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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Ideologia de gênero

Um triste personagem, com aparência semicadavérica, que apesar de tudo isso ganha a vida dando conselhos médicos na imprensa, escreveu um artigo extremamente faccioso, publicado em grande jornal e reverberado nas redes sociais, em que afirma tratar da famosa ideologia de gênero. O artigo, como sói acontecer com quem tenta defender o indefensável, é uma tremenda nuvem de fumaça. Logo de início, afirma o esquelético senhor que “fic[a] confuso” – o que parece ser seu estado natural, dada a sua aparência de péssima saúde – porque “nunca vi[u] esse termo mencionado em artigos científicos nem nos livros de psicologia ou de qualquer ramo da biologia”. Ora, pitombas, “ideologia” não é campo de estudo nem da psicologia, nem da biologia. É como dizer que é confuso dizer que o fêmur é o osso da coxa por jamais ter encontrado o termo “fêmur” em escritos acadêmicos de sociologia e filosofia (justamente as áreas que tratam de ideologias).

Em seguida o pobrezinho (ao menos aparentemente, ainda que certamente não financeiramente) faz uma longa confusão, em que mistura elementos biológicos para negar a possibilidade de diferenciação clara entre homem e mulher, finalmente atribuindo tudo a um suposto ódio à “homossexualidade”. Para ajudar a desfazer o nó de Górgias mental do aparentemente tuberculoso senhor, resolvi escrever este artigo.

Em primeiro lugar, “ideologia”, como falei acima, não é um fenômeno biológico. Trata-se basicamente da doença mental padrão da Modernidade. Esta é a época iniciada com as Revoluções Francesa e Americana, já na plena decadência final, que podemos chamar de “hipermodernidade” – termo que prefiro – ou “pós-modernidade”. Ela está, portanto, plenamente no campo da Sociologia, por se tratar de fenômeno social, e da Filosofia, por se tratar de construção mental abstrata. A característica de todas as ideologias é negar ou dar menos valor à realidade dos fatos, preferindo a ela uma construção mental completamente abstrata, que se fosse aplicada à realidade resolveria em tese “problemas” sociais que ela mesma inventa. Para a ideologia capitalista, por exemplo, todo problema é causado pela intromissão indevida do Estado, e seria perfeitamente resolvido pela “mão invisível” do Mercado. Para a ideologia comunista, o problema único é a propriedade privada dos meios de produção, que causaria uma luta de classes, e bastaria fazê-la comunal para que se criasse um homem novo. E por aí vai: cada um com seu delírio intelectual, sua fantasia que pretende abarcar toda a realidade numa super-simplificação sem sentido real. E todos eles acham que aplicar sua fantasia intelectual, seu “jogo de RPG” mental, à realidade vai melhorá-la. Nenhum deles, todavia, consegue sequer entender o que vê do mundo real através dos óculos da ideologia.

As pessoas que têm desejos sexuais pelo mesmo sexo estão sendo usadas como bucha de canhão numa guerra que não é delas

A ideologia de gênero é uma ideologia tardia, já mais inserida na pós-modernidade que na modernidade propriamente dita. A diferença maior entre a pós-modernidade e a modernidade é que aquela nega as ditas “grandes narrativas” – como as que orientam as visões delirantes de mundo do comunismo e do capitalismo, vistas acima. Assim, na pós-modernidade a fantasia é predominantemente individual, não coletiva. Enquanto o comunista ou capitalista sonha com um mundo povoado única e exclusivamente por gente que pensa exatamente igual a ele, o pós-moderno não considera possível entender o que pensa o próximo, e portanto igualmente impossível haver plena concordância.

A ideologia de gênero tem um pé na Modernidade – que se revela na tendência fascista de impor a todos uma “regra geral”, como a condenação de uma suposta “homofobia”, que em geral é apenas a negação de assentimento à ideologia de gênero. Seu outro pé, porém, está firmemente plantado na pós-modernidade (na medida em que nela pode haver algo firme): as fantasias que ela propõe como substituto da realidade e “correção” desta são individuais. Para ela, cada indivíduo é quase uma espécie diferente (coisa expressa no caso de poucos loucos que se afirmam gatos ou cachorros), e certamente um “gênero” diferente.

A realidade, contudo, não concorda com isso. Homens e mulheres são diferentes, tremendamente diferentes, e jamais houve nem jamais haverá possibilidade de igualar os sexos. Há, sim, dois espectros distintos, em que não há nenhuma “área de intersecção”, como fantasia o macérrimo doutor. O espectro da masculinidade vai, digamos, de um homem exagerado em todos os atributos masculinos (do pouco cuidado com a aparência à força e agressividade), como, digamos, o personagem de Charles Bronson em Desejo de Matar, a um homem extremamente afeminado, quiçá sonhando em ser mulher, como o famoso “Roberta Close”. Já o espectro da feminilidade vai de uma mulher hiperfeminina, com todos os atributos femininos exagerados, como, por exemplo, Norma Jeane Mortenson em sua personagem vivida “Marilyn Monroe”, a uma mulher masculinizada, que dirige caminhões, fuma charutos, etc.

Mas o homem jamais deixa de ser homem, e a mulher jamais deixa de ser mulher. Por mais próxima seja uma mulher do espectro masculino, nele ela não se encaixa. E vice-versa. Os raríssimos casos de hermafroditas reais, pobres pessoas nascidas com genitálias ambíguas, são acidentes da natureza, como os que nascem com outras malformações. Ao crescer, o normal é que essas pessoas percebam claramente pertencer a um determinado sexo, apesar da ambiguidade genital.

