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Hoje em dia é moda ser hipersensível em relação a qualquer coisa que possa pegar mal para este ou aquele grupo. A coisa foi tão longe que um grande bando de dados científicos gringo simplesmente proíbe o uso de seus dados em qualquer pesquisa que envolva hereditariedade e QI. Presumo que queiram evitar o mal-estar que poderia decorrer de alguma descoberta que aponte correlação entre baixo QI e algum componente genético particular a um grupo. Realmente: louras, portugueses e outros seriam zoados impiedosamente caso algo assim se aplicasse. Até eu, que sou ruim que nem cobra, ficaria com pena deles.
Mas nem todos têm direito à hipersensibilidade. Há uma comunidade, ou antes uma instituição comunitária, em que se pode bater, sobre a qual se pode inventar qualquer mentira, e que tem de aguentar calada. Refiro-me, claro, à Igreja Católica. Um exemplo disso – claríssimo, claro como a água – nos é dado por nada mais nada menos que o Museu da Água, em Curitiba, em que uma das mentiras mais absurdas que já vi fora do campo estrito da política tem lugar de destaque, num cartazão de todo tamanho. Segue o texto, composto única e exclusivamente por mentiras alucinadamente extraídas de onde o sol nunca brilha:
Na Europa medieval, higiene era pecado
Com a queda do Império Romano do Ocidente, a cultura, os hábitos e os costumes daqueles povos foram abandonados. Para a Igreja Católica, tomar banho era indecente, cuidar do corpo era pecado. Já os médicos diziam que a água enfraquecia os músculos e atraía doenças. Foram mil anos de muita sujeira, piolhos, sarna, mortes por infecções e mau cheiro por toda parte. Os europeus tomavam poucos banhos durante a vida, mas em duas ocasiões lavar-se era um ritual: quando nasciam e no dia do casamento.
Nem todos têm direito à hipersensibilidade. Há uma instituição em que se pode bater, sobre a qual se pode inventar qualquer mentira, e que tem de aguentar calada: a Igreja Católica
A coisa é tão louca que fica difícil saber por onde começar. “Higiene era pecado”?! Como assim, cara-pálida? “[M]il anos de muita sujeira”?! Ou, melhor ainda, a delirante invenção de um “ritual” de tomar banho ao nascer e ao casar-se? O texto todo é delirante, da primeira à última letra. A triste presença de tanta invencionice caluniosa num lugar teoricamente dedicado ao conhecimento, como deveria ser o Museu da Água, todavia, é até compreensível. Não perdoável nem aceitável, claro, mas compreensível. Ela é fruto de um currículo escolar criado e mantido (via livros didáticos, formação universitária no nível de graduação etc.) por gente fortemente movida por ódio à Igreja. Esse tipo de maluquice sem contato algum com a realidade é comum em material escolar tupiniquim (entusiasticamente chancelado pelo MEC!), e mais comum ainda na boca de maus professores, vitimados por uma péssima formação que os leva a achar que inventar esse tipo de coisa é meritório.
Não é que não haja estudo, e bom estudo, da Idade Média no Brasil. Temos, sim, felizmente, bons medievalistas. São poucos, mas existem. Na graduação, entretanto, naquela etapa inicial do aprendizado em que se dá uma rápida vista d’olhos em todo o campo para só depois se poder aprofundar o conhecimento, a Igreja (e, por conseguinte, a Idade Média) via de regra é alvo permanente de todo tipo de calúnia, bazófia e invenção. Essa placa do Museu da Água provavelmente foi escrita por alguém que acreditou em gracinhas mentirosas inventadas por algum mau professor que queria apimentar a aula com elas. Afinal, da Igreja sempre se pode (e na cabeça de muita gente se deve) falar mal.
A tática não é nova. Voltaire, inimigo figadal da Igreja, que dizia ser necessário “esmagar a Infame [Igreja]”, escreveu em 1736 as seguintes instruções, que vemos perfeitamente aplicadas na placa em exposição permanente no Museu da Água: “É preciso mentir como um diabo; não timidamente, nem por um certo período, mas fortemente e sempre. Mintam, meus amigos, mintam”. E mentem, como vemos aqui. Mentem tanto que nem sabem mais que estão mentindo; o pobre ignorante que escreveu o texto da placa provavelmente achava que estava instruindo, informando, apresentando uma “verdade oculta”. Quando – e é esse o paradoxo – oculta mesmo está a verdade verdadeira, aquilo que ocorreu de fato. A mentira repetida em cuspe e giz tornou-se (falso) conhecimento comum. Daí o ateuzinho de butique, intelectualmente deformado pela péssima escolarização, ao ver lindas igrejas cheias de gente boa, toma-se de indignação e crê que elas estão ali por “não saberem” daquele monte de quimeras que ele ignorantemente engoliu e mais ignorantemente ainda vomita como se verdade fossem.
O estudante brasileiro de História só trava algum contato com o Medievo real na graduação se tiver a rara sorte de ser apresentado a ele por um medievalista real, que tenha ido além do bestialógico anticatólico que – como um trote de mau gosto – se perpetua nos níveis mais baixos da academia. E deles “vaza” para as salas de aula escolares, de onde, por sua vez, escorre como chorume de podridão intelectual para as paredes do Museu da Água. E para muitos outros lugares, claro: se eu ganhasse um dinheirinho a cada coitado que vejo que acredita em tais fábulas, estaria rico como Creso.
