À clássica pergunta “quem é você”, há inúmeros graus de profundidade na resposta. Afinal, “conhece-te a ti mesmo” já era uma boa dica quando quem a dava era o Oráculo de Delfos. A resposta completa, a mais profunda possível, seria na prática impossível de dar: não temos como nos conhecer por completo, por mais que tentemos (e devamos tentar!). Provavelmente a maior sacada da psicologia moderna foi perceber que o que somos, ou seja, quem age quando agimos, é majoritariamente algo de que não temos consciência. Nosso coração bate sem que possamos influenciar diretamente suas batidas; se paramos para prestar atenção em nossa respiração, levamos um bom tempo para que ela retorne ao controle do inconsciente; tomamos decisões importantes de modo inconsciente e as racionalizamos a posteriori quase todo o tempo; e por aí vai.
Nos últimos séculos, contudo, mesmo tendo sido percebida a preponderância da parte oculta do iceberg que é nossa mente, a questão da identidade, ou, melhor dizendo, da quididade pessoal, passou por várias fases. Quase todas elas, de um modo ou de outro, tentavam (inconscientemente?) impedir que fosse dada uma boa resposta à pergunta inicial deste texto.
Primeiro veio a noção cartesiana de homem, que nos reduzia (ou, antes, reduzia a consciência a que nos reduzia) a um fantasma habitando uma máquina complexa, que seria o corpo. Foi uma separação traumática brutalíssima entre corpo e alma (ou psique), que nos rendeu inúmeros problemas. Do espiritismo (e seu fantasminha que sucessivamente ocupa corpos diferentes, sendo cruelmente punido nuns pelo mal causado noutros, de que ele não teria qualquer consciência ou memória) à medicina moderna, que vê o paciente como nada mais que uma série de relatórios numéricos e órgãos (a “máquina” com defeito a consertar, em que por acaso e irrelevantemente habitaria um fantasma) e não como uma pessoa em sua imensa complexidade, passando pelo behaviorismo e seu engano primordial de tratar também a mente como uma máquina, tudo isso vem de Descartes.
O problema maior da visão cartesiana do homem é que ela não apenas é errada e iatrogênica, mas também é tautológica. Se o fantasminha fica dentro duma máquina, quiçá assistindo em grandes TVs o que vem dos olhos, ouvindo num fone o que vem dos ouvidos, e por aí vai, como se operaria essa epistemologia?
Será que dentro do fantasminha haveria outro fantasmúnculo, vendo em TVs quiçá pouquinha coisa menos enormes o que viria dos olhos do primeiro fantasma, e por aí vai, até o infinito? Faz tanto sentido quando a clássica piada da resposta do hindu, que crê que o mundo esteja assentado sobre as costas duma imensa tartaruga, quando interrogado sobre o que sustentaria por sua vez a tartaruga: seriam, ora bolas, outras tartarugas, em regressão infinita!
Da noção cartesiana, contudo, passou-se a outras, em geral percebendo o tal fantasminha como a coisa realmente importante. Ou, mais ainda, fazendo da psique-gasparzinho em questão, e assim das ideias que a povoassem, examinadas ou não, a base da identidade. Enquanto à pergunta “quem é Sócrates” respondia-se pré-modernamente que Sócrates é um homem, e que cada homem é um animal racional que recebeu o ato de ser, sendo assim um indivíduo, à pergunta “quem é Che Guevara”, ou “quem é John Galt” (para irritar ambos os campos, claro, coisa sumamente necessária) a resposta é outra. Che ou John Galt, antes de serem homens, são ideias que servem como símbolos de ideias. Sua animalidade e até sua racionalidade não têm como entrar na definição. Che é a Revolução, e John Galt o Espírito do Capitalismo. Cada comunista recebe o ato de ser não do Criador, mas de Che, e cada capitalista de John Galt: eles “são” na parca medida em que participam do ser-em-si dos símbolos do modo de organizar uma realidade percebida apenas sob o prisma da economia e das relações de poder dela derivadas.
Em outras palavras, o jovem comunista ou capitalista percebe-se como tal antes de perceber-se como gente, baseia sua identidade nisso e não vê nada mais que isso. Basta ver, por exemplo, como quando o monstro coletivista do comunismo voltou-se contra seus próprios instauradores, como sói acontecer em revoluções sangrentas, não poucos assumiram nos julgamentos de Moscou culpas que não tinham, por considerar que a própria vida enquanto pessoa nada valia perto do Partido, fonte de toda vida.
A negação do ser
Já na pós-modernidade, no momento atual em que vivemos, estas “grandes narrativas” dissiparam-se como a bruma da manhã. Não houve, entretanto, nem sombra de retorno à percepção básica de que cada um de nós é um ser humano que recebeu o ato de ser. Ao contrário, até: nega-se agora liminarmente a própria existência de uma natureza humana ou, na melhor das hipóteses, vê-se-a como tão infinitamente plasmável que é como se ela não existisse. O homem, assim, torna-se uma matéria primeira, informe, um protoplasma, ou, quiçá, um anjo, com natureza própria e diversa de todas as demais, inclusive da de seu irmão gêmeo, se o tiver.
