Encontre matérias e conteúdos da Gazeta do Povo
Carlos Ramalhete

Carlos Ramalhete

Lacração e loucura

Ramalhete: "E a filha, então, após ter sido exposta nas paredes das borracharias junto à mãe, conseguiu, espantosamente, transformar-se em sósia do Carlos Bolsonaro". (Foto: Reprodução/Twitter)

Ouça este conteúdo

A ágora de Atenas era a praça onde incessantemente discutiam os cidadãos. Não era difícil para eles dedicar-se primordialmente à política de sua pequena cidade-estado, afinal, com o trabalho de verdade recaindo nos ombros de escravos e estrangeiros sem direito a voto. Imagino rodinhas e mais rodinhas de conversas, com o “partido” de Fulanopoulous e o “partido” de Beltranopoulous mal se comunicando, e uns poucos cidadãos não pertencentes a nenhuma facção passando de um para outro, sendo alvo da desconfiança de todos.

É mais ou menos esta a minha posição na ágora virtual da pós-modernidade, as redes sociais: faço o que posso para não ficar preso numa bolha em que todos têm mais ou menos a mesma opinião, o que muitas vezes me faz ser “cancelado” à esquerda e à direita por gente que não entende como eu posso não ter político de estimação, ou, mais ainda, como posso ser ao mesmo tempo a favor de algo defendido pela esquerda e algo defendido pela direita, ou, ao contrário, combater as maluquices de ambos os lados. É uma posição difícil, mas que me possibilita de vez em quando ter uns vislumbres mais acertados da guerra cultural ora em curso.

A última salva desta guerra foi dada por uma empresa de cosméticos, ligada a uma estranha figura que emerge da floresta a cada quatro anos, aparentemente sem ter se alimentado no período. Para o Dia dos Pais, buscando a lacração mais efetiva, a empresa teve a ideia de jerico de escolher como modelo a pobre filha de uma cantora, que já foi famosa por seus glúteos e rebolado, e que hoje se tornou um meme vivo entre tantos que passeiam por nossas telas.

Vejam os senhores que foi, então, escolhida uma moçoila como “pai do ano” ou besteira do gênero – confesso que a minha paciência e interesse não foram assim longe; falo do que fui forçado a ver, não de detalhes da campanha. Há já algum tempo a moça, às custas de cirurgias mutiladoras de todo tipo, venenos hormonais, e propaganda, muita propaganda, resolveu deixar para trás a fácil, mas pouco duradoura, carreira de bonitona profissional, em que – horresco referens – chegou a posar nua na companhia da mãe.

O mais triste é que a mãe, que, como quase todos os que vivem de aparências hoje em dia, tornou-se crente, teria perguntado a seu deus se podia ou não fazer o tal “ensaio” fotográfico. E, pasmem, do fundo do bolso vazio da pobre senhora teria vindo uma vozinha aparentemente divina informando-a ter sido revogada a proibição bíblica de descobrir a nudez duma mulher e de sua filha (Lv 18,17, para os curiosos). E a filha, então, após ter sido exposta nas paredes das borracharias junto à mãe, conseguiu, espantosamente, transformar-se em sósia do Carlos Bolsonaro. Confesso ter enorme dificuldade em entender como alguém almejaria tal coisa, mas ela conseguiu. E de lá passou a “pai do ano”.

Esta loucura pós-moderna da “transexualidade”, em que as pessoas se disfarçam do sexo oposto através de truques extremamente assemelhados aos dos travestis d’outrora ou de Arsène Lupin, o Ladrão Fidalgo, e por imitarem mal e porcamente algumas das notas por que se reconhecem os sexos, passam a considerar-se magicamente transformados em indivíduos do sexo oposto, provavelmente será um dia estudada como o caso mais agudo de loucura coletiva dos “bem-pensantes” de toda a História.

Afinal, tendo o controle da grande mídia, das universidades (de onde costumam vir muitas das maluquices que nos assolam; afinal, Cícero já dizia que nada é absurdo demais para não ter sido já defendido por algum filósofo) e, indiretamente, dos governos, ONU, e o que mais se quiser, e ainda por cima com uma cornucópia de dinheiro jogado às mancheias pelos metacapitalistas, qualquer prestidigitação se torna possível. Abraham Lincoln, há já um tempinho, disse que “dá para enganar todo mundo por um tempo, e uns poucos o tempo todo, mas não dá para enganar todo mundo o tempo todo”. O pessoal da “lacração”, todavia, parece não acreditar nisso.

