Meus amigos hippies não ficam muito felizes quando lhes aponto que são burgueses e capitalistas. Afinal, eles são os donos dos meios de produção das bugigangas que fazem e vendem (com maquininha de cartão e tudo!). Sua ilusão de ter “saído da sociedade” não se coaduna com a realidade de pequenos comerciantes e artesãos, sempre preocupados com vendas (ainda que lhes bastando vender o bastante para bancar a cachaça ou outro entorpecente) e encomendas de matéria-prima – fios de cobre e bolinhas coloridas, no mais das vezes, ainda que uma vez eu tenha deixado um deles muito feliz ao lhe dar o couro de um tatu morto que achei aqui na roça.
Por outro lado, está sendo criada uma vasta multidão de gente que, sem o ter escolhido, vê-se completamente às margens da sociedade. O termo mais usado para a participação social construtiva de que são incapazes – “empregabilidade” – eu pessoalmente acho asqueroso. Afinal, “empregam-se” ferramentas, não pessoas. “Empregar” alguém é fazer de alguém uma ferramenta, e em última instância negar-lhe a humanidade. Mas tais são as vicissitudes do capitalismo.
O nome do “inempregável” do discurso sociológico de hoje é Legião. Enquanto se tem ainda um certo porcentual de gente que consegue dar um jeito de se inserir na nova economia de serviços – motoristas de aplicativos, por exemplo – as coisas mais ou menos andam, mas o fato é que todo o sistema anterior já deu com os burros n’água. Antes, tinha-se uma classe média sumamente (eca) “empregável”. Tão “empregável” que bastava chegar ao fim dos rituais de passagem daquela classe, por exemplo, conquistando um diploma de graduação para “virar doutor”, e o “emprego” já estava garantido. Abaixo dessa classe tinha-se a vastíssima multidão que compõe as classes mais baixas. A diferença, todavia, é que se tratava ainda de uma multidão de gente capaz de trabalhar, de gente sumamente empregável. Essa capacidade era frequentemente abusada; conheço várias senhoras de classe mais baixa que começaram a “trabalhar em casa de família” aos 11 ou 12 anos. Mesmo começando em idade mais adequada, os demais membros das classes menos favorecidas encontravam sempre ou quase sempre um trabalho à altura de sua capacidade, que não era pouca. Eram eles, na prática, que mantinham o país funcionando com sobras bastantes para sustentar, por exemplo, o ócio dos funcionários públicos.
“Empregam-se” ferramentas, não pessoas. “Empregar” alguém é fazer de alguém uma ferramenta, e em última instância negar-lhe a humanidade
Hoje, contudo, secaram as fontes de trabalhadores. Não por falta de gente; longe disso. As pessoas continuam, felizmente, tendo filhos. O que não se faz mais é educar os filhos e, como sempre quando se trata de consequências negativas, quem mais sofre com isso são os mais pobres. Trabalhar numa sociedade capitalista tardia não é nada evidente, ainda que em qualquer sociedade se tenha sempre alguma relação entre nosso esforço e nossa capacidade de botar comida na mesa. Um caçador-coletor das savanas africanas, por exemplo, sabe que se não caçar não tem janta, e se não coletar não tem sobremesa. Já na sociedade de hoje os “empregos” de gente são mais elaborados, mais complicados, ainda que na prática pouco se esteja fazendo de real valor pessoal ou social.