O ser, destarte, não é mais a individuação duma natureza, mas uma criação própria, baseada no mais das vezes em aspectos negativos, isto é, em desejos de ter e ser o que não se tem ou é, e/ou em aspectos fenotípicos que seriam considerados perfeitamente irrelevantes em tempos pré-modernos, mas que passaram na modernidade a ter uma significação sociológica própria. Que, para piorar, é ainda por cima toda ela exportada em bloco mundo afora duma única e problemática sociedade, como se os fenômenos sociais duma sociedade fossem automaticamente existentes ou transplantáveis para todas as outras, trazendo “soluções” para problemas que não são os destas, e assim no mais das vezes causando o que se pretendia “solucionar”.
Daí a súbita invasão identitária não apenas da política, mas também da academia, da mídia e, pelos mecanismos raivosos de imposição de delírios identitários reforçados por estes três atores sociais, do tecido social mesmo. Categorias pseudo-ontológicas que ontem não existiam passam não apenas a existir, ex-nihilo, como se tornam obrigatórias, e ai de quem der um pio que seja contra a súbita introdução de toda uma visão de mundo baseada em identitarismos que – por serem a nova (pseudo)ontologia do indivíduo social – determinam, dão e tiram dignidade, poder, capacidade, “lugar de fala”, e tudo o mais.
E, curiosamente, uma das mais fortes emoções humanas, parelha em muitos aspectos à ira, é forçosamente atribuída a quem reclama. Se a neoidentidade pseudo-ontológica operante que emerge numa situação é a que surge do sobrepeso lipídico, como Minerva armada da testa de Júpiter, quem não a reconhece e não redesenha todo o espaço social ao redor dela (do tamanho das cadeiras do cinema ou do avião à lubricidade incitada ou não por corpos superadiposos nus) é “gordofóbico”. Como seria “transfóbico” o rapaz que não tem interesse sexual algum em outros rapazes que, vestindo um saiotinho mas mantendo-se firmemente do mesmo lado do dimorfismo sexual, passam magicamente mesmo assim à neoidentidade de “mulher trans”. Ora, onde Phobos (o medo) entrou nisso?
A identidade do medo
É extremamente interessante que seja justamente o medo, não a ira, a luxúria, a gula, ou o amor, que tenha surgido como categorização pseudo-ontológica da reação à avalanche de demandas de base neoidentitária. Afinal, São João já escrevia, há quase dois milênios, que “no amor fraterno não há ‘phobos’” (1Jo IV,18). No amor certamente não há, mas em todos os elementos que constituem a base dos mecanismos de formação identitária, em todas as pseudo-ontologias que se tenta impor em substituição ao que o senso comum mostra estar ao redor, só o que há é medo. Phobos, fobia. Medo de crescer, medo de sofrer, mesmo de ser mal tratado, de, em suma, não ser amado.
É este medo (Phobos), este pavor (Deimos, o irmão gêmeo de Phobos; ambos são filhos de Marte, a personificação da guerra de agressão, e de Minerva, a personificação da guerra de defesa), que é projetado do proponente da neoidentidade pseudo-ontológica na pessoa que, inadvertida ou deliberadamente, pronuncia-se (ou que se descobre ter-se pronunciado antes mesmo do surgimento da loucura identitária!, pois “o print é eterno”) em favor da reta normalidade, do senso comum e da ontologia real.
Ora, de onde vem o ato de ser que faz do animal racional um ser humano? Do Amor, que é Deus. Onde não há phobos (o que aliás ajuda a explicar o susto dos que são hoje acusados de serem “[insira aqui uma neoidentidade]-fóbicos”: neles, no mais das vezes, há todo tipo de emoção – amor, ira, ou nojo, na pior das hipóteses – que não o medo). Mas continua o bom apóstolo que o Senhor amava, no mesmo versículo, dizendo que o medo (phobos) vem da punição.
E é por isso que o medroso projeta nos demais o seu medo; ele deseja que eles sejam punidos no lugar dele, que eles paguem por não ter tido medo dele como ele tem dos demais. Assim, é acusado de ter medo quem não tem medo, por alguém que tem medo de quem não tem medo, justamente por quem tem medo de ter medo, muito medo, da ausência de medo em quem não tem medo de quem tem medo. Uma situação digna de um parágrafo de Paulo Freire ou de um discurso em fluente dilmês.
