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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Ucrânia

Guerra na Fronteira

(Foto: Bigstock)

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Poucas coisas demonstram tão cabalmente quanto a guerra a selvageria do homem caído. Toda guerra, afinal, surge dalguma grave injustiça; nos dias de hoje, então, a avançadíssima tecnologia de matar gente de que se dispõe garante que toda guerra seja palco de outras gravíssimas injustiças. Afinal, parafraseando Clausewitz, a guerra é o que acontece quando cessa a conversação. Esta nos faz humanos, aquela nos coloca abaixo das feras. Na brilhante metáfora de Shakespeare, “os cães de guerra são desatados”. Como cães ferozes, avançam as tropas de ambos os lados; a partir daquele momento poderia ser esquecida a injustiça original que tenha levado ao confronto de tropas, já que o reconhecimento duma injustiça demanda o reconhecimento da humanidade comum. Cães de guerra não reconhecem humanidade; sua razão serve à morte, seus atos à destruição.

É o que acaba de explodir na Ucrânia. “Ucrânia” significa, literalmente, “fronteira”. É uma daquelas áreas desgraçadas, situadas – por assim dizer – no meio do caminho, entre lá e cá. Na modernidade crê-se em estados nacionais, com fronteiras perfeitamente definidas a separar num passe de mágica línguas e culturas estanques; para cá fala-se francês e para lá alemão, ou para cá é-se católico e para lá protestante. Sequelas de Vestfália. A superstição de que essa situação seria de alguma forma natural ou normal faz com que muita gente se esqueça da inexistência de ligação real entre o que no auge da modernidade, coisa de 90 anos atrás, era dito “sangue” e “solo”. Em outras palavras, não existem “aborígenes” literais, que tenham estado numa terra “desde o início”. Até mesmo os australianos, que por estarem isolados naquele fim de mundo tiveram umas tantas dezenas de milhares de anos de paz, migraram para lá de outro lugar.

A Ucrânia, pobrezinha, situa-se na confluência de três grandes áreas diversas o bastante para incentivar traços culturais igualmente diversos em quem venha a habitá-las. Ao leste estão as vastas estepes eurasianas, um mar de grama sumamente navegável por tropas de cavaleiros. De lá provavelmente vieram os cavalarianos citas, povo nômade e guerreiro que habitou aquela região por séculos e cuja intrincada ourivesaria faz hoje a delícia dos arqueólogos. Igualmente por lá vieram as famigeradas invasões mongóis, que também dominaram por um bom tempo aquele rincão sofrido. Ao sul situa-se o Mar Negro, cuja única comunicação naval com o Mediterrâneo é um estreito facilmente dominável. Por ele subiram os gregos, que também dominaram por um bom tempo tudo aquilo até serem expulsos pelas invasões turcas, oriundas dos altiplanos da Ásia Central onde hoje se escondem paisecos com nome terminando em “stão”, e pelo estranho contubérnio de eslavos e nórdicos de que tratarei em breve. Ao norte, ainda, há eslavos, como os polacos e letões que no Medievo também andaram mandando por lá e – não esqueçamos – os russos, bielorrusos e quejandos. A oeste fica a Europa ocidental, com povos germânicos sempre interessados em descer as montanhas em busca de “espaço vital”, húngaros (descendentes sedentários dos violentíssimos hunos) e outras naçõezinhas menores. Do mesmo modo, a oeste e ao norte há católicos, ao sul muçulmanos e a leste os cismáticos orientais ditos ortodoxos. No meio de tudo isso, a Fronteira. A Ucrânia.

Para piorar ainda mais as coisas nos dias de hoje, não apenas foi ali que nasceu a nação russa, mas é também a partir de lá que foi elaborada a fantasticamente arrogante – para não dizer delirante – tese russa de que Moscou seria a “Terceira Roma”. Era em Kiev, hoje capital ucraniana, que reinava o príncipe Vladimir – o Vladimir original, homenageado pelos pais do atual chefão russo ao batizar o filho – ao tornar-se cristão. Foi também por aquelas bandas que se consolidou o domínio dos descendentes do lendário viking Rurik, convidado pelos eslavos da região para governá-los a partir de Novgorod. Aliás, o pedido foi motivado pelas constantes guerras entre tribos eslavas, como a que acaba de começar; eles buscavam a paz, mas não conseguiam alcançá-la sem ajuda. Com Rurik teriam vindo outros vikings, que movidos pelo desejo de também serem reis tomaram dos casares (um povo túrquico convertido ao judaísmo; fascinante história, aliás) a cidade de Kiev. O neto de Rurik, matando-os, consolidou no fim do Século IX o território do povo que governava, os ditos “rus” (donde a palavra “Rússia”), e passou a governar também em Kiev. Na virada do milênio seu descendente Vladimir fez um acordo interessante com a já decadente Bizâncio, trocando apoio militar pela mão duma irmã do imperador bizantino. A condição era apenas que ele fosse batizado antes das bodas, e Vladimir não titubeou em aceitá-la. Quando, todavia, o imperador enrolou demais para entregar a moça, Vladimir tomou pelas armas um importante porto bizantino na Crimeia, devolvendo-o apenas quando a bela princesinha já estava no papo.

