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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Ideologia e alteridade

Quem desrespeitar o uso obrigatório de máscaras em público ficará sujeito a multa.
(Foto: Hedeson Alves/Arquivo/Gazeta do Povo)

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Já escrevi aqui sobre as duas coisas que abordo abaixo, mas – creio eu, neste estranho período em que o tempo parece telescopar-se devido às restrições da pandemia – creio não ter abordado sua nefasta união. A primeira das coisas é a estúpida ideologização, politização, ou como se quiser chamar, do que deveria ser assunto de especialistas no tratamento da pandemia. A segunda é a famosa “cultura do cancelamento”, em que qualquer sinal de aceitação duma ideologia contraditória, ou mesmo de não aceitação plena da ideologia de alguém, leva ao ostracismo e a ataques seriíssimos, chegando em muitos casos até mesmo à perda de rendas ou de trabalho.

As duas, claro, andam juntas: tudo é percebido como ideológico, e o reconhecimento da humanidade do próximo só existe em função da adesão à ideologia de quem a reconhece (ou não). Ora, o que é uma ideologia, se não uma cegueira à maior parte da realidade? Uma recusa a perceber tudo o que não esteja dentro de um enquadramento hipersimplificado do sociopolítico, em que até mesmo coisas básicas e evidentes como a natureza humana se perdem ao não ter como passar pelos antolhos e lentes coloridas pelos quais o ideologizado percebe o seu entorno? Para quem se aprisionou na ideologia, o que a ela escapa é incompreensível; para quem não o fez, é a própria ideologia que parece enlouquecer as pessoas, despertando reações e leituras do real tão distantes dos inúmeros tons de cinza (e de vermelho, e de amarelo, e de azul...) de que é feita a realidade, que fica até difícil entender como se chegou lá.

Vejamos, então, como isto se opera neste momento, com efeitos realmente assustadores tanto no plano da sociedade em geral quanto das relações sociais individuais e familiares. O primeiro componente, o ator principal duma realidade distópica que a todos atinge, é a pandemia. É uma pandemia diferente, diga-se de passagem: um vírus de letalidade relativamente baixa, mas que faz enormes estragos até mesmo em infectados que depois sobrevivem, dotado duma taxa de transmissão muito acima do normal. Em outras palavras, exatamente o que buscaria qualquer um dos muitos herdeiros de Mengele que ainda fabricam armas biológicas para as grandes potências. Um vírus que simplesmente matasse quem atingisse não lotaria as UTIs, prejudicando assim o tratamento de todas as morbidades habituais. Um vírus com uma taxa de transmissão menor não nos forçaria todos a precauções tão daninhas à economia. E por aí vai. A isso se somam ainda as frequentíssimas mutações do vírus, que – ao contrário do normal – parecem ir na direção de uma letalidade maior. Em outras palavras, o vírus parece mutar de modo a aumentar a chance de eliminação do hospedeiro, o que deveria ser mau negócio para ele.

O que é uma ideologia, se não uma cegueira à maior parte da realidade?

Há quem diga que os chineses criaram o vírus em um laboratório situado na cidade onde começou a pandemia. Outros preferem acusar os americanos, apontando para a curiosa dispersão inicial da pandemia, que atacou logo de cara a China e o Irã, curiosamente dois dos maiores competidores internacionais de Washington. Creio que jamais saberemos nem sequer se é ou não é um vírus criado (ou “aprimorado” para o mal) em laboratório ou se é verdade a narrativa da degustação de morcegos. Sua origem, aliás, seria um dado político, ainda que no pior sentido do termo. Seria um ato de guerra, sendo esta famosamente “a continuação por outros meios da política”, segundo Clausewitz. Rapidamente, todavia, a questão da origem da pandemia mostrou-se irrelevante. O vírus espalhou-se, as mutações surgem a cada dia, e hoje é simplesmente impossível saber quando a situação se estabilizará duma forma ou de outra.

