidões deles a bancar os retardados). É alguém que não é percebido como dotado de capacidade de tomar decisões, o que, num ciclo vicioso, o impede de tomar decisões; logo, de aprender a tomá-las. Só as que lhe são permitidas são as que a sociedade como um todo festeja. É o caso da medonha decisão pela promiscuidade sexual (geralmente percebida como um bem, desde que seja entre adolescentes, para garantir que sejam ambos muito imaturos e se machuquem mais ainda), ou – como no caso da pobre Greta – pela atuação política em prol daquilo que lhe foi martelado desde pequenos na escola.

Ela diz que aprendeu que os seres humanos somos culpados pela mudança climática, que em breve tornará o mundo inabitável, e patati e patatá, mas se chocou ao perceber que as pessoas não se dedicam em tempo integral a reverter esse processo apavorante. O que parece não ter lhe passado pela cabeça (como não passa pela de um jovem comunista que talvez não haja luta de classes) é que as pessoas não passam as 24 horas do dia, sei lá, arrolhando escapamentos de carro, pela simples razão de que percebem que aquilo é história para boi dormir. Ela é jovem demais para se lembrar da [in]Verdade Inconveniente do Al Gore, por exemplo, e de todas as previsões escalafobéticas segundo as quais hoje em dia estaríamos vivendo num imenso deserto sem calotas polares. Ela é jovem demais para perceber – na sua busca incessante de simplificações extremas – que há uma diferença enorme entre poluição causada pelo homem e mudanças climáticas, coisa esta que sempre houve e sempre haverá. A relação entre elas não chega sequer a ser uma causalidade humana.

Dizem alguns que agora, na pós-modernidade (ou hipermodernidade: escolha, caro leitor), acabaram-se as grandes narrativas. Em língua de gente, isto significa que não haveria mais ideologias capazes de levantar multidões de aborrescentes, levando-os a tomar o poder na marra e colocá-lo nas mãos de algum espertalhão de meia-idade, como tanto ocorreu no século passado, levando a genocídios e guerras. Mas Greta não sabe disso; é jovem demais. O que ela está tentando fazer, por entre suas trancinhas de kid e sua carteirinha de autista, é justamente dar força, dar vida, a uma “grande narrativa” tão destrutiva quanto as ideologias do século 20: o ambientalismo radical.

Veja bem o pobre leitor que até este ponto tenha aventurado que eu mesmo sou certamente um ecochato, e que minha “pegada de carbono” dificilmente será maior que a sua. Moro na roça, uso energia solar, faço compostagem, planto sem defensivos agrícolas, não compro coisas que vêm em caixinhas no mercado, reciclo o que dá pra reciclar e mais um pouquinho, etc. Detesto poluição, e só entro em megalópoles arrastado. Mas daí a não entender que o modelo de civilização atual, por mais que seja uma porcaria, é baseado no uso intensivo de energia, e que ou bem essa energia vem de algum lugar ou se tem que mudar a sociedade toda, começando por esvaziar as cidades, a distância é grande demais. Greta parece incapaz de perceber isto, talvez meramente por ser uma pessoa jovem demais para ser colocada num palco ou pedestal. Não adianta que os adolescentes matem aula, ainda que eles gostem muito de fazê-lo. As mudanças necessárias para alcançar os objetivos ultra-ambientalistas dela seriam coisa muito mais próxima das barbaridades em escala industrial da Revolução Chinesa, só que em esfera planetária. Não dá. Não há como apoiar uma coisa dessas.

Nossa sociedade – entre outras coisas pela invenção absurda da adolescência – está condenada. Não dou mais 100 anos para que tenham desaparecido a maior parte das instituições formais que a definem, e até espero que a próxima seja menos agressiva para com o meio ambiente e use muito menos energia. Mas isso virá dum desmanche civilizacional, que já é uma coisa demasiadamente feia e dolorosa demais para que se queira fazê-lo na marra.