A pseudoidentidade pós-moderna é precaríssima, e é ela que gera esse medo. Por ser no mais das vezes baseada em algo que não se tem (pois só se pode desejar o que não se tem – por exemplo, o desejo sexual ou a fome só perduram enquanto não se atinge a saciedade) ou numa negação (de comer este ou aquele alimento ou vestir tal tipo de roupa, por exemplo), sua fragilidade e evidente transitoriedade fazem com que seu “portador” (pois é uma identidade que é antes escudo que cerne) esteja sempre na iminência de não saber quem ele mesmo é. Do medo do nada, de ser ele mesmo um nada, de nada valer. E é por isso que ele tenta passar o seu medo adiante, para aqueles que lhe causam medo.
Estando então todos nós no meio dessa multidão de neoidentidade cambiantes e cheias de pavor, raro é quem disso escapa. Basta ver, por exemplo, o sutil rebolado da mocinha magricela com os quadris apertados e quase negados por uma saia jeans de crente, ou os “apóstolos da fita métrica” pseudocatólicos, que só não chamam os demais de “modestofóbicos” por serem eles mesmos fobofóbicos, apavorados com a hipótese de um dia ver-se a usar o vocabulário do “inimigo”.
É como nos EUA, em que não se pode mais usar a “palavra ene”, nigger, nem mesmo declamando em sala de aula universitária o belo discurso em que Martin Luther King declara que sonha com o dia em que ninguém seja assim apodado. Um não pronuncia a “palavra ene”, o outro não enuncia palavra alguma que termine em “fobia” por medo de lacrar inadvertidamente quando o que quer é oprimir, e um terceiro não come queijo porque o leite pertenceria às vacas. Todos estão dominados do mesmo modo por Phobos e Deimos, que projetam no próximo para não perder sua neoidentidade de crente, de Moça Católica Modesta®, de bolsonarista, de vegano, o que for. Todas essas identidades baseiam-se em pseudo-ontologias precárias, precaríssimas, líquidas, gasosas mesmo.
O escudo contra o Nada
São elas, todavia, o escudo com que cada um, nestes nossos tempos interessantes, protege-se do nada, do vazio absoluto que é só o que existe quando a própria ontologia é líquida. Se se deixa de ser, de se determinar ontologicamente como lésbica negra feminista ou católico tradicionalista sedeprivacionista, jamais sedevacantista, ao nada se retorna. Não se consegue perceber, via de regra, dentro desta multidão de fantasmas esvoaçantes, em mutação constante, com cores cambiantes, nada que seja sólido; o que era já se desmanchou no ar.
Daí a necessidade das neoidentidades e, principalmente, daí o medo, o pavor que toma os que nelas suportam o próprio ser. Quem lhes dá o ato de ser e quem lhes mantém em existência, inconscientemente, não é para eles o Amor, sim o medo. Phobos, um deusinho de segunda categoria, que a ninguém mete medo. Daí suas constantes invocações, daí a constante projeção no próximo do próprio ato de ser um ente amedrontado, que só existe por participação no medo em si que é Phobos.
Daí também, e é nisso que está a dificuldade maior que acomete quem tenta lidar racionalmente com toda uma pseudo-ontologia falsa e ilógica, a persistência das dissonâncias cognitivas que levam a pregar como verdade absoluta que não haja verdade absoluta, a negar o princípio da não-contradição, e por aí vai.
O diálogo não é possível, por ser todo diálogo um instrumento de contato entre consciências, portanto perfeitamente inútil quando se está tentando atingir duma consciência um inconsciente que cala a própria consciência, nega – como Descartes no início de sua meditação – até mesmo que aquele membro (por exemplo, algum típico do dimorfismo sexual humano) seja seu. Mas sem ter para chamar de sua nem uma Grande Narrativa, daquelas que no Século XX chacinaram milhões, nem uma identidade pessoal e real, como instância individuada da natureza humana, dotada ao nascer de tal aparato reprodutivo, só o que resta é o nada. O Nada.
Vem daí, então, o pavor ao diálogo – que é logo visto como ataque contra a base da percepção ontológica da falsa realidade em que o neoidentitário vive, como crueldade, maldade “que só pode ser” causada por… fobia. O que resta de capacidade dialógica humana toma apenas a forma de frases feitas e prontas freneticamente enunciadas logo antes de tampar os ouvidos com as mãos enquanto se cantarola tralalá para não ouvir as palavras impuras do outro, que podem demolir toda a própria estrutura do que o neoidentitário vê como realidade.
A alternativa percebida sendo apenas entre a neoidentidade ou o Nada, a dissolução no vazio escuro que fica do lado de fora do cuidadoso mundo de fantasia construído a partir de categorias imaginárias que deformam antes que informem, não é de se estranhar que esteja já sendo pregado por aí que até mesmo negar-se a ter relações sexuais com qualquer construto de gênero (que para os neoidentitários não precisa necessariamente ser humano, posta a inexistência duma natureza humana, ainda que não se conheçam cachorros ou gatos transgênero) seria sintoma de fobia e de preconceito. É o medo, e a mentira que sobre ele se constrói. E só é isso que há: o medo e o Nada.
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