E é aí, claro, que entra ainda mais política, ainda mais ideologia, desta feita sob a égide do Forum Econômico Mundial, junto com Bill Gates e outros eugenistas, inclusive os que acabam de recuperar o governo americano que haviam perdido com a surpreendente eleição do bufão cor-de-abóbora. Eles pregam o uso da pandemia para “reconstruir de modo melhor” a ordem social mundial, num “Grande Reset” da sociedade. Trata-se apenas do sonho moderno, de algo cuja janela de oportunidade – se chegou a existir – acabou no início dos anos 1960. Ideólogos, porém, têm enorme dificuldade em entender o que está fora de seus filtros, e continuam acreditando na possibilidade de um governo global, mesmo num momento em que até mesmo os governos locais estão degringolando e devolvendo poder às instâncias mais baixas.

E é ai que entra a patética politização da pandemia iniciada nos EUA e, como sempre, continuada aqui no quintal dos gringos. Entre nossos irmãos do Norte, a esquerda procura forçar mais e mais o fechamento da sociedade (logo, a falência dos pequenos negócios e a dependência de benesses governamentais por parte de enorme parcela da população), como modo de ajudar no suposto Grande Reset. Já a direita, especialmente a histriônica direita trumpiana, pode chegar mesmo ao delírio de negar a existência do vírus e a inventar que o uso duma máscara em público prejudicaria as funções cerebrais do mascarado. Aqui a mesma palhaçada importada é encenada por bolsonaristas e antibolsonaristas, com estes apregoando o terror e aqueles fingindo que está tudo como dantes no quartel de Abrantes. Em suma: a ideologia torna a todos cegos, e a todos impede o uso do mais básico bom senso.

De nada adianta, claro, apelar ao sucedâneo de deus preferido da Modernidade, na medida em que a ciência (ops, perdão: “Ciência”, com majestosa maiúscula magisterial) não tem como orientar atribuições de valor. Um epidemiologista pode nos dizer como ocorre a transmissão, mas não pode orientar um pai de família que perdeu o emprego e precisa achar o ponto ótimo (ou o menos péssimo) no árduo equilíbrio entre o risco da transmissão e a necessidade de botar comida na mesa. Do mesmo modo, por melhores que sejam as assessorias médica e econômica dum governante, a decisão final de prioridades governamentais será sempre uma decisão sumamente política. E é aí que a porca torce sua longa cauda, na medida em que copiamos também aqui o dualismo radical da política americana. Encontramos, assim, dum lado o “kit bolsonarista”, que parece compor-se de alguma forma sempre mutante de cuidados médicos preventivos e/ou empregados pouco após a infecção pelo vírus, muitas vezes acompanhada de ativismo antimáscara – como se perdigotos devessem ser recebidos com um sorriso aberto em tempos de pandemia – e desconfiança de todas ou muitas das vacinas desenvolvidas a toque de caixa. Do lado oposto dum ringue que não deveria existir, a negação de qualquer valor às tais medicações propostas pelos bolsonaristas, a confiança quase absoluta em todas as diversíssimas vacinas, e a demanda dum lockdown a priori sem fim previsto.

Ora, bolas, é exatamente aí que deveria entrar o cadáver insepulto da deusa Ciência: qual o valor deste ou aquele remédio ou protocolo? E desta ou daquela vacina? E o sistema imunológico deste animal famosamente social que é o homem, que demanda exposição ao sol (cujos raios, diga-se de passagem, têm forte ação antisséptica) e alguma interação social? Se os remédios “bolsonaristas” (expressão que já é em si um absurdo, porque remédios não têm partido) jamais foram objeto de estudos acerca de seu uso no combate a este vírus altamente mutante, o mesmo poderia ser dito das muitas vacinas, cada uma produzida por um método e testada duma maneira. Tudo é novidade, porque – ora, bolas! – este vírus é novidade. O que serve para isto ou aquilo não vai necessariamente servir para outra coisa, e – tanto no caso das vacinas quanto no dos tratamentos precoces – toda e qualquer solução proposta está longe tanto de ser solução quanto, mais ainda, de ser algo conhecido, inclusive nos efeitos de longo prazo. Se a vacina pode nos transformar em jacarés, os tais remédios do tratamento inicial podem nos transformar em crocodilos quando combinados ao vírus. Nada é garantido em medicina, menos ainda no combate a algo novo.