O trabalho, em primeiro lugar, demanda que se tenha uma capacidade elementar de postergar satisfação. Trabalha-se primeiro, para só depois receber o devido pelo trabalho. Além disso, raríssimos são os serviços que não envolvem uma certa dose de repetitividade. Mesmo quem caça na savana africana vai passar pelas mesmas etapas de rastreio da presa, aproximação, ataque, e o que mais for, com modificações e adequações, mas, no fundo, uma rotina não tão diferente da de um operário ou hippie de praça. Finalmente, é preciso, mais ainda na sociedade urbana de hoje, saber fazer uma série de coisas para que se possa começar a pensar em arranjar um serviço. A primeira, e mais evidente delas, é saber ler, escrever e fazer contas. A segunda é querer aprender e, mais ainda, saber aprender. Afinal, todo serviço envolve algum tipo de atividade que demanda aprendizado. Até mesmo o cara de colete “APOIO”, cujo trabalho é basicamente ficar parado fazendo cara de mau, precisa aprender a ficar parado e a fazer uma cara de mau que não lhe dê cãibras, além de saber reconhecer a hora e os alvos possíveis e necessários da eventual distribuição de bolachas.
Só que hoje tudo o que apontei acima está em falta. Não se trata de algum tipo de demolição planejada da sociedade; são efeitos de vários fatores presentes nesta nossa decadência social. O fato persiste, no entanto, de que hoje uma minoria das classes menos favorecidas consegue juntar todos os pré-requisitos necessários para ingressar com sucesso no mercado de trabalho.
Na mais bárbara extremidade de um vasto espectro de incapacidade de colaboração social está quem vive pior que um bicho. Meu leitor, provavelmente de classe média, pode ter dificuldade em aceitar a presença efetiva de tal realidade, mesmo por falta de interseção possível na vida com esse pessoal, mas o fato é que existe, e existe aos montes, gente que vive sem a mais básica humanidade. Não se trata de passar fome, mesmo porque sempre acaba aparecendo alguém para dar um prato de comida, mas de não saber nem querer respeitar a própria dignidade humana. Algumas historinhas de horror, todas reais, podem servir para marcar o ponto:
1. Uma família (ad hoc, como soem ser as famílias hodiernas) vive num barraco de tijolo aparente numa vasta favela fluminense. O barraco não tem banheiro. A mãe do rapaz, empregada doméstica em cidade próxima, compra e leva lá um vaso sanitário. O rapaz simplesmente o pousa no chão, sem fazer qualquer tipo de tubulação, fossa, o que for, e a família passa a defecar no vaso, evidentemente desprovido de descarga, e continua a usá-lo até que se forme uma montanha de fezes que praticamente o esconde. Param, então, de usá-lo, e o deixam ali de enfeite. Ou quiçá de aromatizante de ambiente. A mesma família, sempre que ganha uma cesta básica, prepara toda a comida que ganhou de uma só vez, come até passar mal, e enfia os restos nos buracos dos tijolos da parede, como que para alimentar os ratos.
2. Em dias de visitação em carceragens de delegacias, é frequente a presença de mocinhas ali levadas pelas amigas em busca de um namorado entre os presos, como se a atividade antissocial que os levou a estar ali fosse qualidade essencialmente buscada para um enlace amoroso adequado às sublimes demandas das raparigas.
Hoje, uma minoria das classes menos favorecidas consegue juntar todos os pré-requisitos necessários para ingressar com sucesso no mercado de trabalho
3. Uma menina deixa de ir à escola e é mantida essencialmente em cárcere privado pela mãe e pelo padrasto. Ele a quer à mão para estuprá-la quando der vontade, e a mãe prefere que as coisas sejam assim para que o companheiro não a incomode com sua demanda incessante de sexo. Passado um tempo, a mãe passa a ter ciúmes da “relação” da filha com o padrasto e expulsa a menina de casa. Aliás, vale observar que o número crescente de meninas de 10 ou 11 anos parecendo grávidas aponta para uma realidade de abuso ainda mais perversa, já que a razão mais provável para que uma criança tão nova já tenha capacidade fértil é o abuso habitual e sistemático desde muito mais cedo.
4. Movido por ciúmes, um sujeito amarra a mulher numa coluna do barraco com o fio do ferro de passar sempre que sai. A parede que separa o cômodo onde a moça fica presa e a casa dos vizinhos não vai até o telhado, mas os vizinhos fingem não saber da situação da mulher.