Ao contrário, até. Como já comentei aqui, pelo simples fato de dizer que “pessoas que menstruam” é uma definição acertada de “mulher”, a autora da coleção Harry Potter viu-se “cancelada” pelos bem-pensantes, com funcionários duma editora recusando-se a trabalhar em seu novo livro, mensagens de ódio assustadoras, ameaças, e tudo o mais que os acometidos pela loucura trans – os poucos que aparentemente estão sendo enganados o tempo todo – puderam fazer para tornar sua vida impossível. Felizmente, a escritora não se dobrou. E como nenhum editor deixaria a loucura coletiva fazer com que deixasse de ganhar fortunas com os popularíssimos livros da boa senhora, no fim das contas, ela tem como se manter à tona enquanto brada que o rei está nu.

Quando começaram essas maluquices relacionadas a sexo (a triste fixação da pós-modernidade; em toda sociedade em decadência as pulsões mais primevas passam a parecer terrivelmente importantes, por falta de algo maior para guiar os espíritos), eu disse a quem quisesse ouvir que a exigência absurda de “tolerância” rapidamente levaria a demandar muito mais que apenas isto. Não se trata apenas do fato de que esta loucura em particular, como tantas outras, tenha sido importada da sociedade americana, que culturalmente não consegue tolerar o que quer que seja. Lá, devido às origens calvinistas da mentalidade nacional, é sempre oito ou oitenta, com algo sendo ou bem “do bem” ou bem “do mal”, angélico ou diabólico. Neste mesmo espaço, há sete anos e meio atrás, publiquei sob o título “Tolerância Brasileira” um textinho em que comparei, no exíguo espaço que a versão impressa do jornal me concedia, o americano Little Richard e o brasileiríssimo Cauby Peixoto. Enquanto este sempre teve a sua sexualidade evidente tolerada sem qualquer questionamento, aquele passou a vida oscilando entre o fanatismo religioso e a orgia desvairada. Oito ou oitenta; tolerância zero.

Sendo assim de origem americana, a campanha em favor do que se dizia então ser apenas a tolerância em relação ao homossexualismo forçosamente teria que levar a seu endeusamento. É, aliás, exatamente este o processo pelo qual a maconha vem passando por lá; o que ontem era a “erva do diabo” agora já é panaceia universal, com estados americanos em que fecharam as igrejas por conta da pandemia, mas mantiveram abertas as lojas de maconha (lá legalizadas), por ser aquele matinho item de primeira necessidade.

E foi bem assim que a coisa se passou: da exigência de “tolerar” (absurda numa sociedade que já tolerava, como a nossa), passou-se a se ter que aplaudir. Um dos quatro crimes que bradam aos Céus por vingança na nossa tradição moral passou a ser legalmente equiparado a um sacramento. Hoje, torcer o nariz a duplas de rapazes se agarrando em público é até perigoso, mesmo que ao mesmo tempo torça-se o mesmíssimo nariz quando o mesmo é feito por casais compostos de um rapaz e uma mocinha – aquela belíssima união de que vêm as próximas gerações, e que, ao menos para mim, é sempre causa de enlevo. Na verdade, demanda-se uma aceitação maior da exposição pública de atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo que entre pessoas de sexos opostos. Na Inglaterra chegou a haver uma disputa por conta de uma suposta necessidade das duplas do mesmo sexo de terem relações em banheiros públicos. Necessidade que, claro, nunca haveria para pessoas que tivessem que usar banheiros diferentes, por serem de sexos diferentes.

Dali então pulou-se para a maluquice trans, ora na ponta-de-lança da loucura progressiva e progressista paulatinamente empurrada garganta abaixo da sociedade desde há pouco mais de cinquenta anos. Em muitos lugares basta que a pessoa se diga pertencente ao sexo oposto para miraculosamente ver-se transformada em membro do outro sexo, com os governos sendo obrigados a dar-lhe documentos falsos, com as portas dos banheiros do sexo oposto escancaradas para que entre triunfalmente, e ai de quem lhe negar pertencimento ao sexo que cada célula do seu corpo prova não ser o seu.

