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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Hierarquia e caos

Manifestantes queimam latas de lixo, patinetes e bicicletas durante protesto em Paris, 2 de junho (Foto: Mohammad GHANNAM / AFP)

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Por todo lado no Ocidente (no sentido atualmente usado em sociologia e geopolítica, em que nós brasileiros não nos encaixamos; é o antes dito “Primeiro Mundo”), neste momento, o caos mostra sua cabecinha suja e caspenta. Na Europa, multidões de muçulmanos quebram e saqueiam comércios, gritando que o deus deles é o maior. Nos EUA, uma revolta catalisada pela morte de um preto nas mãos (ou melhor, sob o joelho) de um policial já provocou vítimas fatais e farta destruição de propriedade, além do surgimento de uma “zona autônoma” em Seattle, epicentro da esquerda gringa. O próprio Twitter vem se comprazendo em censurar as postagens do presidente da república lá deles, o que – independentemente da triste figura do pafúncio com a cara pintada de cor-de-abóbora, que ora ocupa o trono de Washington e Lincoln – seria inimaginável há alguns poucos anos.

Em outras palavras, vemos por toda parte ataques sistemáticos contra a hierarquia social moderna, que ainda predomina, ao menos em teoria, por aquelas bandas. Na verdade, estranho é só que tenha demorado tanto para acontecer isto, por uma razão simples: a hierarquia moderna é, na verdade, uma ultrasimplificação tão artificial do sentido real de uma hierarquia que acaba por ser antes uma forma de caos que uma hierarquia real.

O mundo é hierárquico. Tudo que nos cerca, e até mesmo nós mesmos, tem uma estrutura hierárquica, com cada criatura hierarquicamente concebida encaixando-se, também hierarquicamente, numa ordem maior. A única diferença, a única criatura capaz de negar-se a se encaixar na ordem maior, é o homem.

Apenas nós temos a triste capacidade de escolher o erro, de nos negarmos a participar da ordem de todas as coisas. Qualquer animalzinho obedece aos instintos que já encontra prontos, e assim age como o bicho que é; um gato não consegue agir como um cachorro, por exemplo. Já o homem é, para usar uma palavra na moda, “fluido”.

Tampouco conseguiríamos viver como se cachorros fôssemos, mas temos infinitas possibilidades de nos colocarmos no mundo, com parte delas fora e parte dentro da estrutura hierárquica da realidade. Basta ver a diferença entre as edificações humanas, que vão do medonho (a Catedral do Rio de Janeiro, por exemplo, salta à memória) ao sublime (já que estamos nas catedrais, a de Chartres), e uma casa de joão-de-barro; sem que jamais tenha havido uma faculdade de arquitetura para joões-de-barro, todos eles sabem fazer exatamente a mesma casa (que, claro, está mais próxima do sublime que do grotesco).

O nosso corpo, assim como o de qualquer outro bicho, tem uma estrutura hierárquica nítida, com um tronco do qual saem membros tripartidos, com o terço médio dotado de dois ossos, o proximal de um só e o distal de um monte de ossinhos. A asa dum pássaro, a pata dum boi e o braço de um homem apresentam a mesma ordenação hierárquica. Do mesmo modo, os sistemas nervosos saem do cérebro pela medula e daí para todo o corpo. Numa árvore, o tronco situa-se sobre as raízes, e dele saem galhos hierarquicamente subordinados a ele, dotados por sua vez de galhos cada vez mais finos e finalmente folhas e flores. Uma floresta, do mesmo modo, terá o solo, com árvores grandes em cuja sombra nascem outras menores e arbustos, com animaizinhos de todo tipo alimentando-se do que grassa naquele ecossistema. É uma complexíssima ordem composta de hierarquias simultâneas.

Já na modernidade, o respeito às hierarquias naturais simplesmente desapareceu, sendo elas substituídas por uma hiper-simplificação tão radical que não teria como durar. Numa hierarquia natural a ordem faz sentido. Os filhos devem obedecer aos pais por uma infinidade de motivos, com cada um dos motivos fazendo com que a relação hierárquica entre pais e filhos encaixe-se na ordem de todas as coisas. São pertencimentos a diversas hierarquias complexas (tamanho, sabedoria, capacidade, antecedência temporal…) que geram a posição hierárquica dos pais e dos filhos.

Já na ordem moderna, o que temos é, por exemplo, a hierarquia militar; trata-se, acima de tudo, de uma hierarquia artificial. Por que razão o soldado obedece ao sargento? Em última instância, por o sargento ter três listrazinhas pespegadas à manga da roupa. E só. Do mesmo modo, um prefeito moderno permite que se vá à praia em tempos de pandemia, mas proíbe que se entre na água. Há alguma lógica nisto? Há alguma base que não seja perfeitamente arbitrária a sustentar a relação pseudo-hierárquica de dominação entre o soldado e o sargento ou o cidadão e o prefeito moderno? Não. É uma obediência “porque sim”, uma hierarquia baseada única e exclusivamente na capacidade maior de violência do poderoso.

