Hoje é um desses dias em que coincidências reais levam a pensar. Seria o aniversário de 110 anos de Frida Kahlo e o de 130 de Marc Chagall. Chagall marcou, com a beleza de sua arte, o auge da destruição da Modernidade; judeu praticante em tempos de Holocausto, surrealista de traços levíssimos em tempo de realismo socialista, ele conseguiu transformar o horror e a destruição em homenagem à vida que persiste. Kahlo, por sua vez, teve a destruição física de seu corpo provocada direta e indiretamente por um acidente de trânsito instrumentalizada em serviço da revolução quando vivia e suas desventuras amorosas postas a serviço de causas de gênero após sua morte.
Dois artistas, uma que só queria morrer – Kahlo – e outro que só queria viver – Chagall. Dois artistas, uma a serviço da morte e outro a serviço da vida. Dois surrealistas, uma engessada no muralismo do realismo revolucionário e o outro voejando pelos telhados acompanhando a tradição folclórica da música que no-la aponta como via para Deus.
Dá ganas de imaginar Chagall a receber Kahlo em sua libertação deste vale de lágrimas, talvez, como um Peter Pan, chegando pela janela e por lá saindo. Ele levaria a artista a ver a beleza, levaria a mulher-de-malandro a conhecer o amor real. Ele libertaria, finalmente, sua paleta para que ela representasse a beleza que há, não apenas a beleza sonhada no protoplasma revolucionário, mas ali mesmo, onde Deus a pôs e de onde ela jamais saiu.
Seria uma libertação real, pois para artistas, mormente artistas tão simbolicamente carregados e tão curiosamente fraternos em suas diferenças, a liberdade está onde a beleza a aponta. “Venha”, diria o curioso Peter Pan calmo viúvo de meia-idade, “e vejamos a beleza, amemos o amor e façamos de nossa arte algo maior, algo muito maior que uma mera sinalização de porvir revolucionário. Para este bastam as nuvens de fumaça que sobrem da destruição que se crê criativa.” Ela suspiraria, olharia em torno perguntando-se se tamanha aventura teria a aprovação ainda que tácita de seu marido, amado, amante e controlador partidário. Seus olhos pousariam nas últimas linhas de seu diário: “Espero que minha partida seja feliz, e espero nunca mais regressar – Frida”, um suspiro vindo do mais fundo do peito mostraria ter chegado o momento desta feliz partida. Ela pousaria o pé direito sobre a balaustrada da janela, tomaria a mão de seu príncipe encantado, que já lhe oferecia ferramentas de ofício como as que sempre sonhara em ter: ferramentas de arte pela mais pura e verdadeira arte, em que a única “problematização” possível é a que toda arte real tem: a das inúmeras leituras possíveis que cada obra pode vir a ter e conquistar a golpes de beleza no coração de cada um seu admirador.
E de lá decolariam.