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Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Isolamento tecnológico

Detalhe de Mulher Costurando, de Vincent van Gogh.
Detalhe de Mulher Costurando, de Vincent van Gogh. (Foto: Reprodução/Van Gogh Museum)

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Sempre gostei muito de histórias de ficção em que ocorre uma viagem no tempo. A que, por assim dizer, “lançou a moda” é A Máquina do Tempo, de H. G. Wells, publicada em 1895. O momento de sua publicação é bastante curioso, pois foi exatamente ocasião duma tremenda virada tecnológica na vida do homem ocidental (e, ao longo do século subsequente, dos demais povos). Uma pessoa de até o começo do século passado que fosse magicamente transportada a qualquer outro momento do passado estaria em perfeitas condições de sobrevivência. Suas roupas, corte de cabelo e outros detalhes certamente a marcariam, assim como os problemas de língua e cultura. As tecnologias empregadas, todavia, não lhe seriam estranhas.

Já se uma pessoa de hoje fosse transportada a outro tempo, ela não saberia como fazer as coisas mais comezinhas, como acender um fogo para ter luz ou fazer comida. Uma mulher de hoje não teria qualquer noção de tecelagem, ou mesmo de cerzidura. Um homem não saberia sequer como montar num cavalo, que dirá selá-lo. Ao contrário, até: é hoje extremamente comum que pessoas tremendamente ignorantes da longa história que une o homem e tão nobre animal que é o cavalo fiquem horrorizadas ao ver uma carroça. Em Petrópolis, Capital de Verão do Império, chegaram ao ponto de proibir os passeios de charrete, por “preocupação com o animal”. Vê-se claramente que se trata de crianças de apartamento, que tomam os cavalos por personagens antropomorfizados da Disney.

O fato, todavia, é que com “nossos” supostos avanços tecnológicos nós nos isolamos completamente de nossos antepassados. Tornamo-nos (como aliás escrevi aqui mesmo há coisa duma década, no tempo do papel e tinta) provincianos temporais. Nada sabemos do que está além deste curtíssimo período de tempo em que a tecnologia nos possibilita fazer coisas nunca dantes imaginadas, ao mesmo tempo em que nos vicia ao ponto de termos dependências tampouco imaginadas em quaisquer outros tempos. Já disse, todavia, Fernando Pessoa que “[p]ara o provincianismo há só uma terapêutica: é o saber que ele existe. O provincianismo vive da inconsciência”. Se formos curiosos, podemos tentar perceber algo dos outros tempos. Na verdade, em tese teríamos até mesmo aulas de História na escola; pena que de nada elas servem, com suas reduções absurdas à economia do que na verdade deveria tratar do homem.

Se uma pessoa de hoje fosse transportada a outro tempo, ela não saberia como fazer as coisas mais comezinhas, como acender um fogo para ter luz ou fazer comida

Sem conceber a vida em outros séculos, em qualquer cultura que seja (posto que o problema é a viciante tecnologia moderna, não as diferenças culturais), a própria História torna-se inútil. No nosso tacanho provincianismo temporal, julgamos e condenamos figuras do passado que muitas vezes nos seriam superiores em qualquer critério que não os da moda no momento atual. A forma mais estúpida desta ignorância foi fartamente demonstrada ano passado, com a epidemia de ataques a estátuas. Nem mesmo uma estátua de Cervantes – ele mesmo pessoa que havia sido reduzida à escravidão – escapou. Colombo, ironicamente, foi atirado ao mar, e por aí vai.

A coisa fica ainda mais triste quando nos damos conta do quanto é rasa a visão de mundo do provinciano temporal, de sua colossal arrogância e ignorâncias. O tolo orgulha-se de seu telefone celular, mas não tem a menor noção de como ele funciona. O que há por baixo do capô do carrão de que seu dono fica prosa é-lhe completamente desconhecido. A “natureza intocada”, que de “intocada” nada tem, consegue parecer-lhe algo divino, exatamente por não lidar nunca com ela. Daí os devaneios dos ecochatos de apartamento, que veem o mundo ideal como composto dum lado de cidades e do outro de mato, como se a comida que comem e as roupas que vestem brotassem nas prateleiras das lojas que frequentam.

A partir de dados muito pouco confiáveis, obtidos em medições que começaram na época em que H. G. Wells escrevia seu livro, deduz-se que seríamos nós a causar o constante devir das condições climáticas ao longo dos milênios. E, claro, deduz-se daí uma suposta solução, também suposta capacidade nossa. A discussão limita-se aos meios de paralisar o fluxo perpétuo do clima, sem que ninguém sequer cogite a impossibilidade ou as consequências de empreitada tão sem sentido. Bill Gates, por exemplo, planeja poluir propositadamente o ar para diminuir o calor do sol! Tudo o que podemos ver, presos na minúscula província que é o agora, somos nós mesmos e nossas ações. É a sociedade que compomos, um espelho em escala maior de cada um de nós. Daí fantasiarmos a ausência de motores a explosão, mas sua substituição pela tração animal – mickeys aos magotes, puxando carroças! – nos horroriza. Preferimos inventar carros elétricos, ainda mais distantes de tudo o que já foi feito, alimentados por eletricidade obtida de gigantescos motores a explosão. Ou, pior ainda, pela energia nuclear, que ora nos permite carregar o celular, mas que envenenará nossos descendentes por milênios.

A própria ortografia de nossa língua é sujeita a intervenções tresloucadas, em que comitês decidem que doravante “adrenalina” será “ad-renalina” e as “lingüiças” perderão o trema que tanto faz pelo seu gosto. O resultado evidente é um isolamento ainda maior do passado, pois aos poucos a deriva ortográfica conduz à incapacidade de leitura no que parece a uma criança uma língua estrangeira, mas que é apenas a grafia que seus avós aprenderam na escola.