As sociedade ocidentais erigiram-se sobre este tipo de pseudo-hierarquia, baseando-se assim, na prática, numa negação da ordem de todas as coisas. Não é possível encaixar uma hierarquia arbitrária numa hierarquia natural, porque esta é infinitamente complexa e aquela apenas o equivalente de um desenho de boneco de palito.

Bonecos de palito não são capazes de vida, e pseudo-hierarquias modernas não são capazes de ordem alguma que não a pseudo-ordem perfeitamente arbitrária que vem da ponta de um fuzil. Quem duvide pode perguntar aos congoleses “hierarquicamente inferiores” aos belgas de Leopoldo II, aos judeus “hierarquicamente inferiores” aos alemães nazistas, ou aos proprietários rurais “hierarquicamente inferiores” à massa raivosa soviética. Uma hierarquia hiper-simplificada só pode gerar barbárie, caos e desordem.

Na pseudo-ordem moderna, a floresta é substituída por uma vasta plantação de eucaliptos: todos do mesmo tamanho, sem arbusto algum ao derredor, sem insetos, sem pássaros, sem vida alguma que não a daqueles troncos exatamente iguais subindo rapidamente pelo esgotamento da água do solo e destinados à derrubada simultânea. É uma floresta, pela lei brasileira, mas não o é pelo bom senso. É na verdade um deserto, ou ao menos a fabricação de um.

É exatamente isso o que se fez com as pessoas na modernidade, em todo o Ocidente. A sociedade foi atomizada ao ponto de a união entre indivíduos só ocorrer com intermediação estatal; até mesmo o pátrio poder vê-se percebido como concessão legal, não como realidade prévia à ordenação jurídica. A constituição matrimonial de família – base da sociedade e lugar de geração e criação do futuro dela – deixa de ser reconhecida ao ver-se equiparada a qualquer relação sexuada transitória. Toda organização intermediária, toda ordem paraestatal ou mesmo anterior orgânica e ontologicamente ao Estado vê-se negada liminarmente. Cada pessoa tornou-se na modernidade um mero “indivíduo” (palavra latina para o grego “átomo”), portador do registro geral tal, em tese perfeitamente igual a todos os demais e com eles intercambiável ao infinito.

Ora, felizmente não há duas pessoas iguais no planeta, que dirá um país inteiro delas! Mesmo dois gêmeos univitelinos são pessoas diferentes, com talentos diversos. Mas esta hiper-simplificação da natureza humana era necessária para que se pudesse enfiar as pessoas numa pseudo-ordem também hiper-simplificada, em que as diferenças seriam apenas aquelas intermediadas pelo Estado (por exemplo, a que existe na modernidade entre um portador de um determinado diploma ou habilitação legal e quem não o possui, ou entre um presidiário e um cidadão livre). Eucaliptos, todos. Prontos para o abate nas guerras e genocídios que marcaram o curto período pelo qual vigorou a loucura coletiva moderna.

Isto, todavia, sempre foi uma mentira. O que sustentou as sociedades modernas não foi o seu sucesso, mas o seu fracasso em conseguir negar completamente a ordem real, os pertencimentos reais a hierarquias múltiplas e complexíssimas que, por sua vez, constroem realmente a sociedade, à sombra da fantasia moderna. A forma da modernidade em que isso se percebe com maior clareza é a mais hiper-simplificada, o comunismo de Estado. Nele, a única possibilidade de conseguir comida suficiente para não morrer de fome sempre foi no dito mercado negro, que não passa de uma hierarquia orgânica paralela à pseudo-hierarquia formal da sociedade. O mesmo, todavia, pode ser dito de todas as outras formas que tomou a modernidade, mesmo as mais teoricamente civilizadas, como as social-democracias norte-europeias.

Aos poucos, todavia, a modernidade conseguiu secar enorme parcela destas hierarquias vivas paralelas, em prol da manutenção e alargamento da área de ação das pseudo-hierarquias hiper-simplificadas. Na Europa, por exemplo, há já alguns anos, é comum que mesmo amigos mandem alguém que precisa de um ombro onde encostar a cabecinha e chorar ao setor de atendimento psicológico do Estado. Do mesmo modo, a desnutrição das hierarquias materiais orgânicas pela pseudo-organização social moderna alijou a religião cristã do rol de influências reconhecidas da sociedade europeia construída por ela.

Ao mesmo tempo, todavia, a sociedade moderna europeia, caindo no próprio conto-do-vigário de uma suposta intercambialidade de todo homem, importou antigos súditos coloniais em grande quantidade, permitindo-lhes agrupar-se em bairros quase exclusivos. O resultado era mais que previsível: as hierarquias complexas herdadas das sociedades pré-modernas de onde vieram transformaram-se numa viçosa trepadeira pendurada na treliça grosseira da pseudo-ordem moderna, com a parte mais, digamos, “trabalhosa” da vida (ganhar o pão de cada dia, tratar de doenças, etc.) suprida pelo Estado e o resto persistindo em modalidades pré-modernas.

