“Pestes, terra plana, governo autoritário, Estado aliado à Igreja, crença acima da ciência, jejum para resolver problemas. A idade média era muito louca, nera?”
Apareceram na minha frente numa rede social estas palavras, superpostas à pintura Um encontro de doutores na Universidade de Paris, do manuscrito da oficina de Étienne Colaud dito dos Chants royaux, “Cantos reais”, feito em 1530. A combinação dum tremendo provincianismo temporal, que tenta entender um tempo a partir de categorias de outro, com as mentiras e engodos infelizmente comuns, chamou a minha atenção. Vou, então, aproveitar este espaço para apontar a meu sofrido leitor, ponto por ponto, os delírios que compõem este triste quadro de mentiras que hoje em dia ainda é ligado indevidamente à Idade Média. Vai que ajuda.
O primeiro ponto é a própria imagem usada. 1530, bom amigo, não é mais Idade Média. É o começo da Era Moderna, em cujo ocaso estamos agora. O segundo ponto é o que é representado na imagem: um encontro de senhores professores doutores numa universidade. A universidade, diga-se de passagem, é uma instituição medieval, talvez a instituição medieval por excelência. Mesmo hoje, no nosso tempo de profunda decadência, ainda temos encontros de doutores, e ainda persiste a medievalíssima Universidade de Paris.
O que fazia uma universidade medieval? Seu objetivo era duplo então, e continua sendo duplo nas suas versões decadentes hodiernas: transmitir às novas gerações os conhecimentos das gerações anteriores, e aumentar este conhecimento. Nela o novo médico aprende o que foi descoberto pelos médicos anteriores, e nela pesquisa novos remédios, novos tratamentos, novas compreensões do corpo humano, da saúde e da doença. O engenheiro, do mesmo modo, aprende o que sabiam os engenheiros anteriores e tenta avançar neste conhecimento. E por aí vai. Ora, “conhecimento”, em latim, é dito “scientia”. É daí que vem o nosso vocábulo “ciência”. Como, então, poderia o pobre ignorante que fez o meme dizer que no Medievo estaria a “crença acima da ciência”?
Vem de duas coisas esta ilusão tão comum. A primeira delas é a contraposição artificial entre a crença e a ciência. Ora, todo conhecimento científico que já tenha sido obtido é transmitido como crença. Cremos que dois corpos se atraem na razão direta de suas massas e na inversa do quadrado da distância por alguém em quem confiamos ter-nos dito que é assim. Poucos, pouquíssimos, tiveram a curiosidade de refazer os experimentos newtonianos. E, mesmo que o tivessem feito, persistiria tal conhecimento (tal “ciência”) a ser uma crença. Afinal, ninguém poderia exaurir o assunto em busca duma exceção que demolisse a regra, dum “cisne negro” (assim dito porque a descoberta de cisnes negros na Austrália provou falsa a crença em que todos os cisnes são brancos). E se um dado corpo – dum determinado material, com um determinado peso ou formato – fosse atraído por outro corpo em outra razão? Ou, ao contrário, fosse repelido por um outro determinado corpo, ou simplesmente não fosse em absoluto atraído? Desabaria então a crença, transmitida de geração em geração desde Newton, da aplicabilidade universal da fórmula da gravitação. É um pouco o que ocorreu quando a descoberta de comportamentos estranhos de partículas subatômicas gerou a física quântica, não newtoniana.
Foi numa sociedade plenamente católica que surgiu o estudo sistemático da natureza criada a que hoje chamamos ciência
O método científico ainda não havia sido desenvolvido na Idade Média, mas não teria como sê-lo sem que – na mesma Idade Média – fosse desenvolvido o hábito do estudo metódico experimental da Criação. Este estudo, pela primeira vez ocorrido na história da humanidade, foi tornado possível pela visão católica de mundo. Para um muçulmano, por exemplo, Alá não está sujeito à lógica. Ele poderia criar uma pedra tão pesada que ele mesmo não conseguisse levantar, e ao mesmo tempo conseguiria levantar tal pedra! Assim, as regularidades observadas na natureza seriam apenas uma gentileza da parte de Alá, que poderia perfeitamente fazer todo oxigênio virar metano instantaneamente, porque sim. Estudar tais regularidades seria basicamente perda de tempo para um maometano. O mesmo, claro que com diferenças, poderia ser dito em relação a toda e qualquer outra religião natural.
