Por incompetência rematada dos sucessivos governos militares, ao fim de sua desnecessária longa duração a esquerda viu-se hegemônica no Brasil. Como nosso país tem uma população majoritariamente conservadora, o descompasso entre instituições formais e a vontade da população só fez aumentar durante a Nova República. Após anos de mando e desmando da esquerda, todavia, surgiu no cenário político uma alternativa direitista, que justamente por não ser esquerdista conquistou amplo apoio por parte da população. Dela veio, por exemplo, nosso bolsopresidente, eleito por duas razões: não ser esquerdista e ter feito carreira dirigindo acusações (e grosserias) à esquerda. Não se pode daí, contudo, concluir que tenhamos uma população direitista. Felizmente não é o caso; afinal, o que são esquerda e direita se não os lados de uma mesma moeda falsa?
Nossa população, repito, é conservadora; o conservadorismo, ao contrário do direitismo ou do esquerdismo, não visa a criação de uma utopia impossível, sim a manutenção do que tenha sido provado bom ao longo dos séculos. O fortíssimo apoio popular a um candidato de direita – que provavelmente teria resultado em sua eleição ainda no primeiro turno, fosse confiável a contabilização dos votos em processo totalmente eletrônico – veio de estarmos todos mais que fartos das loucuras da esquerda. A direita, no entanto, também perpetra das suas; o bolsocandidato teve de jogar no lixo várias das teses que defendera ao longo das décadas que passou no Congresso para corresponder, ao menos parcialmente, às expectativas da população.
O conservadorismo, ao contrário do direitismo ou do esquerdismo, não visa a criação de uma utopia impossível, sim a manutenção do que tenha sido provado bom ao longo dos séculos
Uma delas, quiçá a mais horrenda, era a velha serpente da eugenia. Toda direita divide – ainda que apenas in pectore – as pessoas em castas, sendo uma boa e outra ruim. A ruim, claro, é majoritária: são os pobres, os mesmos pobres de quem Tim Maia reclamava por votarem em candidatos de direita. A boa, mais evidentemente ainda, são os “iluminados” que devem dirigir o país. Ou seja, os direitistas. Assim, para o direitista é evidente que ele pode e deve reproduzir-se (daí os bolsofilhos numerados), mas é um escândalo que mera “gentinha”, “populacho”, “gentalha”, o faça. O então bolsodeputado propôs todo tipo de barbaridade neste sentido, querendo “facilitar” que os filhos de pobres fossem abortados, os próprios pobres esterilizados, e por aí vai. É uma constante na direita, e foi um dos carros-chefe do programa nazista. Note-se que não estou dizendo que a eugenia seria ruim por ser nazista, sim que os nazistas foram horrendos por serem eugenistas.
Esta mesma mentalidade ressurgiu das trevas agora em proposta da deputada estadual paulista Janaína Paschoal, tornada famosa como a “Passionária” do impeachment da Dilma e, por isto mesmo, eleita com tamanha quantidade de votos que a teria feito a deputada federal mais votada se houvesse buscado tal cargo. Ela foi eleita por ter ajudado o Brasil a livrar-se de um estorvo ideológico, o petista, mas agora revela-se proponente e parte de outro estorvo ideológico, irmão gêmeo daquele esquerdista: o eugenista. O que deseja esterilizar os pretos, pobres e prostitutas, aquela ralé que o direitista crê infectar as cidades. Em seu projeto de lei, a deputada tenta estender no vasto território de seu estado a já péssima legislação esterilizante e contraceptiva promulgada no âmbito federal por FHC. Vale notar que este esquerdista, meritoriamente, bem que tentou vetar o grosso dos horrores direitistas contidos no então projeto, mas seus vetos foram derrubados pelo parlamento.
Pois a Janaína, do alto de sua experiência como professora de Bioética (!) na USP, tenta de uma penada derrubar no âmbito estadual várias das infelizmente poucas restrições à esterilização permanente ainda presentes no âmbito da legislação federal. Para tal, falaciosamente apela a uma suposta “evolução” da bioética, que “hoje […] prestigia[ria] o princípio da AUTONOMIA” (ênfase dela). A tal “autonomia”, claro, também passa, na sórdida ressignificação ideológica da autora, a não apenas tornar-se valor absoluto como, indo ainda mais além, a valer até mesmo para quem perdeu a própria capacidade de decisões autônomas. É o caso, por exemplo, dos viciados em crack. Enquanto a legislação federal proíbe que se tome a decisão de mutilar-se irreversivelmente sob efeito de drogas, a proposta da Passionária prevê que “[n]ão se consider[e] esterilização contrária à vontade, aquela realizada em pessoa dependente ou usuária de drogas, a seu pedido, depois de devidamente conscientizada, esclarecida e informada acerca da existência de métodos contraceptivos menos invasivos e da irreversibilidade da esterilização”.
Ora, um viciado em crack tem apenas uma vontade, que é fumar outra pedra. A nossa péssima legislação coloca no mesmo saco a maconha – que, se houvesse mecanismos sociais capazes de coibir seu abuso, seria mais ou menos parelha ao álcool em termos de capacidade destrutiva – e o crack, a cocaína, a meta-anfetamina e outras drogas altamente destrutivas. Trata-se, como sói ser o caso em nossos diplomas legais, de um absurdo gritante. Enquanto são fartíssimos os casos de gente que fuma maconha regularmente como quem bebe uma cervejinha todos os dias, e ainda assim mantém inalterada a sua capacidade de decisão, labor, e o que mais for necessário à perfeita participação em sociedade, com o crack o buraco é infinitamente mais embaixo.