O resultado é que para a nação russa, os “rus de Kiev” têm uma importância inigualável na construção do mito de origem nacional. Kiev é para os russos, por assim dizer, algo comparável à Távola Redonda do Rei Artur para os ingleses ou Jerusalém para os judeus. No momento atual, quando a Rússia está tentando recuperar-se da longa e sistemática devastação nacional e cultural efetuada pelos comunistas, é impossível não se virar para Kiev, para suas origens míticas. Esta semana ainda Vladimir Putin declarou: “enfatizo novamente que a Ucrânia para nós não é apenas um país vizinho. Ela é parte inalienável de nossa história, cultura, e ambiente espiritual. São nossos camaradas, nossos amados; não apenas amigos e companheiros de batalha, mas também parentes; pessoas unidas pelo sangue e por laços familiares”. Há uns poucos anos Putin plantou uma estátua de seu onomástico do tamanho dum prédio de sete andares diante do Kremlin, usando como pedra fundamental uma rocha levada da Crimeia que acabara de recuperar para a “Mãe Rússia”. O próprio Patriarcado cismático de Moscou tinha originalmente a Sé em Kiev; quando a capital russa foi mudada para Moscou ele passou a ser “de Kiev e Moscou”, acabando por abandonar o nome da cidade original.

A religião russo-bizantina – carregada de cesaropapismo, heresia que toma o regente secular por autoridade religiosa – é um componente cultural vital, talvez o maior elo de união da nação. Não é à toa que Stálin parou de perseguir abertamente a Igreja quando precisou motivar o patriotismo russo na guerra contra os invasores alemães. E não é à toa que seja tão prezada a fantasia russa de Moscou ser a “Terceira Roma” (a segunda teria sido Constantinopla). Perceba-se que não é no sentido de a capital russa ser equiparada a Roma e Constantinopla, o que já seria absurdo. Teria é havido uma sucessão, em que a centralidade religiosa de Roma – sede do Papado – teria passado magicamente para Constantinopla e de lá para Moscou. O próprio título dos imperadores russos, “tsar”, é uma corruptela de “césar”. Neste contexto fica fácil perceber o quanto há de ter sido magoada a alma russa quando, já no contexto do conflito atual, o patriarca cismático de Constantinopla – por cuja autoridade teria surgido o patriarcado de Kiev e depois de Moscou – declarou a independência da Igreja cismática ucraniana, tornando-a igual à Igreja russa a que era subordinada. Em outras palavras, o patriarcado de Moscou deixou de ter poder sobre Kiev, surgindo um novo patriarcado independente de Kiev. Ora, emocional e historicamente falando, em termos religiosos Moscou é Kiev, ainda mais que “Terceira Roma”; separar a Igreja-mãe da Igreja-filha, negando no processo a suserania da Igreja-filha sobre a Igreja-mãe, é algo que atenta contra o cerne da condição de “russeidade”. Que seja bastante provável que o patriarca bizantino o tenha feito por pressão americana (e talvez mesmo, apontam alguns, por simonia) cutuca ainda mais a ferida. Rompendo comunhão com Constantinopla, os russos só têm agora para se apegar a delirante fantasia de serem a Terceira Roma, sozinha num mundo cheio de maldades e provavelmente perto do Juízo Final.

A Ucrânia, pobrezinha, situa-se na confluência de três grandes áreas diversas o bastante para incentivar traços culturais igualmente diversos em quem venha a habitá-las

Já a sofrida Fronteira tem hoje três Igrejas com o mesmo rito, mas sem intercomunhão: a parcela que continua obedecendo a Moscou, a nova Igreja autocéfala em comunhão com Constantinopla, e a Igreja Católica Ucraniana em comunhão com Roma (a de verdade, a primeira e única). Mas, como em toda fronteira, há mais, muito mais: avançando pro norte e para o oeste, encontram-se muitos católicos; à beira do Mar Negro ainda há muçulmanos aos borbotões. As línguas faladas no território que no século passado foi designado “Ucrânia” são muitas, também variando de acordo com a região. Não há, todavia, nem lugares em que se fale a mesma língua em todos os lares nem lares falantes de alemão; estes foram expurgados ao fim da Segunda Guerra. Mas os há húngaros, letões, polacos, russos, tártaros, turcos, romenos, gregos, e muito mais. É, afinal, a Ucrânia. A Fronteira.