Já um católico, convencido de que o Criador é coerente e, mais ainda, tornou-Se homem, assumindo nossa natureza simultaneamente material e espiritual sem abdicar de Sua divindade, vê na Criação os traços de seu Criador. Assim como qualquer um consegue reconhecer a diferença entre um quadro de Picasso e um de Van Gogh, qualquer um, na visão de mundo católica, consegue perceber as regularidades e irregularidades do mundo criado. E, mais ainda, consegue percebê-las como um caminho para Quem as fez, na medida em que estudar a obra de arte é de uma certa forma conhecer melhor o Artista. Foi assim, numa sociedade plenamente católica, que surgiu o estudo sistemático da natureza criada a que hoje chamamos ciência.
A explosão doutrinal que deu origem à Modernidade, todavia, com a invenção de uma tentativa de cristianismo paralelo por parte de Lutero, imediatamente seguido por inúmeros outros inventores de doutrinas, eliminou da sociedade cristã o que lhe permitia ter coerência interna. Enquanto o rei daqui e o duque dali tinham suas diferenças, partilhavam ambos da mesma religião, da mesma moral e do mesmo respeito à Tradição. Com a explosão de microcristianismos inventados na hora e ao gosto do freguês, em perpétua divisão e redivisão, no entanto, isto se perdeu. Mais ainda: após longas gerações de guerras religiosas, foi finalmente feita em 1648 uma gambiarra diplomática para resolver a situação. O princípio básico que a orientou foi de que a religião oficial de cada Estado seria a religião de seu governante. Em outras palavras, cada reizinho passou a ser quem define o certo e o errado. Tornou-se não apenas possível, mas provável, que o que era crime num Estado fosse obrigação no outro imediatamente ao lado, e vice-versa.
Isto, evidentemente, solapou a sociedade pela base. A religião, que era o cimento que unia todos os componentes da sociedade, passou a ser uma opção de cada príncipe. O resultado foi a substituição da religião pela mágica. Pela superstição. Pela mais pura invencionice. Passou ao primeiro plano todo tipo de picaretagem irracional – astrologia, adivinhação, conjuração de mortos, feitiços e simpatias – que a Igreja sempre buscara coibir em defesa da razão. Não, ainda não havia aquilo a que hoje chamamos “ciência”, na medida em que o relativamente pequeno corpus de conhecimento advindo do recém-criado método científico de experimentação não era páreo para as invencionices cada vez mais delirantes do charlatanismo que tentava tomar o lugar da religião. O próprio Isaac Newton, diga-se de passagem, dedicou a maior parte de seu tempo e trabalho à busca da Pedra Filosofal, que supostamente transmutaria chumbo em ouro, bem como do Elixir da Imortalidade. Picaretagem por cima de picaretagem, superstição por cima de superstição. E, no meio disso tudo, nas horas vagas, criou a Física que até hoje é estudada nas escolas.
É a busca de certezas num período em que só havia incerteza que acabou levando, muito aos poucos, à criação de um conjunto um pouco mais confiável de crenças oriundas de experimentações controladas. Ao que hoje chamamos “ciência”. E esta “ciência”, no século retrasado, achando-se vitoriosa sobre tudo e todos, acabou por converter-se numa espécie de religião. Seus discípulos raramente dedicam-se à ciência no senso estrito, de experimentações controladas. Ao contrário: quanto mais ignorantes são de como funciona a pesquisa científica, mais chance têm de serem cientificistas. O cientificismo é a devoção a uma “Ciência”, com “C” maiúsculo, completamente imaginária, que proporcionaria a seus adeptos certezas absolutas (coisa que o próprio método científico, aliás, abomina). Que teria “provado que Deus não existe”. Que um dia chegaria a saber tudo sobre tudo.