Notem os meus dois ou três leitores que não estou tratando em absoluto de desejos sexuais: estes são circunstâncias psicológicas da pessoa, sendo possível a um homem situado quase na extremidade menos (ou mais) masculina do espectro ter desejos sexuais por homens, mulheres, crianças, cadáveres, zebras ou carneiros. Isso não depende de sua situação no espectro, mas de seu desenvolvimento psicológico, presença ou ausência do pai na infância, etc. O mesmo, claro, vale para mulheres. Assim, o argumento da “homofobia” como ataque a quem se alevanta contra a ideologia de gênero é delirante e perverso.

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A ideologia de gênero, contudo, emprega como bucha de canhão essas pessoas dotadas, por circunstâncias psicológicas várias e que fogem completamente ao seu controle, de desejos sexuais por pessoas do mesmo sexo. Afinal, a realidade é a descrita acima. E é a realidade que ideologia alguma aceita confrontar. A ideologia de gênero, para atacar a realidade, propõe que não haja dois sexos, como sempre foi perfeitamente percebido por todas as sociedades humanas, mas uma infinitude de “gêneros”. O termo é roubado da gramática, em que se tem o gênero masculino (o prato, o garfo), feminino (a faca, a cadeira) e neutro (em português normalmente idêntico ao masculino, mas presente e diferente em inglês, língua de origem desta ideologia). Substituindo “sexo” por “gênero” tem-se, em inglês, a possibilidade de inserção de ao menos um “gênero” a mais na humanidade tão sofrida. Do “terceiro gênero” passa-se, sem problemas, aos infinitos “gêneros”.

“Gêneros”, nesta visão ideológica e em franco contraste com a realidade binária dos sexos,  seriam, em última instância, individuais: cada pessoa teria o seu próprio “gênero”. Ele seria algo que se “sente” ou, em ultima instância, que se cria. Isto gera toda uma indústria delirante de autodefinições, em que se misturam desejos sexuais (ou mesmo sua ausência) com a percepção de si mesmo como ser sexuado (esta frequentemente em aberto contraste com a realidade dos fatos). Esta “sexagem” – ou antes “generagem” – individual é o que torna a ideologia de gênero uma ideologia pós-moderna, enquanto as tentativas de seus adeptos de criminalizar a discordância, típicas do fascismo e demais ideologias totalitárias do século passado, a colocam tardiamente na Modernidade.

O que faz da ideologia de gênero uma ideologia, todavia, é sua insistência na superioridade de uma construção intelectual (no caso, uma infinitude de “gêneros”, que deveria fascistamente substituir a tradicional percepção dos sexos do ser humano) à realidade dos fatos (a divisão da espécie humana em homem e mulher, uma divisão tão básica e essencial que não há sociedade em que ela não tenha sempre sido feita). A sua abertura a novas maneiras delirantes de autoidentificação faz, contudo, que ela seja ainda mais perigosa: se uma pessoa pode se autoidentificar como gato, o que impede que ela identifique outra pessoa como rato, assim como os nazistas identificaram judeus, eslavos e outras supostas “raças” como subumanos?

A relação entre a ideologia de gênero e as pessoas com atração sexual pelo mesmo sexo (mas não, curiosamente, com as pessoas que têm perversões como a atração por crianças ou por corpos mortos) é uma de uso: para negar a diferenciação entre homem e mulher, que é biológica, psicológica, social, etc., eles usam o desejo sexual como ponto de partida de uma negação que, no fim das contas, não o atinge. É por isso que temos autoidentificados “mulheres trans” (ou seja, homens que se julgam mulheres) “lésbicas” (ou seja, com desejo por mulheres). É por isso que volta e mais aparece a “notícia” de um “mulher trans” que fertilizou sua companheira “homem trans”. Ora, bolas, é um homem fertilizando uma mulher. Coisa mais normal nunca houve. O bizarro é a identificação enganosa e ideológica com o sexo oposto.

Aproveito o ensejo para esclarecer outra falácia presente no texto do emaciado senhor: quando se diz que uma relação homossexual é contrária à natureza, isso não tem absolutamente nada a ver com o fato de cachorros usarem o estupro homossexual como forma de mostrar sua posição dominante na matilha ou outras besteiras do gênero. Trata-se da noção aristotélica de “natureza”, em que o importante é perceber para quê algo foi feito, como fazer com que aquilo atinja sua plenitude de potencial. Ora, a plenitude de potencial da genitália consiste em conceber uma nova geração da espécie, não de perder a semente em meio a fezes ou excitar a região próxima à genitália sem jamais haver fertilização. Assim, o uso do termo “natureza” como significando “algo que acontece com bichos” é perfeitamente falacioso. Não somos bichos, felizmente: somos seres humanos, capazes de entender a função de cada órgão no nosso corpo.

A ideologia de gênero, todavia, é hoje uma realidade presente e bancada por fortunas incomensuráveis dedicadas pelos hipercapitalistas a sua divulgação e promulgação em lei(!), com o intuito de empregá-la na dissolução dos laços familiares e de amizade que fortalecem a sociedade contra sua dominação financeira. Como toda ideologia, ela é um perigo para a sociedade na medida em que nega a realidade dos fatos e tenta transformá-la a ferro e fogo, criminalizando quem lhe é contrário, para instalar no lugar dela uma construção abstrata mental que, no fim das contas, não faz sentido algum. As pessoas que têm desejos sexuais pelo mesmo sexo estão sendo usadas como bucha de canhão numa guerra que não é delas, e sofrem sérios riscos de acabarem sendo vitimadas por reações desordenadas, mas compreensíveis, contra uma ideologia tão delirante que magoa e nega o cerne da individualidade de cada um.

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