Décadas atrás, um amigo meu – nascido Walter, chegado à maturidade como Pastor Walter e hoje usando nome feminino – defendeu a tal transexualidade com um complexo arrazoado, editado pela apóstata editora Vozes (outrora Vozes em Defesa da Fé; hoje meras vozes cacofônicas das profundezas infernais), em que defendia que se tratava de uma questão de hormônios durante a gestação. Segundo ele, era possível que um bebê, por conta dum desequilíbrio hormonal no útero materno, tivesse um corpo masculino, peludo e careca, como o dele, e um cérebro feminino.

Foram-se os tempos. Hoje o que temos é um caldeirão de feiticeira em que o desejo sexual, as fantasias identitárias mais delirantes e, mais que tudo, o desejo de atenção borbulham e se misturam, gerando dezenas de supostos “gêneros”, que podem mudar várias vezes ao longo do dia e que, claro, não têm chongas a ver nem com o corpo real da pessoa nem com, menos ainda, o cérebro. Este, aliás, parece ter sido deixado de lado, porque ninguém parece parar por um minuto na espiral enlouquecida da lacração para usá-lo e ver como são loucamente contraditórias as teses defendidas pelos apoiadores da ideologia de gênero.

O mais perigoso, contudo, não é que uma pobre moça com problemas mentais sérios ao ponto de mutilar-se para se parecer com o Carlos Bolsonaro seja usada pela mídia, que não cansa de mostrar os cabelos no peito e a barba por ela adquiridos à força de envenenamento hormonal. Não é nem que isto seja usado para – junto com a programação televisiva, o divórcio, o combate à masculinidade dita “tóxica”, etc. – diminuir e ridicularizar a figura do pai, num frenesi de patricídio que deixaria Freud com os olhinhos brilhando e esfregando as mãos.

Não: o problema é que, como sempre, quem se lasca é o pequeno. E, neste caso, quando digo “pequeno” estou falando de gente pobre, de gente preta, de prostitutas (os clássicos “três pês” que compõem quase exclusivamente a população carcerária do Brasil) e… de crianças. Na Inglaterra, em que o processo de “mudança de sexo” consiste em coisa de três entrevistas do tipo “tem certeza?” “Tenho” “Beleza, então”, seguidas de procedimentos mutiladores sérios e irreversíveis, a coisa está gravíssima. Sabe aquela menina tímida e meio feiosinha? Sabe aquela outra que gosta de jogar bola e subir em árvores? A que tem um levíssimo grau de autismo? Ou a que encolhe os ombros para esconder os seios nascentes por se sentir insegura com as cantadas grosseiras que sofre na rua?

Pois é: elas todas agora estão virando “trans”. O equivalente inglês do SUS fornece-lhe venenos que impedem a puberdade (estou falando de crianças! Pré-púberes!), e ao mesmo tempo impedem que os ossos se calcifiquem adequadamente ao longo desse período tão difícil, fazendo com que pelo resto da vida elas corram risco seriíssimo de fraturas expostas por qualquer quedinha besta. No pacote também vem a mastectomia dupla, retirando-lhes as glândulas mamárias e garantindo que se (ou melhor, quando) mudarem de ideia jamais possam amamentar uma criança. Junto, ainda, vêm hormônios masculinos, que também causam, mormente nessa fase do desenvolvimento, distúrbios de formação que se farão sentir pelo resto da vida. E suas genitálias são destruídas, seus úteros e ovários arrancados e jogados no lixo, suas vaginas fechadas para sempre. Algumas, ainda, recebem grotescas imitações duma genitália masculina, que muitas vezes não “pegam”, e literalmente apodrecem e caem, deixando-as, em plena adolescência, não só desprovidas de genitália de qualquer sexo como tendo que usar uma sonda uretral para urinar. Na última década, a demanda por parte de meninas da “mudança de sexo” aumentou 4.400%. Quatro mil e quatrocentos por cento.