Para piorar ainda mais a situação, o surgimento de uma forma alternativa de modernidade, o islamismo salafista, veio competir com o pouco da ordem social moderna estatocêntrica que ainda havia naquelas “zonas urbanas sensíveis”, para usar o termo oficial francês para guetos em que a polícia só entra em carros blindados, como em território inimigo, e em que o tráfico de drogas e o radicalismo salafista andam de mãos dadas.

Tendo assim solapado as bases não-examinadas (ou, mais ainda, formalmente negadas) que sustentavam as sociedades ocidentais, nada sobrou. O resultado, claro, é uma corrida aos despojos. Despojos do consumo, como nos EUA, em que a morte de um homem passou a legitimar, de forma totalmente irracional, a pilhagem de lojas de televisores ou de aparelhos celulares.

Despojos culturais, como na iconoclastia ora em curso por todo o Ocidente. Despojos organizacionais, como nos ataques às instituições mais representativas da parte do Estado moderno que menos agrada a seus súditos (delegacias de polícia e mesmo quartéis de bombeiros).

A natureza, contudo, abomina o vácuo. Inclusive o vácuo criado propositadamente na ilusão de se estar construindo uma nova ordem. Isto faz com que seja inexorável o surgimento de novas hierarquias orgânicas por todo o espaço ocidental, em detrimento tanto da pseudo-ordem moderna quanto, felizmente, da pseudo-ordem salafista. O salafismo pode funcionar apenas como parasita de uma sociedade maior, jamais como sua base organizacional, como o fracasso retumbante do Isis fartamente comprovou.

Mesmo as monarquias salafistas do Golfo só persistem por terem, ao mesmo tempo, dinheiro suficiente do petróleo para calar a boca dos críticos e uma massa de escravos ou quase-escravos oriundos de outros países, muitos dentre eles cristãos, que não se encaixam na narrativa salafista.

O problema do Ocidente, todavia, é que não há ordem que surja pronta do nada. Seria como querer que uma floresta magicamente substituísse uma plantação de eucaliptos incendiada. É necessário que cada micro-hierarquia se fortaleça, como um brotinho, e cresça, ajuntando-se às demais, por vezes vicejando por vezes fanando, até que uma ordem social maior inserida na ordem de todas as coisas seja construída. E isso não é trabalho para apenas uma ou duas gerações.

Para piorar mais ainda, a lavagem cerebral provocada pela loucura coletiva moderna ainda há de inspirar enorme quantidade de gente a lutar não pelo restabelecimento de uma sociedade organizada, sim pela imposição à força da pseudo-ordem moderna, como os tuítes de “LAW AND ORDER!” (“LEI [positiva] E [pseudo-]ORDEM [moderna]!”, assim mesmo, em caixa alta) do grandalhão cor-de-abóbora da Casa Branca indicam.

A aceleração do processo operada pelo estresse coletivo causado pela quarentena corônguica, ainda por cima, tem o potencial de turbinar todos esses subprocessos. O modelo chinês de totalitarismo tecnológico, por exemplo, tem enorme chance de avançar no Ocidente (aqui não, mesmo porque, felizmente, nossos governantes jamais teriam capacidade de gerenciar uma coisa dessas, mesmo que técnicos chineses instalassem tudo; como na piada, num dia falta balde, no outro faltam fezes…).

Isto, por sua vez, provocaria na Europa um aumento proporcional da presença salafista, com “conversões” em massa a essa seita, na medida em que o Estado seria mais claramente percebido como tirânico (leia-se antissalafista) e o comportamento salafista, que é o que faz-lhes as vezes de credo, daria aos adeptos uma identidade alternativa sem precisar deixar de lidar apenas com abstrações hiperreducionistas.

Assim, a meu ver, só o que precisamos perceber para que tenhamos uma visão mais clara do processo ora em curso lá em cima é que não se trata de um atentado do caos contra a LAW! AND! ORDER! trumpianas, sim de um agravamento do caos que vem sendo construído há quase quinhentos anos (com ênfase nos dois séculos passados imediatos) por sobre o cadáver de uma sociedade organicamente hierarquizada.

Aqui, felizmente, estamos na periferia, numa situação aliás extremamente semelhante à da Irlanda após a queda do Império Romano, e podemos, como fizeram os irlandeses de então, servir de sementeira para a recivilização da Europa e, quiçá, a civilização da América do Norte. Ninguém está mais geograficamente longe da China que nós, e quanto mais os cachorros grandes se engalfinharem em sua briga menos atenção prestarão eles ao simpático vira-latas caramelo que é nossa nação.

Temos assim a possibilidade de conduzir de maneira mais ou menos pacífica este processo; isto pode passar pelo aumento paulatino da irrelevância do Estado, coisa que vem sendo tremendamente avançada pelo hábito do bolsopresidente de enfiar os pés pelas mãos e usar o próprio pé de alvo de bolsotiros.

Também deve, todavia, passar pelo fortalecimento das instituições sociais intermediárias, do município para baixo, o que também já vem naturalmente acontecendo devido, justamente, à falência da fina casca de modernidade que tentou – sem jamais conseguir plenamente – sufocar o Brasil como sufocou o Ocidente. Estamos, senhores, no lugar certo. Daqui não saio, daqui ninguém me tira.

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