5. Uma moça, que não trabalha fora e cujo marido ganha salário mínimo, tem quatro filhos pequenos. Eles estão brincando na lama com os filhos de outra senhora, que comenta com a primeira o trabalho que dará lavar as roupas dos fedelhos. Ouve, então, que a mãe de quatro não há de lavar nada; prefere jogar as roupas fora, porque sempre há alguém doando roupas de criança.
6. Uma senhora briga com o marido caminhoneiro, e vai morar com o amante numa favela barra-pesadíssima. Ela leva as crianças, e dormem na mesma cama ela, o amante e os filhos – que acabam acompanhando a “lua de mel” do novo casal, tendo sido apresentados ao rapaz como “o seu novo pai”. Por preguiça ela não cozinha, preferindo passar o tempo com a cara enfiada no celular. As crianças crescem com problemas de aprendizagem e saúde por desnutrição crônica na primeira infância, e a menininha de 7 anos apresenta queimaduras de segundo grau nos braços, por tentar fritar um ovo de vez em quando para acompanhar os biscoitos, nutela e refrigerantes que compõem o cardápio doméstico. Evidentemente ninguém ali vai à escola ou toma banho. O menino mais velho frequentemente demonstra seu admirável senso de humor defecando na tampa do vaso (este, sim, ligado nas devidas tubulações) e deixando a prenda para a mãe limpar.
São casos graves? Certamente. Mas são comuns, muito mais comuns que o que imagina o cidadão de classe média que não tem qualquer contato direto com tais pessoas. Um ponto em comum das crianças e adolescentes vindos de tais ambientes é sua total e completa incapacidade de trabalhar. Nenhum deles teve sequer ocasião de desenvolver os talentos necessários, os pré-requisitos que elenquei acima. Não se trata de algum tipo de inferioridade genética, como quereria um racista do século passado; é uma inferioridade artificial, uma humanidade que não foi construída, tornada possível pela riqueza extrema da sociedade. Maslow não poderia imaginar, mas isso existe, e muito. Mesmo sendo o homem um animal naturalmente social, segundo Aristóteles, fomos tão bem-sucedidos nisso que se tornou possível ser tremendamente antissocial e mesmo assim ter garantida a comida e o teto.
As políticas supostamente de promoção social petistas nem tentaram fazer os bens que as esquerdas sempre apontaram, preferindo facilitar às classes menos favorecidas o acesso a meros sinais exteriores de pertencimento à classe média em vez de dar-lhes boa água nas torneiras, tratamento de esgoto e cuidados básicos de saúde. Quanto à educação fundamental, então, essa piorou. Da nova possibilidade de endividamento em massa presenteada por Tio Lulinha vem outro elemento de alienação proletária cujos malefícios só poderemos perceber plenamente daqui a alguns anos, mas que já estão aparecendo por toda parte: o onipresente telefone celular. As famílias mais pobres, numa ilusória “inclusão digital” (expressão mais adequada para exame de próstata, confesso), gastam dinheiro que não têm, endividando-se em porcentuais da renda inimagináveis para a classe média apenas para garantir que seus pimpolhos tenham sempre uma tela nas mãos.
Nela e dela aprendem tudo o que não presta, inclusive e especialmente o vício naquela combinação infalível tanto para vender joguinhos ou qualquer outro tipo de “conteúdo” quanto para impedir liminarmente o desenvolvimento humano: estimulação rasa e constante, com fartura de recompensas imediatas. É na prática uma escola de como não trabalhar. Enquanto um trabalhador moureja 40 horas por semana por quatro semanas e meia para receber seu salário, o celular premia instantaneamente com uma microrrecompensa o mais simples gesto de rolar a tela ou bater nela o dedo. Enquanto o trabalhador tem de lidar com o tédio do trabalho repetitivo, o celular – sem jamais apresentar algo verdadeiramente interessante – oferece uma infindável sucessão de coisas interessantinhas, das quais a mais interessante talvez venha a arrancar um sorriso de sua presa humana, mas cuja quantidade acostuma e faz as vezes de qualidade. Enquanto o trabalhador tem sempre de lidar com a curva de aprendizado das tarefas de cada serviço, o celular oferece curvas de aprendizado – em joguinhos, redes sociais, o que for – em que o esforço requerido é sempre muito inferior à estimulação imediata e diretamente visada. Até mesmo a capacidade de leitura acaba sendo piorada, já que o grosso das atividades no celular exige menos dela que o simples ato de escolher o ônibus certo.