A loucura e a maldade moderna criaram nos últimos duzentos anos os tais estados nacionais. O processo de criação de tamanha barbaridade foi, claro, antes de tudo genocida. Centenas, talvez milhares de línguas foram proibidas e expurgadas, para que o dialeto da capital fosse falado por toda parte dentro das linhas imaginárias que se resolveu serem “fronteiras”. Criação moderna, trata-se de fronteiras de novo tipo, em que não há mistura alguma e onde muros e guardas armados separam vizinhos. No auge dessa loucura, a Europa foi varrida pelas convulsões guerreiras de “solo” e “sangue”, que visavam com novo vocabulário o que sempre se fizera sem tanta teoria: expandir o espaço dum povo às custas dos vizinhos. Finda a Segunda Guerra, “limpezas étnicas” fizeram milhões de vítimas ao concentrar na atual Alemanha todos os falantes de alemão da Europa Oriental, transferir para a Prússia conquistada pela União Soviética polacos residentes na parte país invadida no início da guerra e jamais devolvida, e por aí vai. Tais “limpezas” não pararam; foi por conta delas que a Otan tomou as dores dos muçulmanos bósnios, que os sérvios tentavam expulsar das terras do próprio mito de origem após a fragmentação da unidade artificial iugoslava, e são elas ainda que cindiram a Tchecoslováquia.

Temos sorte, muita sorte; nosso país é profundamente desinteressante do ponto de vista geopolítico, e vastas florestas o separam da maior parte dos vizinhos. Nossa relativamente mirrada e única fronteira real é o Sul, onde – de modo bastante tradicional – o português vai-se castelhanando até a tal linha imaginária, donde o castelhano se desaportuguesa lentamente. Mesmo assim tivemos guerras, e não foram tão poucas. Fomos poupados, todavia, do pior das construções de estados nacionais pela simples razão de termos sido colonizados por gente que não levava tanto a sério tal ideia e preferia unir-se matrimonialmente a belas indiazinhas que chacinar o diferente. Tal privilégio, todavia, acaba dificultando nossa percepção da realidade duma região como a Ucrânia.

O pior da situação atual, contudo, com os cães de guerra já em selvagem avanço, libertos de suas correntes, é que a Ucrânia parece estar perto de ser destruída por distração, no sentido mais puro da palavra. A “distração” é o que faz um mágico de salão que enfia no bolso uma moeda enquanto faz salamaleques com um lenço na outra mão: todos olham para o lenço, e cadê a moeda? A loucura ora em preparo visa apenas justificar o injustificável. Para as tantas vítimas da guerra que parece estar a irromper isso não há de fazer tanta diferença assim: quem morre está morto, e quem é mutilado estará aleijado independentemente das razões geopolíticas que levaram algum psicopata a mandar, do conforto de seu escritório, que voem bombas bem ali. Mais ainda: se o horror for para a frente é bastante provável que o efeito final seja o contrário do desejado pelos fautores americanos do conflito, e a Otan se desmanche como a bruma ao subir o sol.

Temos sorte, muita sorte; nosso país é profundamente desinteressante do ponto de vista geopolítico, e vastas florestas o separam da maior parte dos vizinhos

Afinal, passaram-se cem anos – cinco gerações – do nascimento dos soldados alemães da Segunda Guerra. Seis do nascimento dos oficiais, e quatro do estupro russo da Alemanha vencida. Mas a Alemanha continua ocupada, e a potência ocupante coloca-se diretamente contra o interesse direto alemão em assunto grave. Como todo o semisselvagem Norte europeu, a Alemanha é um país com invernos rigorosos, e as mudanças climáticas parecem estar a piorar a situação. O aquecimento das casas, em boa medida indispensável para evitar um morticínio de idosos, doentes e crianças a cada inverno, costumava ser feito com carvão. Ora, o carvão é demasiadamente poluente; foi na Alemanha que surgiu a horrenda “chuva ácida”, que queimava as plantas que deveria regar. A produção de eletricidade eólica e solar é inconstante demais para que se possa depender dela, e a nuclear só é “limpa” enquanto tudo dá muito certo. Não nos esqueçamos de Chernobil, bem ali ao lado… na Ucrânia.

