Quando uma fonte primária (documento, tabuleta, o que for) que apresenta leis ou regras dalguma sociedade antiga é descoberta, os historiadores sabem que poderão deduzir dela duas coisas: o costume local que a regra visa proteger, e uma forma de violação relativamente comum daquele costume. Afinal, nunca foi necessário fazer leis proibindo as pessoas de comer apenas coisas nojentas ou vedando aos passarinhos atirar-se à boca dos gatos. Quando a regra é violada, é porque há alguma razão – por pior que seja – que leva alguns a ver em sua violação uma vantagem. E, do mesmo modo, quando um costume existe, ele tem alguma razão de ser. Esta pode ter sido até mesmo esquecida, mas na decadência da sociedade, quando o costume é deixado de lado, descobre-se rapidamente o que afinal ele evitava; sendo a natureza humana sempre a mesma, sem a regra costumeira o malefício que o costume visava evitar certamente há de retornar.
Apenas em nossa sociedade, todavia, no brevíssimo período das ditas Luzes, iniciado há pouco mais de 200 anos e já em seus estertores finais, foram as regras empregadas não para manter uma sociedade mais ou menos funcional, sim para construir uma nova sociedade. Uma utopia vinda de cima para baixo, de amplitude muito maior que qualquer exemplo antigo. Enquanto Aquenáton pôde substituir por breve período a religião egípcia tradicional, substituindo-a pelo culto exclusivo do disco solar (ou de seus raios; há controvérsias), todo o resto permaneceu intocado. Tão intocado que logo depois de sua morte tudo voltou a ser como dantes no quartel de Abrantes, com a exceção do respeito popular aos faraós, que diminuiu tremendamente por conta de seu abuso de poder.
Já as Revoluções Americana e Francesa conseguiram negar alguns princípios ainda mais básicos da sociedade, substituindo-os por outros princípios inventados na hora e supostamente superiores. Sobreviveu naquelas sociedades, todavia, toda uma infinidade de regras e preceitos fundamentalmente morais que impediram que realmente se fizesse tabula rasa da sociedade cristã que se tentou desmanchar. O calendário revolucionário francês, com seu Ano Zero, foi esquecido. Regras cristãs adotadas pelo governo americano demandaram que os mórmons abandonassem a poligamia para unir-se aos Estados Unidos, formando o estado de Utah. Até mesmo as versões posteriores e ainda mais tresloucadas do pensamento revolucionário, como o comunismo e o nazifascismo, sustentaram bases estritamente cristãs em relação a grande parte do que era proibido ou permitido. O fato de não se assumir a origem cristã daqueles elementos morais – seja atribuindo-os à Pura Razão kantiana ou a outra pseudodivindade – não os torna menos cristãos.
O “cancelamento” começou com estátuas, delas passou para pessoas, e agora das pessoas passa até mesmo aos desenhos animados
Hoje mesmo, curiosamente, num momento em que aquela visão de um futuro cor-de-rosa logo ali à frente já tresanda ao longe, como cadáver de baleia encalhada, é possível a duas pessoas do mesmo sexo registrar um “casamento” civil. A não ser, claro, que sejam irmãos ou aparentados próximos, num resquício desenraizado dos impedimentos matrimoniais católicos. Tirou-se do discurso público o cristianismo, mantendo-se, entretanto, grande parcela de sua contribuição moral para a construção do Ocidente. Nos Estados Unidos a coisa era ainda mais estranha, na medida em que a Revolução foi a obra de uma pequena minoria de deístas que viam alguma espécie de função moral kantiana na infinidade de seitas em que o protestantismo se dividiu assim que se levantou à superfície do planeta. Assim, a Igreja Católica era malvista – Kennedy só pôde ser eleito após basicamente jurar que não agiria como católico, temor que Biden jamais causou –, mas as seitas, desde que sujeitas à grande Religião Cívica americana, serviam-lhe de cursos de catecismo.