Ao mesmo tempo, neste mesmo “agora” em que habitamos, nossa atenção se torna cada vez mais fragmentada, e cada vez mais distante de tudo o que compõe o mundo em que sempre viveu o ser humano e um dia voltará a ser a regra. O sempiterno celular na mão de cada um nos retira até mesmo do lugar em que estamos, fazendo-nos viver numa ou noutra tela. Como a maior parte das pessoas habita caixotes que abelhas recusariam horrorizadas, é compreensível que a fuga para a tela se torne uma forte tentação. Mas o que é a tela, o que são as timelines das redes sociais a não ser uma sucessão de momentos desconexos, em que adestramos nossa mente a mudar de assunto várias vezes por segundo?! Mais tarde, claro, revela-se a dificuldade de ler um livro, em que o assunto não muda jamais.

Do mesmo modo, o mecanismo de reprodução da espécie, o modo pelo qual geramos as futuras gerações, é ainda mais atacado na perpétua luta contra o passado e contra o futuro que nosso provincianismo exige. Os delírios doentios da pornografia treinam legiões de rapazes para a infelicidade matrimonial, causando indiretamente também a infelicidade garantida das pobres moças que vierem a se casar com eles. A pornografia está para as gônadas um pouco como o pergaminho infinito das redes sociais está para o cérebro. Neste substituímos um assunto por outro, e outro, e outro, num “subir a tela” sem fim em que a única permanência é a da transitoriedade. O que passou passou, e achar de novo algo que se viu é quase impossível. Já na pornografia, estímulos mais e mais bizarros adestram o mecanismo psicofisiológico do sexo para que funcione apenas em condições cada vez mais depravadas e absurdas. Uma bela mulher desnuda, que sempre foi mais que suficiente para transferir do cérebro à genitália quase todo o sangue de qualquer homem em idade reprodutiva, hoje não basta. Ao contrário, até: pode prejudicar. O viciado em pornografia precisa fechar os olhos e imaginar bodes, anões besuntados e carrinhos de mão enquanto literalmente estupra a pobre moça, na ilusão de que sexo é aquilo que viu em infinitas telas.

Em enorme medida, é a tecnologia descontrolada de nossa sociedade que levou a tal estado de coisas. Trata-se duma tecnologia que necessariamente conduz à ignorância do ontem e do amanhã. Uma âncora pesadíssima com que nos fixamos no presente, e que nos “liberta” para negar a herança de nossos descendentes e ignorar a de nossos antepassados. Daí, também, a dificuldade de nossa sociedade para com o Eterno. A religião, ponto necessário em que o temporal alcança o Eterno e o Eterno habita o temporal, torna-se apenas uma sucessão de “experiências”, algumas supostamente místicas, outras apenas de bem-estar ou mesmo de reconhecimento dalguma utopia litúrgica ou estética de que se venha falando na bolha que se habita numa rede social.

Em termos sócio-históricos, todavia, o que é mais apavorante é a tremenda interdependência, em nível mundial, que o vício em tecnologia criou. Não apenas não sabemos como funciona o celular que carregamos, mas também é praticamente certo que em nenhum país haveria todas as instalações necessárias para fabricá-lo. Um pedaço vem daqui, outro dali, ele é montado acolá, e o compramos perto de casa. Ora, a ruína desse sistema é certa; só falta saber quando. Uma emissão magnética solar mais forte (e elas estão aumentando) somada a um enfraquecimento do campo magnético da Terra (que está ocorrendo), por exemplo, pode fritar da noite para o dia a quase totalidade dos chips de computador, inclusive dos necessários para a fabricação dos outros. O mesmo pulso eletromagnético, diga-se de passagem, provavelmente destruiria quase por completo todos os sistemas de geração e transmissão de energia elétrica, transformaria em esculturas inúteis de aviões a celulares, passando por automóveis, e impediria por completo o acesso a qualquer dinheiro guardado em bancos.

Quantos de nós seriam capazes de viver num futuro semelhante ao que sempre foi normal no passado, quando acabar esta fugaz ilusão tecnológica dum presente eterno?

Aliás, diga-se de passagem, o próprio sistema financeiro que serve de circulação sanguínea ao complexíssimo processo fabril mundial hodierno é totalmente desprovido de lastros. Dólares ou reais são dinheiro, podemos trocá-los por bens materiais, apenas porque acreditamos em seu valor. Eles não têm nada que não a confiança da população a dar-lhes valor. Uma crise bancária provocada por uma guerra, um escândalo qualquer ou simplesmente um pânico bancário no momento exato pode fazer com que, da noite para o dia, não se tenha como comprar ou vender o que quer que seja.

Que faríamos, então? Como sobreviveriam os habitantes das megalópoles? Há ricaços comprando terras na Nova Zelândia e construindo verdadeiras fortalezas para passar mais ou menos ilesos por esses tempos. Sempre digo que seus seguranças se apoderarão de tudo assim que acabar o Poder Judiciário local, mas vou mais longe agora: se o jatinho houver tido os chips fritados, transformando-se numa belíssima escultura decorativa, será que eles pretendem chegar a nado à Nova Zelândia?

E, mais ainda, quantos de nós seriam capazes de viver num futuro semelhante ao que sempre foi normal no passado, quando acabar esta fugaz ilusão tecnológica dum presente eterno? Eu mesmo sei que não duraria quase nada. E você?

Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos

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