Para dar um jeito nisso, russos e alemães fizeram um acordo e construíram um baita gasoduto submarino, por onde os russos podem vender aos alemães gás natural barato e pouco poluente. Isto, todavia, levou os teóricos da hegemonia americana a paroxismos de desespero. Afinal, o propósito da Otan é “manter os alemães pacíficos, os russos fora, e os demais submissos”; uma união estratégica entre a Alemanha e a Rússia não apenas tornaria a Otan desnecessária, privando os EUA de todas as suas bases europeias, como criaria um monstro geopolítico indomável. Quando a isto se junta a “fraternidade russo-chinesa” recentemente proclamada (“não mera parceria ou aliança: fraternidade”!) tem-se o todo da Eurásia unido, formando uma hiperpotência econômica, tecnológica e militar. É o maior pesadelo dos donos do poder americano.

Foi por isso que os EUA tentaram de todo modo impedir que fosse construído o gasoduto, e finda a construção tentam impedir que comece a funcionar. Nas derradeiras etapas, chegaram a ameaçar sabotá-lo por meios militares; felizmente vozes mais sensatas prevaleceram. Até hoje, por pressão americana, o gasoduto ainda não está em ação, tendo aparecido na última hora imensas dificuldades burocráticas com que os alemães tentam acalmar os ocupantes. O processo burocrático, inclusive, por conta do acirramento de ânimos na Ucrânia foi interrompido sem data para voltar. Sem data que não a próxima nevasca ou apagão geral, claro. Como, entretanto, continua prontinho nas gélidas profundezas do Báltico o canudão, faz-se necessária uma razão forte o suficiente para forçar os alemães a continuar sempre abdicando dos próprios interesses e comprando o caríssimo gás liquefeito americano, que chega por mar.

A única maneira de atingir tal objetivo é tornar a Rússia um pária internacional, mas por mais que tentem os americanos tudo parece funcionar ao contrário. As dificuldades criadas pelas “sanções” dos americanos – que até agora já de tudo fizeram aquém de alijar a Rússia do mercado em dólares – levaram os russos a encontrar meios próprios e formar alianças contrárias aos interesses americanos. Até mesmo a expulsão da Rússia do sistema SWIFT de transferência em dólares aparentemente não causaria grande mossa, na medida em que não apenas já foi iniciado um sistema semelhante operando em moeda chinesa, como o grosso do comércio internacional russo não teria grande dificuldade em ser feito nas moedas de cada parceiro. Impor um embargo total da Rússia como condição para fazer negócios em dólares, como se fez com o Irã, levaria à estratosfera o preço dos derivados de petróleo, pois cerca de um décimo de toda a produção mundial é russa. Forçar a Rússia à guerra é a derradeira e mais desesperada tática americana, e são imensas as chances de que façam também nisso um gol contra. Afinal, por mais que a mídia internacional repita o discurso americano, os povos europeus sabem que têm tudo a perder com uma guerra. Do mesmo modo, a posição russa é claríssima: só o que ela quer é ser deixada em paz. A proposta de acordo russa, afinal, nada pedia que não o respeito aos acordos internacionais teoricamente em vigor. Para piorar as coisas pros americanos, a resposta deles – recusando-se a comprometer-se com a própria palavra já dada nos tais acordos – vazou. Daí a fúria alemã, as tentativas francesas de apaziguamento de ânimos, e o recrudescimento ao ponto do ridículo da demonização da Rússia na imprensa americana (por extensão, via agências de notícias, na imprensa mundo afora).

A Ucrânia foi arrancada da esfera russa pelos americanos numa das tantas “revoluções coloridas” que seguiram a cartilha de Gene Sharp. O governo eleito pró-russo foi derrubado, entrando em seu lugar o fantoche indicado pelos EUA. Para jogar o povo contra a Rússia, apelou-se ao pior do nacionalismo fascista ucraniano, reverenciando as milícias de boçais que tentaram fazer uma “limpeza étnica” – eliminando polacos, letões, judeus, tártaros e quem mais fosse – na confusão genocida da Segunda Guerra. Não que a Rússia tenha sido uma filha carinhosa da Ucrânia; basta a palavra “holodomor” – o genocídio pela fome, causada pela apreensão soviética de toda comida produzida na Ucrânia – para explicar a facilidade com que ressurgiram os ultranacionalistas.