E é extremamente comum que – como aliás tudo entre mocinhas por volta da puberdade – a loucura seja coletiva: uma menina cisma que vai virar moleque, e em breve todas as amiguinhas dela entram no mesmo delírio. Seria um delírio um pouco triste, que muito mais diz acerca de como a sociedade trata essas mocinhas, essas florezinhas, “entreabertos botões, entrefechadas rosas”, nas palavras do poeta, que acerca de decisões reais tomadas por alguém capaz. A lei as proíbe de fumar um cigarro, beber uma cerveja, fazer uma tatuagem, ou ter relações sexuais, e nisso a lei é sábia: elas têm enormes graças, mas o juízo certamente não é o ponto alto de mocinhas entrando na puberdade. A mesma lei, contudo, lá na pérfida Albion, agora permite que a mesma pessoinha sem juízo que não pode ser confiada com um cigarro ou uma cerveja possa decidir por conta própria, contra a vontade dos pais e de todos os que as amam, em conjunto com todas as coleguinhas, na moda mais imbecil que já apareceu na face da terra, estragar todo o belo futuro que ela tinha pela frente – saúde, fertilidade… – com a desculpa absurda de “mudar de sexo”.

Não existe “mudança de sexo”. Existe, sim, artifícios teatrais, cirurgias de mutilação, envenenamento hormonal. Não se trata de “um cérebro feminino num corpo masculino”, ou vice-versa, como pregava o ex-pastor Walter no começo dessa loucura coletiva. O que há é, numa extremidade do espectro, um distúrbio doentio de autoimagem extremamente similar ao da mocinha esquelética que se acha gorda e por isso vomita o que come ou se recusa a comer, ou da outra que quer alisar o cabelo e afinar o nariz por ter vergonha de seus traços fenotípicos indicativos de ascendência africana. Na outra ponta do espectro da mesma loucura autodestrutiva, as mocinhas inglesas, submetendo-se a procedimentos bárbaros com consequências seriíssimas, destruindo seu futuro, saúde, identidade e sexualidade apenas por ser a moda em seu grupinho, ou por acharem que será mais fácil enfrentar o mundo como “homem” (que elas jamais serão, aliás; homens não precisam envenenar-se com hormônios diariamente pelo resto da vida para continuar a ter barba…).

“Lacrações” idiotas como a da empresa de cosméticos são, na verdade, mais uma vez, uma forma de lucrar em cima do mais fraco. De explorar o doente – afinal, convenhamos, só uma moça com uma autoimagem doentia prefere tornar-se sósia do Carlos Bolsonaro a continuar só feiosinha como era. De sabotar a imagem social do pai, e com isso o papel social do pai, de tal modo que a cada dia mais se veem viúvas de marido vivo e órfãos de pais vivos, especialmente nas classes sociais mais baixas. De condenar à prostituição mais degradante, a viver de satisfazer taras indizíveis de degenerados muitas vezes agressivos, os rapazes pobres que, confusos, entrem na onda de “mudar de sexo”, tornando-se figuras estranhas, no mais das vezes caricatas (pois a fantasia de mulher é ainda mais impossível de funcionar que a de homem) e por isso cronicamente desempregadas e alijadas da sociedade.

Não nos deixemos enganar: nessas “lacrações” doentias, quem ganha são os metacapitalistas, cujo sonho maior é dissolver as famílias, célula básica duma sociedade sadia, para acumular mais e mais poder sobre vastas multidões de indivíduos atomizados e indefesos. E quem perde mais; quem tem garantido o sofrimento pelo resto da vida; as vítimas primeiras e maiores de tudo isso são os rapazes e moças – ou, mais ainda, os meninos e meninas ainda pré-púberes – que se submetem, por distúrbio de autoimagem ou por moda de grupinho, às mutilações e envenenamentos que lhes são vendidos como se tivessem o dom de fazer com que transitem de modo indolor ao sexo oposto.

Mais que defender a família – que é eterna e faz parte da natureza humana, sendo portando indestrutível no médio e longo prazo, por mais que façam seus inimigos –, é mister que defendamos as vítimas pessoais de toda essa “lacração”, as buchas de canhão, o tapete de doentes e de cadáveres com que o capitalismo tardio pavimenta a estrada por que vai, sacrificando a Mammon os menores, os mais pobres, os mais fracos. Como sempre.

Use este espaço apenas para a comunicação de erros