Para o direitista é evidente que ele pode e deve reproduzir-se, mas é um escândalo que mera “gentinha”, “populacho”, “gentalha”, o faça
Um viciado em crack perde totalmente a capacidade de concorrer produtivamente para a sociedade, e é exatamente isso que leva a direita a considerá-lo um estorvo que deve ser impedido de procriar. Ele não perde, todavia – e aqui está a maior diferença entre direitista e conservador –, seu valor infinito de ser humano. Para o conservador, não apenas o viciado em crack é exatamente tão valioso quanto o mais hábil artífice, como seu problema primeiro é o crack, deste decorrendo todos os demais. O que se deve fazer em relação a quem perdeu na prática a capacidade de autonomia que a deputada tenta falaciosamente lhe estender formalmente é devolvê-lo à sociedade curado do vício, ou ao menos capaz de manter-se longe da droga. Não esterilizá-lo. Não matá-lo nem a seus filhos.
Mas, como a lei brasileira equipara crack e maconha (ou, melhor dizendo, trata crack como se mera maconha fosse), é praticamente impossível impedir o surgimento e o crescimento das cracolândias nas metrópoles. A única punição legal real que pode decorrer de um flagrante de porte de crack ou maconha para uso próprio é a famosa “ficha suja”, impedindo de fazer concurso público. A cadeia é só para o traficante (e olhe lá!). Ao mesmo tempo, a internação dita contrária à vontade do viciado também é proibida, como se o zumbi em que o crack transforma seu usuário fosse capaz de colocar alguma vontade acima da de fumar outra pedra!
Daí transformarem-se os viciados no mais perfeito material para a ação eugênica direitista, na ralé por definição, no exemplo mais claro de quem deve ser mutilado cirurgicamente para que não se reproduza. Ora, se é por aí, provavelmente a lobotomia seria uma opção interessante: afinal, junto com todas as demais vontades da pessoa, ela certamente há de lhe retirar a de fumar pedra. Ou, indo um passo mais além, estender aos viciados o carinhoso tratamento direitista que os Esquadrões da Morte davam aos criminosos comuns há algumas décadas. A diferença é de grau, não de essência. O problema de base é a negação da humanidade do pobre, do viciado. Quando se nega o valor de uma vida humana, fica fácil recusar-se a tratar aquela pessoa para que volte a poder corresponder plenamente ao que lhe dá a sociedade, enquanto, com a mesma mão, se lhe retira partes do corpo, se lhe impede de ter filhos. Mesmo que ela consiga livrar-se do vício, sem qualquer ajuda do mesmo SUS que lhe amputa as partes que lhe permitem colaborar na gênese de uma nova vida, sua esterilização não terá como ser revertida.
Outra restrição legal no âmbito federal, igualmente objeto da fúria eugenista da deputada, vem ao encontro da mesma mentalidade, possibilitando que ocorram legalmente aqui casos semelhantes a alguns que provocaram justo escândalo nos EUA há poucos anos. Propõe a doutora, a professora de Bioética, a deputada passionária, que os médicos possam “aproveitar” que a mulher já está desacordada na mesa de parto para garantir que aquele seja seu último parto, esterilizando-a. Claro, desde que ela tenha “consentido”. “Consentimento” este expresso na sua assinatura num papelucho dentre tantos outros que ela assina, perturbada pelas dores do parto, ao entrar no hospital. Promulgado em lei tal horror, rapidamente será a regra que qualquer pobre viciada (ou simplesmente pobre!) seja castrada como uma vira-latas do canil municipal quando do nascimento de um filho. Muitas vezes seu primogênito, já que, propõe a deputada, a mutilação poderia ser perpetrada em qualquer mulher com 25 ou mais anos de idade, com ou sem filhos.
Não adianta substituir ideólogos de esquerda por ideólogos de direita
Nos EUA descobriu-se há pouco que médicos encarregados dos tratamentos obstétricos de mulheres de origem indígena as castravam quando davam à luz. Foi enorme, e justíssimo, o furor. Pois é isto que teremos aqui, em escala industrial. E ninguém poderá reclamar, pois estará tudo dentro da lei, claro. Alles in Ordnung, como diziam os mais famosos proponentes desse tipo de coisa. Um passo a mais na desumanização direitista daqueles que eles consideram “bocas inúteis”, por improdutivos ou mesmo apenas por pobres.
Vê-se claramente neste projeto, tão longe de único que é evidentemente primo-irmão dos do então bolsodeputado, que não adianta substituir ideólogos de esquerda por ideólogos de direita. O Brasil teve a sorte de escapar praticamente ileso, em termos de mentalidade da população, das batalhas ideológicas do século passado. Aqui elas se limitaram às elites, aos políticos, à mídia ou à academia, sem jamais dividir a população como em tantas partes ocorreu mundo afora. Temos de aproveitar isto e buscar eliminar dos processos políticos os incentivos à perpetuação de tais delírios, devolvendo o poder à população e cortando pela raiz os horrores ideológicos. Projetos como este “se criam” e são frequentemente aprovados por termos um sistema opaco, que finge sermos um país ideológico e ideologizado. A população vota em pessoas, e vê-se depois nas mãos de ideologias alienígenas que ela desconhece. Quantos deputados estaduais terá levado consigo a doutora, elevada ao parlamento estadual por reconhecimento popular da sua persona durante o impeachment? Cada um deles estará lá por conta da fábula ideológico-partidária. Com os deputados estaduais precisando ser eleitos por votos de todo aquele imenso estado, é praticamente certo que só os muito ricos ou os muito famosos possam ganhar uma cadeira. Tudo isso nos afasta da democracia; tudo isso abre espaço para mais e mais horrores ideológicos, direitistas ou esquerdistas, que deveriam ter sido jogados ao lixo ainda no século passado.
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