Porém, lembro; é a Fronteira. Uma fronteira antiga o bastante para guardar em literais camadas arqueológicas elementos de infinitos conflitos e enormes transferências de população; uma fronteira em que vivem lado a lado, e se casam, e têm filhos, pessoas oriundas de várias culturas ao redor; uma fronteira, em suma, em que a diversidade é inescapável. Quando o governo pró-americano, em seu ultranacionalismo antirrusso, proibiu o uso público da língua “do inimigo”, milhares de famílias viram-se privadas do próprio idioma. As partes mais a leste dentro da fronteira entre o atual Estado ucraniano e a Rússia, definida ainda na era soviética como mera divisa interna (como a que separa São Paulo do Paraná, por exemplo), evidentemente são mais russas que as demais. Dada a situação, elas acabaram por se levantar contra o governo de Kiev, formando duas republiquetas ao estilo soviético em que a maioria da população é de fala russa. Num acordo intermediado pela Europa Ocidental, o governo ucraniano aceitou dar-lhes autonomia administrativa; na prática, contudo, como seus padrinhos eles se revelaram “incapazes de acordo”, ignorando o compromisso e movendo guerra aberta – com bombardeios, sabotagens e o que mais pudessem fazer – contra os separatistas. São estas republiquetas cuja independência Putin acaba de reconhecer (a pedido do parlamento russo) e se comprometeu a proteger. Numa jogada que Trump classificou como “genial”, o autocrata não as absorveu na Rússia de que tanto elas quanto o resto da Ucrânia já fizeram parte nas tantas idas e vindas da História. Ele apenas fez com elas o que os Estados Unidos não ousam fazer com Formosa, e passou a equiparar seus governos com os de quaisquer outros países. A diferença, claro, é que é tudo gente de sua mesma nação russa, de sua mesma tribo, com o mesmo mito de origem, língua e cultura. Os ucranianos também, na verdade, como o próprio Putin declarou há poucos dias no discurso que citei acima. O povo das republiquetas, porém, é o pessoal mais chegado, da ponta de lá da Fronteira, mais perto da Rússia e mais distante das regiões em que a maioria é de fala ucraniana. Ou polaca. Ou húngara. Ou tártara…

O fato é que a guerra que parece prestes a explodir não tem razão alguma de ser que não a necessidade americana de demonizar a Rússia para arrancar de seus braços a Alemanha. São os estertores finais dum império em decadência terminal; uma aposta desesperada e delirante, que pode levar não apenas à perda dos protetorados europeus como à guerra nuclear. Afinal, enquanto os americanos acabam de sair com o rabo entre as pernas de seu longo conflito com os camponeses afegãos do Talibã, os russos saíram-se extremamente bem numa situação idêntica à atual, trocando-se a Ucrânia pela Geórgia. A tecnologia militar russa está muito mais avançada que a americana, e a capacidade de projeção de força dos EUA numa região tão distante é bem pequena. A aposta americana é numa guerrinha feia e limitada, que sirva para a demonização final da Rússia.

Faltou todavia, como disse Garrincha, combinar com os russos. Que por seu lado já avisaram que se forem atacados atacarão não apenas os lugares donde saíram os mísseis, mas também os donde partiram as ordens de ataque. O Ministério da Defesa russo declarou há pouco estar no controle de todos os aeródromos ucranianos, ter afundado todos os navios da marinha e destruído todos os centros de comando militares de terra. Os EUA parecem estar, mais uma vez, abandonando o pobre-coitado que usaram de bucha de canhão. É moralmente asqueroso, mas para o mundo pode acabar sendo boa notícia. Afinal, qualquer escalação do conflito poderia forçar os EUA a usar armas nucleares, mesmo por não haver muita opção: o Mar Negro é um lago russo, os turcos dificilmente deixariam os americanos lançar ataques de seu território, o grosso da Otan não quereria entrar no conflito (que acabaria, na melhor das hipóteses pros EUA, arrastando pro seu lado os outros anglos e os militarmente insignificantes países bálticos), o alcance dos mísseis hipersônicos russos é muito maior que o dos porta-aviões americanos, e por aí vai. Lembro ainda, claro, que a loucura tem gradações: há o louco manso, o louco brabo, o louco de atar, o louco de pedra, e, finalmente, no paroxismo da insensatez, o louco que invade a Rússia. Uma guerra terrestre é impensável, e destruiria toda a Europa.

Em suma: o que se inicia é outro morticínio inútil, causado pelo orgulho desmesurado que leva à loucura aqueles que, rezam as lendas, os deuses quereriam destruir. Só o que se pode fazer é rezar pela paz dum lugar tão sofrido, da Fronteira em que se engalfinham os poderosos sem nem reparar nos que são fracos, inocentes, e pacíficos. Que Deus ajude a todos.

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