E daqui passamos para o outro exemplo do pior da tal adolescência. Li numa revista de música uma reportagem que me deixou pasmo, sobre uma compositora e cantora de pop fuleiro chamada Billie Eilish, de quem eu jamais havia ouvido falar. Parece que seu fã-clube é composto de meninas entrando na puberdade, pelo que li na reportagem. Ela, contudo, já passou por esse período faz tempo: é, como se dizia antigamente, maior e vacinada (bom, não sei se vacinada; hoje em dia, sacumé). A moça tem 18 anos de idade, e realizou o que costuma ser o sonho das aborrescentes de hoje: é belíssima, uma estrela do rock (tá bom, do pop), foi educada em casa e passou no supletivo do ensino médio aos 15 anos de idade, seus pais a amam e fazem-lhe as vontades, ganha tanto dinheiro que emprega os próprios pais como gerentes de excursão, ganhou um carrão potentíssimo da gravadora, manda na própria carreira ao ponto de gravar os discos em casa sozinha com o irmão, etc. Até vegetariana ela é. Só falta casar com um ator de Hollywood pra ter o kit completo.

Mas mesmo assim ela parece querer – não sei se com fitos comerciais, por problemas mentais reais ou o quê – epitomar o pior da aborrescência. Em todas as fotos da reportagem ela mais parece um zumbi que uma mulher saudável, colando o queixo no peito para aparecer mais o branco que o azul dos olhos. Veste-se como se comprasse as roupas num brechó exclusivamente masculino e depois as soltasse nas patas de macacos armados com tesouras não muito afiadas. Fala mais palavrões que um marinheiro gripado. Revira os olhos como se isso fosse um esporte olímpico. Fala, como se fosse normal, de comportamentos autodestrutivos sérios (como cortar-se talhos nos braços, essas barbaridades). Sua música mais famosa diz que ela é um “bad guy”, um “mau sujeito” (tentei ouvir, mas não consegui e voltei para música boa no meio), do tipo que “pode seduzir o seu pai”. E por aí vai.

O prazer da contestação pela contestação, do ser chato e irritante porque sim, o vagar pela vida num permanente estado de insatisfação rancorosa e ruidosa: é isso que a adolescência seria. E, com efeito, é exatamente esse o efeito que, deliberadamente ou não, Billie escolhe. E, dado o seu público, divulga. As menininhas púberes que a ouvem estão se preparando para ser aborrescentes insuportáveis. E o pior é que é isso que, de uma certa forma, a sociedade espera delas; está aí a própria Billie, sendo proposta como modelo, que não me deixa mentir.

A cada parágrafo da reportagem eu me entristecia mais. Por todos os afetados, claro, mas principalmente pela pobre moça, perdida de si mesma, fazendo-se de monstro quando na verdade é uma mulher pronta para assumir as responsabilidades da vida – quando me casei, no século passado, minha esposa tinha a mesma idade dela. E não era, de modo algum, uma criança; aliás, era mais madura que muitas mulheres bem mais velhas. Já Billie é, quer ser e ensina a ser esse monstro adolescente, que revira os olhos quando a própria mãe fala com ela (minha filha fez isso uma única vez, para testar as águas com a mãe. Não deu certo), que se machuca por querer, que sofre por nada – quando toda emoção já é tão forte nessa fase! –, que mesmo tendo tudo o que poderia querer, e mesmo tudo com que sonham suas amigas, faz-se de infeliz e de pobre sofredora. Essa figura da adolescência é uma praga jogada pela sociedade sobre as pessoas nessa fase da vida, como se elas já não tivessem problemas suficientes navegando suas marés hormonais e aprendendo como funciona o mundo. Ai delas!

Trata-se de uma fase difícil, mas não de uma fase monstruosa. Greta deveria, a esta altura do campeonato, estar namorando um escandinavinho lá da terra dela e preparando-se para torná-lo o homem mais feliz do mundo, que é o que todo recém-casado tem certeza de ser. Billie deveria se permitir ser a mulher e a artista que ela é, e dedicar-se a viver a sua arte, não uma fantasia de aborrescência que, se já não faz muito sentido nas demais pessoas nessa idade, menos ainda faria numa mulher extremamente bem-sucedida tão cedo numa profissão tão concorrida.

Deixo aqui, então, minha dica aos pais e àqueles que passaram pela puberdade há poucos anos: adolescência não existe. O que existe é o começo da idade adulta, a juventude, que deve ser a mais bela das idades. Para que ela o seja, só é necessário que a essas pessoas seja facultado assumir responsabilidades: responsabilidades de trabalho, responsabilidades domésticas, etc. “Adolescentes” são simplesmente adultos jovens, não monstros, e é assim que eles devem ser tratados. Se não se o faz, criam-se monstros.

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