Já foi dada a largada da corrida eleitoral municipal. Ao contrário do que pensa muita gente boa, porém desinformada, são estas as mais importantes eleições. Mesmo quando – como ocorre no Brasil – o princípio da subsidiariedade é ignorado por completo e se tente fazer com que tudo venha pronto e empacotado de Brasília em modelo e tamanho único, como se todo brasileiro fosse igual, como se não fôssemos vasto império de nações e realidades sociais tão díspares. Afinal, um prefeito ou uma Câmara de Vereadores consegue ajudar ou atrapalhar infinitamente mais que um governador ou presidente. São eles que cuidam das coisas com que temos contato direto: as ruas, as calçadas, as feiras, o comércio... Já os governantes e legisladores dos planos mais altos lidam, em geral, muito mais com regras burocráticas que, na vida quotidiana, acabam por afetar relativamente pouco a vida de cada cidadão.
Pela Doutrina Social da Igreja, este estado natural das coisas, em que é mais importante o que está mais próximo, deve ser incentivado. A prefeitura deve mandar muito mais que o governo do estado, passando a este a responsabilidade apenas daquilo que realmente não dá para fazer apenas no âmbito municipal. Do mesmo modo, o poder do governo estadual – limitado ao que se lhe tenha sido repassado pelas prefeituras – deve ser maior que o do federal, a que só se deve recorrer quando as instâncias inferiores, todas, não tiverem como resolver o problema.
O poder de direito, afinal, vem de cada família para o bairro, e isso apenas quando a família não tem como resolver as questões que a atingem; do bairro passa-se à prefeitura o que não se consegue resolver, e o resto é o que escrevi logo acima, cada vez mais longe da célula social básica e da própria realidade vivida por cada um de nós. O que sobra após tantos filtros é o que cabe, de direito, ao governo central. Ou seja: nada mais alheio à nossa Doutrina Social e à nossa cultura que a hipercentralização moderna.
Um padre candidato seria um péssimo padre, e um leigo que tente se clericalizar está igualmente fugindo ao seu papel de leigo. Nosso front, enquanto leigos que somos, é o do mundo
É por isto que esta eleição é a mais importante. Até mesmo os temas mais candentes de nossos difíceis tempos, como o direito à vida, por mais que possam ser tratados (tanto ameaçados quanto protegidos, na prática) no âmbito federal, por exemplo, no mais das vezes a ação real ocorre no município. Além disso, claro, nem toda política é eletiva; a liberação do aborto em muitas formas, no Brasil, foi obra do Ministério da Saúde (que, tendo José Serra como ministro, mandou oferecer o infanticídio no SUS) ou mesmo do Supremo Tribunal Federal. Os hospitais, todavia, muitas vezes são municipais, e é assim, no âmbito do município, que se pode tentar impedir que neles ocorra assassinato pseudolegal de inocentes.
Este dever da ação cívica, como ensina o Concílio Vaticano II, é da alçada dos leigos. Sabiamente, a Igreja pune com seriedade e rigor, até mesmo com suspensão de ordens, os sacerdotes que, abandonando o seu dever de oferecer cuidado pastoral a absolutamente todos, preferem engajar-se em política partidária. Ora, especialmente neste momento triste de nossa história a política eleitoral causa até mesmo separações familiares; que dirá as que se cavariam entre um padre político e grande parte de seus paroquianos!
Esta proibição de misturar o que é de César ao que é de Deus, e vice-versa, poderiam alguns dizer, seria uma “desvantagem” católica em relação aos protestantes, que não têm pejo algum de misturar o que é de Deus e o que é de César ao lançar pastores candidatos e usar suas reuniões de oração para campanhas políticas abertas. A diferença está já no nome, poder-se-ia dizer. A Igreja é “católica”, e “católico” significa “de todos”. As seitas, por sua parte, são secções: são partes amputadas da oliveira que é o Cristo. Numa congregam-se ricos de moral laxa; noutra, pobres dinheiristas; noutra ainda, pobres de moral rígida, e por aí vai. Na pátria de origem do grosso do protestantismo tupiniquim, os Estados Unidos, as denominações protestantes são, via de regra, rigidamente divididas por “raça”, além de classe social. E em qualquer parte elas serão sempre divididas por gosto e propensões teo(i)lógicas. Afinal, no protestantismo é o crente que escolhe um lugar em que seja pregado o que o deixa confortável, enquanto a Igreja verdadeira tem a missão dada por Cristo de garantir que não fiquemos confortáveis demais aqui quando nossa pátria real é o Céu. Se achamos que estamos bem ou que somos “bons”, sabemos – ou deveríamos saber – que estamos sendo enganados, que o que nos está sendo pregado não é o Evangelho. Como costumo brincar, se não me chamam de comunista e de fascista todos os dias eu sei que estou me deixando levar pelas modas do século.
Mas, como o soldado que tem suas feridas pensadas e volta para a guerra, sem querer nem fazer do hospital uma trincheira nem da trincheira um hospital, o católico sabe que na Igreja e da Igreja ele deve receber seu sustento moral e sacramental, exatamente para que possa levar o Evangelho ao mundo e jamais substituir aquele por este. Um padre candidato seria um péssimo padre, e um leigo que tente se clericalizar está igualmente fugindo ao seu papel de leigo. Nosso front, enquanto leigos que somos, é o do mundo. Enquanto o padre salva almas, nós tentamos diminuir injustiças, impedir maldades e, duma ou doutra maneira, fazer com que o reinado social de Nosso Senhor se espalhe por toda parte. Isto significa, entre outras coisas, cuidar da gestão do que é de César, até mesmo neste ninho de cobras que é a política eleitoral.
Ontem mesmo eu estava falando com uma amiga, que comentou que um rapaz seu conhecido, que conquistou importante cargo político, confessou-lhe estar apavorado com a corrupção, com a sordidez e com a podridão que dominam a política eletiva brasileira e não pretende candidatar-se de novo. É compreensível, embora triste; afinal, se ele cede seu lugar a outro picareta a situação se perpetua, e os filhos das trevas estão sempre ativos e em busca de poder. É por isto, aliás, que quando um amigo (hoje candidato a prefeito em sua cidade, aliás) me disse que concorreria a vereador, há já alguns anos, eu lhe disse que ele era a pessoa certa: católico de missa diária e de rosário inteiro diário que é, sua alma teria alguma chance de sobrevivência naquele pântano. Já ouvi dele, depois de seu primeiro mandato como vereador, o mesmo que minha amiga ouviu do outro político católico.
Deve realmente ser desesperador perceber que mesmo as boas propostas demandam práticas más para serem aprovadas, dada a corrupção premente nesses meios. Outro amigo, ainda, quando presidente da Câmara de Vereadores, recebeu de um empreiteiro uma oferta de obra que interessava à cidade. O sujeito disse que lhe daria 20% do que recebesse do erário municipal; meu amigo, indignado, disse que não queria, e sugeriu ao empreiteiro que desse à cidade um desconto de 20%. O empreiteiro, claro, respondeu-lhe que não poderia. A regra do jogo é esta, e não é de hoje. Mas como mudá-la sem se sujar ali? Ou, dizendo melhor, como mudá-la sem que se entre ali, mas, ao contrário de todos os demais, sem que ali se suje?!
É crucial que tenhamos gente engajada, que não tenha medo de adentrar essa cova dos leões que é a política eleitoral pátria. Mas quem o fizer não pode deixar de buscar com todas as suas forças a santidade
Como já disse, sendo a Igreja católica, um candidato não pode ser “o candidato da Igreja”. Seria uma mentira, pois o que a Igreja busca que seja feito pelos católicos na política é a busca do bem comum. Em outras palavras, do bem “católico”, “de todos”. Há, assim, e deve haver, candidatos que são católicos e que agem como católicos, sem sectarismos; sectarismos são o oposto da catolicidade. É crucial que haja uma forte presença de leigos católicos engajados, todavia, desde que, claro, sua ação na Igreja não seja mera campanha eleitoral antecipada ou disfarçada, sim real prática “ovelhal” (sempre digo que há “pastorais” demais e “ovelhais” de menos!).
Quando das eleições para os Conselhos Tutelares, li numa postagem feita por uma feminista abortista comunista (e tudo mais que é “ista” errado) que o meio lá por onde ela rasteja estava apavorado com a crescente presença de católicos nos Conselhos Tutelares. Que bom: sinal de que estamos incomodando o Inimigo. Um conselheiro tutelar, exatamente por sua proximidade ainda maior que a de um vereador das famílias em situação de risco, acaba por ter capacidade proporcionalmente maior à sua “desimportância” por sua atuação fazer a diferença na vida duma criança ou duma mãe.
É crucial que tenhamos gente engajada, que não tenha medo de adentrar essa cova dos leões que é a política eleitoral pátria. Mas é igualmente crucial que quem o faça não deixe jamais de, ao mesmo tempo, buscar com todas as suas forças a santidade: pela participação diária na Santa Missa, se possível, e por pelo menos a reza diária do terço, preferencialmente em família. A vida de oração, ensina-nos o padre Chautard, é a alma de todo apostolado; e se a política não for um apostolado para Deus, sê-lo-á para o demônio. De nada adianta ter as melhores intenções se a falta de orações e de recurso aos sacramentos não nos dá as armas espirituais sem as quais não é possível sequer adentrar o ringue, que dirá vencer a luta! Assim, cada candidato e, mais ainda, cada eleito deve ter sempre claramente diante de si o fato de que “não temos de lutar contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados e potestades, contra os dominadores deste mundo tenebroso, contra os espíritos malignos espalhados pelos ares”, como escreveu o bom Apóstolo.
Mesmo os muitos que na política brasileira servem a esses poderes malignos são chamados por Deus à salvação, e enorme alegria há no Céu quando um pecador se converte. Nossa luta jamais é deste mundo, e por isso mesmo não devemos vê-la em termos naturalistas, entrando na corrupção “porque sem entrar na jogada não dá para fazer nada” e deixando de lado o essencial, que é a salvação da alma. Sem santidade, não é possível haver política honesta, mormente no Brasil. E sem oração e sem sacramentos não há santidade possível.
A luta política, como qualquer outra luta em nossa vida, é primordialmente uma luta espiritual. Nesta luta, como em todas as demais, a Igreja é o grande hospital de campanha onde os sacramentos curam e restituem à saúde os soldados feridos. E feridos somos todos, mesmo antes de entrar na batalha, pelas consequências do pecado original. É-nos mais fácil fazer o mal que o bem, e quem cessa de tentar melhorar piora incessantemente, em vez de ficar parado. Para que possa haver reta participação do católico em algo tão cheio de más influências e de más práticas (que tanto deliciam os demônios!) quanto a política eleitoral brasileira, é fundamental que esta seja uma luta encetada por gente de oração, de fé reta, de vida dedicada a Deus, de frequência assídua aos sacramentos, de amor pelo próximo. Quando se esquece isso não se é mais um candidato ou mesmo um político católico, sim um sectário, um galho cortado a mais, um picareta mais, um escravo a mais do demônio.
E destes, infelizmente, já há demais nesse campo.
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