Aqui na cidade ao lado, um médico foi eleito prefeito. Uma de suas primeiras medidas quando se iniciou esta nova fase foi mandar o serviço médico municipal implantar os tais tratamentos precoces. Está certo? Evidentemente, não faço a menor ideia. Não tenho direito algum de dar pitaco ou concordar ou não com sua decisão, na medida em que não sou médico, não entendo chongas do assunto, e portanto não tenho como dar uma opinião que valha mais que o resultado dum “cara ou coroa”. Mas mesmo assim o Ministério Público, dominado pela esquerda e composto de bacharéis em Direito que dificilmente saberiam ministrar uma injeção intramuscular, disse que vai “investigar” o doutor-alcaide. Em outras palavras, vão investigar o prefeito por bolsonarismo, na medida em que os tais tratamentos precoces viraram notas do bolsonarismo. Enquanto isso, todavia, as pessoas morrem aos magotes, as UTIs não têm vagas, e a vacinação está longe de alcançar o porcentual da população necessário para que tenha efeito social.

Mas e se, numa estranha realidade aideológica hoje praticamente esquecida, o ideal fosse fazer uso das substâncias propostas por ambos os lados, num “coquetel” medicamentoso suprapartidário? Até mesmo propor isto parece hoje impensável, por razões puramente políticas, apesar de poder ser perfeitamente uma hipótese que mereça testes do ponto de vista científico. Do mesmo modo, qual seria a dificuldade em conciliar tratamento precoce com medidas básicas de distanciamento social literal (evitar lugares fechados, conversar um pouco mais longe um do outro, com máscaras para evitar uma batalha de perdigotos, por exemplo)? A que ponto chegamos quando algo tão evidente quanto a necessidade de impedir que mastiguemos o perdigoto alheio num momento de pandemia se torna ocasião duma insana manifestação política! Já vi direitistas – aqui e lá na Metrópole neocolonial – tratando a recusa(!) do uso da máscara em lugares fechados(!!) como ato heroico!!! Já vi até mesmo gente realmente acreditando que usar uma máscara por meia hora causaria danos cerebrais permanentes. Tremo só em pensar que horror seria se o QI desse pessoal descesse até atingir o de um neurocirurgião, que dia após dia, semana após semana, mês após mês e ano após ano usa máscara no teatro de operações.

E aí a coisa fica ainda pior, quando o “apoio” (expressão que simplesmente não faz sentido quando se está falando de procedimentos médicos) real ou aparente a uma das narrativas ideológicas, a um dos “kits” de decisões médico-políticas, serve para “cancelar” ou chancelar alguém? A célebre escritora feminista Naomi Klein, do time da direita antimáscara, está tendo seus escritos feministas de décadas atrás – que evidentemente não tocam no assunto – cancelados devido a suas obtusas posições presentes. Até mesmo o meu meio virtual vem sendo atingido pela palermice presente: compartilhei outro dia numa rede social um texto que me pareceu do mais elementar bom senso. Nele o autor aponta que ninguém está “a salvo” da Covid, na medida em que mesmo gente jovem e forte tem falecido, e conclui com a igualmente óbvia lembrança de que é preciso fortalecer o sistema imunológico. Isto, sabemos desde a mais remota antiguidade, é feito tomando algum sol, tendo algum convívio social e evitando o estresse e a paranoia desnecessários.

Para meu espanto, quando o texto foi lido pelos prismas ideológicos “ganhou” sentidos que eu jamais cogitaria atribuir-lhe. E olha que isso de entender coisa escrita é basicamente a minha profissão. Para a esquerda, o apelo ao fortalecimento imunológico significaria, dalguma maneira, o abandono total do distanciamento social, a negação do uso de máscara etc. Para a direita, a simples lembrança de haver realmente uma pandemia matando adoidado por aí seria fake news globalista. E as vacinas, claro, seriam armas letais criadas para nos matar a todos, ou até mesmo, delirantemente, o apogeu duma farsa concebida para implantar em nossos cérebros já danificados pelas nefandas máscaras o sistema operacional Windows Vista, a mando de Bill Gates.