É esta “Ciência”, que pouco ou nada tem a ver com o método científico, esta falsa religião de crendices absurdas, que tenta projetar para planos que estão totalmente fora do escopo do mensurável, do experimentável e do repetível conhecimentos pequenos e locais. Se a ativação duma dada parte do cérebro faz a pessoa sentir que está tendo uma experiência mística, então toda experiência mística seria apenas uma ativação de tal parte. Se um moribundo não perde peso ao morrer, ter-se-ia provado que a alma não existe. E por aí vai. É uma crendice tacanha, uma busca de certezas onde não se as pode encontrar. E seria esta crendice rasa a “Ciência” que se contraporia à “crença” (religiosa, supõe-se) no besteirol que me inspirou a batucar estas mal-traçadas.
O cientificismo é a devoção a uma “Ciência”, com “C” maiúsculo, completamente imaginária, que proporcionaria a seus adeptos certezas absolutas (coisa que o próprio método científico, aliás, abomina)
Vemos, ainda, que o indouto autor do meme acha que haveria no Medievo “governo autoritário”; ora, um governo preso à Tradição pode ser tudo, menos autoritário. Na verdade, um tal governo – como era todo governo ocidental antes da Era Moderna – não tinha sequer o direito, que hoje há por toda parte, de criar novas leis contrárias aos costumes. Governo autoritário é uma coisa que só pôde começar a existir com a Era Moderna, com a gambiarra diplomática acima descrita, com o desligamento dos Estados da Tradição cultural e religiosa que os fez nascer. Das universidades, frutos da mesma Tradição. Dos próprios povos que governam.
Qualquer vereador de cidadezinha do interior tem muito, muitíssimo mais poder que um rei medieval. E é justamente por ser ele, ou ele e a maioria de seus pares, quem decide assim tão modernamente o que é certo e o que é errado, podendo proibir o que sempre se fez e obrigar ao que jamais fora feito, que ele é autoritário. Que ele pode sê-lo. Que se pode, da noite para o dia, criminalizar o reconhecimento biológico de sexo ou proibir aquela cervejinha no almoço. Ou ainda exigir registros e autorizações governamentais para coisas que sempre foram feitas, enquanto se obriga os cidadãos a fazer coisas que pouco tempo antes seriam absurdas.
A tal “Ciência” do cientificismo, tentando ainda fazer-se de religião de Estado, consegue uma que outra vitória. É o caso, por exemplo, da obrigatoriedade do uso de máscaras durante a pandemia. Mas também é o caso de outras obrigatoriedades bem piores, sempre em nome da tal “Ciência” ainda que contra a ciência verdadeira, como a proibição de alguns protocolos de tratamento enquanto se força os médicos a adotar outros, menos comprovados. Os casos são muitos.
O fato, contudo, é que a Igreja que se unia ao Estado no Medievo na verdade não se “unia”. Ela orientava, como hoje em tese faz a religião de Estado da “Ciência”. A diferença maior, todavia, é que a Igreja tinha como missão a preservação, não a mudança. Ela buscava a estabilidade social. Já hoje a religião dita “Ciência” foi tomada por revolucionários que a usam para desestabilizar tudo, e assim transformar a sociedade. Negar o reconhecimento da família. Reforçar ilusões (caso do homem que acha ser mulher e é castrado, tem seios falsos implantados e passa a envenenar-se de hormônios. Pelo SUS). Aumentar tremendamente o já absurdo totalitarismo (pois o mero autoritarismo já passou) estatal. Incentivar a promiscuidade e forçar o aborto como solução quando isso leva a gravidezes indesejadas. Os exemplos são legião.