Mas eis que até isto agora subitamente desapareceu; o crescimento da proporção de pessoas “sem religião” nos EUA neste século é absolutamente espantoso. Enquanto até o fim do século passado estava lá a maior parcela de população que se considerava religiosa entre todos os países do Primeiro Mundo, a proporção de ateus e agnósticos já está se assemelhando às dos países europeus. A religião cívica, porém, continua. A importantíssima diferença é que agora ela está cindida por um cisma ferocíssimo, uma divisão brutal em que cada lado considera o outro culpado da heresia suprema: ser “un-American”, “não americano”. A visitação pública inesperada do Capitólio nesta Epifania acabou tornando-se a pedra de toque do pertencimento a cada lado do cisma. Os basbaques que passearam e tiraram selfies nos sacratíssimos corredores daquela cópia descarada dum templo romano viam-se e ainda se veem como “patriotas”. Já para os que aderem ao outro lado do cisma eles são evidentemente “supremacistas brancos” tentando perpetrar um golpe de Estado. Uma “insurreição armada”, ainda que a mais devastadora arma em posse deles tenham sido os chifres do rapaz fantasiado de vaca e alguns canivetes de cortar laranjas, e o único tiro de toda a farsa tenha sido disparado por um segurança, atingindo fatalmente uma visitante.
Previsivelmente, a divisão segue em grandes linhas as duas forças em ação dentro daquela (e de qualquer outra) Revolução. Dum lado estão os que querem manter os costumes (leia-se a releitura revolucionária da moral cristã, do alto de seus 200 anos de “autoridade”); do outro, os utópicos. No poder, ou pelo menos no governo, dominando o Executivo, o Legislativo, a academia, a grande mídia e o grosso da internet, estão os utópicos. Daí uma espécie de retorno ao momento da Revolução inicial, em que se tenta novamente construir outra realidade de cima para baixo, negando alguns princípios da ordem anterior e assumindo outros sem ousar reconhecer donde vêm. É uma segunda Revolução Americana, em que a população branca, anglo-saxã e protestante de classe média baixa que protagonizou a anterior vê-se subitamente no papel nela desempenhado (ou antes padecido) pela Inglaterra distante. Até mesmo a mídia construída para firmar a narrativa democrática americana como apogeu da história durante seu momento de maior força – o pós-guerra – vê-se atirada ao mar, como na Festa do Chá original. Daí o “cancelamento”, que começou com estátuas, delas passou para pessoas, e agora das pessoas passa até mesmo aos desenhos animados. Tchau, Pica-Pau; por hoje é só, pessoal.
Aqui no Fim do Mundo, a nossa lamentável esquerda importa de forma totalmente surda ao contexto o bestialógico da esquerda americana (o lado que ora está no poder) e, ainda mais lamentavelmente, os que papagueiam o discurso da patética direita americana tentam passar por conservadores. Daí termos também milícias virtuais “canceladoras”, mas que fazem tanto sentido social quanto um tocador de banjo dos Apalaches subitamente jogado num duelo de repentistas nordestinos. A incongruência cultural é tamanha que se torna difícil entender aqui, neste país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza, donde vem e para onde (pensa que) vai o movimento utopista que ora habita a Casa Branca e controla o Capitólio – “conspurcado” pelos derradeiros representantes do ora agonizante grupo social que o mandou construir: os “deploráveis”, nas palavras de Hillary Clinton.
Fica dificílimo entender a razão do súbito cancelamento daquela arte americana que conhecemos bem e que tanto ajudou a manter o Brasil do lado americano durante a Guerra Fria. Como assim, proibir o desenho animado do gambá sem noção que apanha a cada tentativa malfadada de sedução duma gatinha?! Como assim, redesenhar sem seios a coelhinha voluptuosa doutro desenho?! Realmente, parece coisa sem pé nem cabeça num país em que – felizmente – poucos chegam a saber da existência de aparelhinhos eletrônicos de registro impessoal de consentimento para relações conjugais (ou fornicação; tanto faz, na visão de quem os usa). Em que os poucos maluquinhos que repetem os mantras racistas da esquerda americana (chegando mesmo a criar xingamentos como “palmiteiro”, usado contra quem tem a decência mínima de ver antes a pessoa que seu suposto pertencimento a uma ou outra “raça”) só conseguem fazer valer seus discursos alucinados em DCEs de universidades federais. Em que, em suma, a sociedade não está nem aí para a “guerra cultural” americana.
Mas lá a coisa é realmente séria. As pessoas realmente não apenas acreditam nesses horrores, como os vivem. Ai do sujeito black (aliás, Black, com maiúscula) que ousar pensar em casar com uma moça white (em minúsculas, mesmo. É esta a regra atual): será ostracizado (“cancelado”) pela própria família e pelos amigos. Ai daquele que ousar defender agora as mesmas imbecilidades defendidas por seus pais ou avós: no mínimo perderá o emprego. O que aqui é piada de internet, no máximo levando a bizarríssimas punições infligidas pelos algoritmos das redes sociais (americanas), lá é coisa séria. Está-se tentando fazer outra Revolução Americana, e os defensores do ethos da anterior estão no mato sem cachorro: são os novos ingleses, ao que tudo indica prestes a perder o que consideravam território seu.
Eis que, 200 e poucos anos depois, tira-se da naftalina o mecanismo de recriação da sociedade, de manufatura duma utopia por via legislativa. Numa língua em que, curiosamente, já existia um pronome reto singular sexualmente neutro (“it”), proíbem-se em lugares sérios o uso dos pronomes sexuados, subitamente substituídos pelo plural (desprovido de gênero) ou por pronomes simplesmente inventados. É “a imaginação no poder”, como queriam os revoltosos franceses de Maio de 68. A imaginação de pronomes, a imaginação de gêneros, a imaginação da antitransubstanciação em que, ao mudar alguns acidentes visuais do sexo, a substância da pessoa passaria a ser do sexo oposto, criando-se o homem ou mulher “trans”. A imaginação, em suma, duma utopia em que, tendo sido já conquistado do Atlântico ao Pacífico, as Filipinas, Porto Rico e tudo o mais que lhe apeteceu, passa-se à conquista da derradeira fronteira: a realidade. A realidade do sexo. A realidade do amor. A realidade da relação de causa e efeito entre a impressão de dólares e a inflação. A realidade da finitude dos recursos.
Tudo isso, claro, sem deixar de bombardear e matar em guerras sem fim, sem sentido e sem moral, mantendo em funcionamento a máquina da economia americana, em que o lucro (financeiro) advindo da criação de novos dólares é gasto explodindo gente pobre e de pele escura ao longe. Mas a realidade local, em que polícias hipermilitarizadas tratam os pretos pobres como se fossem sírios ou afegãos, parece difícil de conquistar. Como a do sexo. Como a da atração entre os sexos. Como, enfim, toda e qualquer realidade. A realidade é coisa muito teimosa, como todo revolucionário acaba descobrindo.
É “a imaginação no poder”, como queriam os revoltosos franceses de Maio de 68. A imaginação de pronomes, a imaginação de gêneros, a imaginação da antitransubstanciação que cria o homem ou mulher “trans”
Mas é assim que a banda toca na fase final da decadência duma sociedade de base revolucionária, em que o reacionarismo mais completo é a retomada do revolucionismo. Assim como a decadência final da Reconquista católica espanhola manifestou-se como Inquisição, num reacionarismo que só pôde existir quando já ruíam as bases daquela sociedade. Assim como a decadência final de Roma manifestou-se na tentativa fracassada de Juliano Apóstata de reconstruir o templo judeu apenas para irritar os cristãos, também numa espécie de reacionarismo decadencial que esquecia terem sido os próprios romanos pagãos a destruí-lo.
A Revolução original pôde funcionar por um par de séculos. Um átimo, em termos históricos, em que os EUA só escapam de ser mera nota de pé de página dos livros futuros por serem a versão exacerbada das hordas da estepe, devastando não apenas o continente em que surgiram, mas chacinando no atacado inocentes mundo afora. Ninguém esquece Átila, afinal. Esta segunda Revolução, ou segunda etapa da primeira, no entanto, não tem como durar. Afinal, sem um mínimo de base civilizacional, vendo a mudança contínua (o tal “progresso”) como objetivo e a natureza humana como inimigo, só o que lhe é possível é o estabelecimento duma tirania violentíssima, porém de curta duração. Até mesmo o surgimento mundo afora dalgumas forças militares mais que capazes de fazer frente ao poderio militar americano indica que só lhe resta voltar-se para dentro. Atacar os próprios cidadãos, em nome da imaginação utópica que chegou lá ao poder.
Já aqui, se ela chegar, “a gente esculhamba, doutor”, como disse o gari duma crônica do grande Stanislaw Ponte Preta. É um alívio.
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