Um epidemiologista pode nos dizer como ocorre a transmissão, mas não pode orientar um pai de família que perdeu o emprego e precisa achar equilíbrio entre o risco da transmissão e a necessidade de botar comida na mesa

E assim, nessa loucura, perde-se tudo o que é dito. Se Fulano sugere cheirar rosas para aliviar o estresse, Beltrano o cancela por estar “evidentemente” manifestando-se contra o uso de máscaras, sendo ipso facto genocida. Quando Sicrano manifesta alegria por ter conseguido vacinar seus pais idosos, sua adesão aos planos nefastos de Bill Gates e o sacrifício de seus pais à ideologia globalizante “justificarão” seu cancelamento imediato. E por aí vai. O que deveria ser assunto médico (logo na alçada da deusinha lá da Modernidade) torna-se algo completamente político, mas o que deveria ser político (sopesar os dados e tentar discernir o mal menor, preferencialmente no âmbito estritamente local: familiar primeiro, municipal depois etc., pois nossos estados são vastos demais para que uma medida única sirva para todos igualmente bem) passa a ser vendido como “adesão à Ciência”.

E as pessoas, valha-me Deus, nossos próprios parentes e amigos, passam a ser reduzidos a avatares dalgum discurso ideológico que podem ter ou não engolido. Ora, ideologia alguma deveria ter o poder de colocar pai contra filho ou irmão contra irmão. Mormente quando se pensa nos tantos milhões de cadáveres de inocentes que as ideologias produziram no seu auge, no século passado. Elas agora, todavia, não têm mais o poder que antes tinham; não é mais possível criar e gerenciar uma massa crítica de gente lobotomizada ideologicamente para outra Guerra Civil Espanhola, Revolução Russa ou Terceiro Reich. Mas a atomização do ideológico, somada ao reforço desse tipo de imbecilidade produzido pelas redes sociais e seus algoritmos de reforço de preconceitos, consegue ainda separar o que o amor deveria unir.

No meu caso, extremamente atípico, tanto o estudo sistemático da História e dos fenômenos sociais que tanto mal fizeram no século passado quanto a busca incessante de modos de enganar os algoritmos e reduzir ao máximo minha insularidade nas redes sociais ainda me permitem algum espanto ao constatar as leituras ideológicas dum texto do bom senso mais elementar, como o que comentei acima. Quando penso, todavia, que a maior parte das pessoas que comentam nas minhas postagens, involuntariamente desnudando as mesquinharias políticas a que reduzem uma crise social e médica de enormes dimensões, só têm acesso regular a um dos vários pontos de vista presentes nas minhas postagens, eu me arrepio de pavor.

Ideologia alguma deveria ter o poder de colocar pai contra filho ou irmão contra irmão. Mormente quando se pensa nos tantos milhões de cadáveres de inocentes que as ideologias produziram no seu auge, no século passado

É comum que gente de ambos os lados comente como há “loucos” no meu perfil, sem perceber que o que passa por obviedade em sua bolha é loucura na bolha do próximo, e vice-versa. Sem perceber que a realidade é muito maior que a de sua bolha, ou mesmo que haja outras bolhas, com outros recortes ideológicos, em que os seus heróis são vilões e seus vilões, heróis. São bolhas isoladas, mas unidas virtualmente, em que os habitantes do mesmo prédio passam muito mais tempo que nos breves encontros no elevador. Em que cada vítima duma ideologia pressupõe ser sua tacanha visão o óbvio ululante, e tem sérias dificuldades em acreditar que possa haver quem duvide de suas certezas, sem desconfiar que é exatamente este o caso do vizinho gentil para quem sorri na portaria. Bolhas em que as imbecilidades proferidas por um político de estimação valem tanto que, na escolha entre elas e o próprio pai, mãe ou irmão, serão evidentemente elas as escolhidas.

Vive-se hoje restrito a minúsculas bolhas em que, em suma, até mesmo a humanidade do próximo – seja ele um judeu ferido à beira da estrada que sobe da Samaria à Judeia, o condenado pregado à cruz ao lado, ou um parente ou amigo – decorre do recorte ideológico em que se o coloque. Em nossos tristes tempos, ignora-se que o Verbo se fez Carne, e mesmo a carne pode ser negada em função do adjetivo que se lhe aplique.

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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