Quanto às pestes, bom, sempre as houve e sempre as haverá. Taí a gripe espanhola, coisa de 100 anos atrás, em que os cadáveres eram deixados nas portas das casas para serem recolhidos em caminhões e enterrados em covas coletivas. A pandemia atual perto daquilo é a famosa “gripezinha” do bolsopresidente, mesmo matando como mata.
Já a tal Terra plana é outra viagem ainda mais interessante. Ninguém na Idade Média nem sequer cogitaria tal sandice. Na China, sim, tal era a crença oficial em tempos mais antigos; todavia, desconfio seriamente que isto era apenas um jeito de afirmar pseudogeograficamente a centralidade do Império do Meio. Afinal, basta ver um barco sumir no horizonte para perceber o quanto isto é errado. Os gregos já haviam, inclusive, medido a circunferência da Terra, conhecimento este que era retransmitido nas universidades medievais a todos os estudantes.
Todos precisamos acordar para o fato de que nossos pensamentos e palavras, atos e omissões deixam tremendamente a desejar, e aceitar como penitência os tantos sofrimentos deste mundo de lágrimas
Mas agora, sim, surgiu esta maluquice. Do nada, de repente. Por quê? Basicamente, trata-se de uma das muitas formas com que a população – enfurecida com o bestialógico que é pregado pelos cientificistas com o nome de “Ciência”, cansada de ser mandada e desmandada – está se levantando contra a religião de Estado. Não se trata, veja bem meu solitário leitor, de um levante contra a ciência de verdade, contra o método científico, o duplo cego e tudo mais. É mais uma revolta contra a tal “Ciência” com “C” maiúsculo, contra o embuste de tornar religião de Estado algo que jamais poderia sê-lo. Contra os que subitamente inventam condições e doenças – homofobia, transfobia, trans e cisgeneridade. Contra a súbita transformação da maconha de “erva do diabo” a panaceia universal. Contra o discurso ateu raso e cientificista que passa por verdade entre os bobos das classes médias urbanas. A Terra plana é um absurdo completo, e é exatamente por ser um absurdo completo, por ser algo que vai tão longe na negação dos dogmas da crença (nada científica, aliás) da religião de Estado cientificista, que as pessoas o abraçam. É uma pena que junto a esta besteira, que é mais uma crendice curiosa, venha o negacionismo de Covid e a politização das máscaras e demais medidas de precaução contra algo que, ainda que não seja uma nova gripe espanhola, tampouco é mera “gripezinha”.
A solução, aliás, bem pode ser o jejum. Seja o jejum intermitente atualmente na moda, seja o jejum mitigado dos veganos, seja o jejum tão melhor e tão mais medieval da penitência. Ninguém prestamos. Todos precisamos acordar para o fato de que nossos pensamentos e palavras, atos e omissões deixam tremendamente a desejar, e aceitar como penitência os tantos sofrimentos deste mundo de lágrimas. Merecemo-los todos, e perceber isto já é meio caminho andado. O jejum pode ser uma forma de penitência, como pode e deve sua forma mitigada, a abstinência de carne ou de algum outro bem ou conforto. Só não pode, como aliás nenhuma forma de penitência pode, ser motivo de orgulho. É o orgulho, é a soberba humana, que nos fizeram cair a tal ponto. Que fizeram com que tenhamos tamanhas escamas nos olhos que Miami seja tomada pelo paraíso e o Medievo pelo inferno.
E isto tudo, bom e pacato leitor que até aqui teve a pachorra de chegar, está perfeitamente desenhado no tal meme. Tristes tempos, estes nossos.
Moraes eleva confusão de papéis ao ápice em investigação sobre suposto golpe
Indiciamento de Bolsonaro é novo teste para a democracia
Países da Europa estão se preparando para lidar com eventual avanço de Putin sobre o continente
Em rota contra Musk, Lula amplia laços com a China e fecha acordo com concorrente da Starlink
Deixe sua opinião