Enquanto um trabalhador moureja 40 horas por semana por quatro semanas e meia para receber seu salário, o celular premia instantaneamente com uma microrrecompensa o mais simples gesto de rolar a tela ou bater nela o dedo
Quando meu querido amigo Rodrigo Baggio fundou, anos atrás, uma ONG que reformava computadores e os usava para ensinar informática nas favelas, em tempo já de internet, mas ainda não de celular, eu lhe disse que não via muito uso em dar às pessoas acesso a uma nova Biblioteca de Alexandria, que é a internet, sem que elas tenham qualquer noção do que deveriam procurar ali. E foi batata: mais ainda com a chegada dos celulares, que são essencialmente computadores de bolso hiperconectados, a internet hoje em dia usa a maior parte de sua imensa largura de banda para transmitir pornografia. Diria eu que provavelmente a pornografia “íntima”, para usar o irônico termo da moda – os tais nudes e quetais –, ocupa por sua vez uma parcela também importante do fluxo interpessoal direto de comunicação informática. O pior é que a fotografia da mocinha fantasiada de Eva em dia de vendaval que ela carinhosamente mandou para o ficante do momento, num sucedâneo pseudoamoroso virtual daquelas folhas em que os mercados anunciam os produtos com desconto, vai rodar de tela em tela até o Juízo Final. Afinal, na prática o que cai na rede não tem mais dono, visto ser o dado digital infinitamente reproduzível.
Tudo isso, junto, está fazendo com que surja uma enorme classe de gente incapaz de trabalhar. Gente que jamais conseguiria aprender a tocar um instrumento musical – aprendizado cujos primeiros prazeres reais só aparecem depois de um ou dois anos de esforço diário. Gente que nem sequer imagina haver a possibilidade de aprimorar-se, de aprender hoje algo que não sabia ontem e tornar-se assim uma pessoa alguma coisa melhor. Gente que não só não tem, como não tem como ter e não imagina que se possa ter a paciência necessária para trabalhar o mês inteiro até receber o salário, para fazer a mesma coisa todo dia, para, enfim, ser parte integrante da imensa rede de colaborações mútuas que é a sociedade.
São cada vez mais raros os jovens oriundos de classes menos favorecidas com algum ímpeto empreendedor, e cada vez mais comuns as queixas de gente que precisa de trabalhadores, quer contratá-los, mas não os encontra
Aqui na roça a gente só vê cabeça branca pegando na enxada. Mesmo na cidade, são cada vez mais raros os jovens oriundos de classes menos favorecidas com algum ímpeto empreendedor, e cada vez mais comuns as queixas de gente que precisa de trabalhadores, quer contratá-los, mas não os encontra. Diploma superior, como já escrevi aqui, hoje em dia não garante sequer que a pessoa saiba ler e escrever, e na prática só serve para aumentar a chance de que a recepcionista não apareça para trabalhar de chinela de dedo, shortinho e bustiê.
Não são mais apenas as elites que abandonaram seu dever de transmitir os valores da cultura, preferindo entregar-se às modas do populacho, que Toynbee apontou como sinal da decadência final de uma sociedade. Isso já passou há uma geração. O que está acontecendo agora é pior: é uma dissolução das classes trabalhadoras, uma antissociabilidade crescente que em breve, breve demais, vai fazer com que não haja mais como existir a fartura que hoje a torna possível.
Aí é que a coisa vai pegar de verdade.
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