Mas na verdade o mais triste é dar-se conta de que esse discurso tão absurdamente aleivoso tenha dominado justamente instituições medievais, iniciadas pela mesma Igreja que ele ataca e então dedicadas e movidas pelo amor à Verdade: a escola e a universidade. Aliás, nem deveria ser necessário dizer que de lá para cá tais instituições só fizeram decair e piorar. Como, infelizmente, elas decaíram e pioraram ao ponto de enorme parcela dos formados por instituições teoricamente de nível superior não ser capaz de ler e entender uma notícia de jornal, de quiçá uma maioria dos formados em História não ter noção alguma da origem remota das instituições em que foram deformados, de placas como essa serem penduradas em lugares em que não deveria haver mentiras antirreligiosas pregadas pelas paredes, precisamos dizer, e repetir, e apontar. Como fazem os mentirosos, mas no afã oposto.
As mentiras são tantas, e tão delirantes, mesmo num texto minúsculo como esse em que o Museu da Água entrona orgulhoso ataque à instituição que formou nossa civilização, que não há resposta possível que não a gargalhada. Valeria a pena tentar traçar as origens dos despautérios ali presentes? Não muito, na medida em que a sua origem real é a animosidade anticatólica, antirreligiosa, que se aproveita do museu para tentar vender o peixe podre de que haveria incompatibilidade entre fé e razão, ou fé e ciência. O único fato histórico remotamente relacionado com as potocas do pôster é que a Igreja (bem antes da Idade Média, diga-se de passagem, quando isso ainda era um problema real) condenou moralmente as “casas de banho” coletivo populares na decadência final do paganismo romano. A razão, contudo, nada tinha a ver com higiene, água ou sabão: tais estabelecimentos estavam no ramo da prostituição, não da higiene. A água é boa e santa; já a prostituição, não. Partir daí para tais patacoadas equivale a acusar quem não frequente as famosas “saunas gay” de São Francisco de ódio à Finlândia e àquela sua maravilhosa e salutar invenção.
Temos, sim, felizmente, bons medievalistas. São poucos, mas existem. Na graduação, entretanto, a Igreja (e, por conseguinte, a Idade Média) via de regra é alvo permanente de todo tipo de calúnia, bazófia e invenção
Curiosamente, até, nesse quesito a história é exatamente oposta: porcaria e sujeira são coisas que entraram na moda quando acabou o Medievo, só sendo novamente combatidas coisa de 100 anos atrás. Foram, portanto, coisa de quatro séculos de imundície, surgida exatamente por a Igreja ter perdido sua influência social em benefício de filosofias de base gnóstica que – ao contrário da Igreja – separavam e contrapunham corpo e alma (ou corpo e psique), vendo-os como inimigos. Curiosamente, até, naquele tempo – que foi justamente quando se começou a inventar patranhas espetaculares para tentar afastar as pessoas da Igreja – as acusações eram muitas vezes opostas às de hoje. Na verdade, como ninguém ali (ou no Museu da Água, pelo jeito) tinha ou tem qualquer interesse que seja na verdade dos fatos, o que se fazia, e se faz ainda, é acusar a Igreja de fazer o oposto do recomendado pela mania ou fixação do tempo em que se perpetram as fraudes. Destarte, a Igreja era acusada de privilegiar o corpo quando este era malvisto, e agora é acusada de maltratá-lo quanto ele se vê importante ao ponto de abusos de estroides anabolizantes e de cirurgias plásticas terem se tornado problemas sociais sérios. Não importam os fatos, quando se tem ocasião de lorotar em grande estilo contra a Igreja.
Mesmo que seja compreensível a ignorância e relativamente crível a boa-fé dos responsáveis pelo atentado antirreligioso permanentemente perpetrado no Museu da Água, ele continua inaceitável. Se ataques semelhantemente venenosos houvessem sido vomitados contra qualquer outra comunidade (fosse ela de fé, étnica, cultural, musical, o que fosse), provavelmente o cartaz teria sido vetado sem que sequer se procurasse averiguar se as acusações procediam. Afinal, estamos em tempos de hipersensibilidade. Já contra a Igreja, como se vê, pode tudo. É triste e vergonhoso para a direção do museu que ele tenha decaído ao ponto de fazer parte de uma história tão sórdida, com tantas e tão medonhas fábulas, movida pelo ódio àquilo tudo que hoje ainda nos faz civilizados – na medida em que a decadência que nos cerca ainda o permite. Não fosse a Igreja, não existiria nossa sociedade, não existiria nossa civilização, não existiria nosso país. Não existiriam ciência, nem museus.
Os que inventam aldrabices sem fim para tentar afastar as pessoas da Igreja têm sempre uma pequena margem de sucesso, infelizmente. Em cada caso, é lamentável ver a falsidade ganhar da verdade. Mas o fato de que a Igreja tem quase 2 mil anos, enquanto as mentiras mudam de acordo com o vento, nos mostra que, ainda que seja sempre possível enganar alguns, a verdade sempre atrai mais que quaisquer calúnias.
Agora, com licença, tenho de tomar um banho: chafurdar na lama dessa mentirada toda é muito desagradável.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos