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Maduro apodreceu

Foto: Luis Robayo/AFP (Foto: )

O estranho fruto bigodudo nascido da árvore podre que foi Hugo Chávez não está mais maduro, sim podre. Maduro, ditador comunista da Venezuela, enfrenta hoje uma conjunção de elementos de que dificilmente escapará ileso: além de manifestações monstruosas contra seu desgoverno que tomaram as ruas de seu país, quase todos os países da região (com a desonrosa exceção da Bolívia e do México), incluindo os dois pesos-pesados Brasil e Estados Unidos, declararam reconhecer como governante legítimo do país não mais o Bigode-em-Chefe, sim o opositor Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional (por sua vez não reconhecida pelo governo de Maduro). Guaidó, por sua vez, aceitou o encargo, dizendo que “deve ser o povo da Venezuela, as Forças Armadas [até agora majoritariamente nas mãos de Maduro] e a comunidade internacional a dar-nos um mandato claro”. Já a ministra das Prisões – cargo cuja existência mostra bem as prioridades do governo comunista! – tuitou “Guaidó, já tenho uma cela pronta para ti, com um uniforme”.

Chávez tomou o poder em um momento de extrema riqueza para a Venezuela, devido ao alto preço do petróleo, commodity em que se ancora a economia venezuelana. Deu presentes de todo tipo aos mais pobres para comprar sua lealdade, no melhor estilo socialista, e aproveitou para armar milícias de fanáticos. O petróleo foi secando, pois a incompetência gerencial dos comunistas fez com que a exploração diminuísse tremendamente, e o preço internacional do barril despencou. Sobrou para Maduro, incompetente ex-motorista de ônibus que assumiu após a morte do mestre e tentou não só continuar a revolución chavista (Chávez já até teria lhe aparecido na forma de um passarinho…) como torná-la ainda mais profunda. O resultado foi o que se poderia prever: a economia soçobrou, com uma inflação de mais de um milhão por cento em um ano, todas as indústrias e quase todos os comércios fecharam, a fome se tornou endêmica, e a população começou a fugir em massa para os países ao redor (incluindo o Brasil).

Durante todo este tempo, claro, as garras dos irmãos Castro foram se fincando mais profundamente no couro sofrido da população venezuelana. Milhares de “assistentes” cubanos (versões fortemente armadas dos “médicos” escravos que vieram para cá) assumiram funções de Estado, inclusive e especialmente na polícia e exército. O dinheiro do povo venezuelano (como o nosso durante os tristes anos petistas) foi-se embora para sustentar a ditadura da ilha-prisão. Para piorar a situação, nestes últimos tempos a Rússia resolveu apoiar a ditadura de Maduro, procurando um fincapé estratégico contra os EUA.

A situação é esta. Mas o que ela traz de novo? A primeira indicação de novidade, diria eu, está no peculiar fraseado no novo presidente putativo. Enquanto em outros momentos já tivemos governantes eleitos “pela aclamação universal dos povos”, raros foram os que declararam estar o seu mandato baseado não só no povo, como nas Forças Armadas e, mais ainda, na “comunidade internacional”. As Forças Armadas entram aí por óbvio: é por meio delas que um governo pode fazer valer a sua autoridade, por mais que em nossos tempos democráticos tendamos a fingir que sua função seja exclusivamente a de defesa contra ameaças exteriores. Sem a força das armas, força esta que se concentra institucionalmente nas Forças Armadas oficiais (não nas milícias chavistas, que não aguentariam dez minutos de tiroteio), não há governo que se sustente. Mesmo assim, sua inclusão explícita na lista de bases do mandato é interessante.

E a comunidade internacional, de onde vem? A resposta mais curta e grossa é que, como diria Maduro, trata-se de um “golpe patrocinado pelos americanos”. E nisso ele tem razão. Trata-se, sim, de um golpe patrocinado pelos EUA. A diferença entre este e, por exemplo, o que transformou a Líbia em terra de ninguém e abriu as portas para a migração subsaariana maciça para a Europa, é que o desgoverno de Maduro já perdeu completamente o controle da situação, ao ponto de levar a própria população a um êxodo maciço. Em outras palavras: o golpe americano na Líbia criou o caos; o golpe americano no seu próprio quintal (por mais que Maduro tenha afirmado com todas as letras que “a Venezuela jamais voltará a ser o quintal dos EUA”) visa impedir que o caos se espalhe. Ele não se espalharia mais na forma de um surto de desgovernos socialistas; este perigo passou. Mas refugiados aos milhões invadindo por desespero os países vizinhos são uma forma de caos. Temos, claro, o dever de acolhê-los, mas melhor, muito melhor, seria se eles pudessem ficar em sua terra natal. Do mesmo modo, o desespero estratégico e geopolítico de Maduro o levou a aceitar, extasiado, a oferta russa de ajuda militar. Esta ajuda, claro, só está lá para tentar criar mais caos na porta de casa dos americanos, e para aumentar exponencialmente o sofrimento da população venezuelana. A instalação de uma fábrica de fuzis de assalto AK na Venezuela, em tal momento político, só poderia servir para virar contra a população os canos reluzentes das armas recém-fabricadas.

Este “golpe dos americanos”, ainda, não é só deles. É nosso, é canadense (ainda que os canadenses peçam licença e desculpas o tempo todo enquanto agem, segundo a lenda), é de toda a América Latina, do Grupo de Lima e de todos os que sofrem com o sofrimento da população venezuelana. É a “comunidade internacional” que mencionou o novo presidente putativo. O problema cresceu, cresceu tanto que não estava mais ao alcance da população venezuelana exorcizar o Bigode-em-Chefe. Daí a necessidade de subir uma instância, e ir pedir a ajuda da vizinhança. Da “comunidade internacional”, que é, no caso, basicamente composta pelos países em torno.

Enquanto algumas décadas atrás este conflito estaria inserido quase apenas na disputa entre os EUA e a Rússia (na sua encarnação soviética), ele hoje opera de outra forma. Não se trata mais de uma proxy war, de uma “guerrinha por procuração” em que dois lados bancam duas forças opostas, visando garantir que uma área ficasse firmemente instalada em sua esfera de influência. É, ao contrário, uma situação fluida em que a ideologia tem menos importância que as relações de vizinhança. Nos anos 70 do século passado, primeiro viria a ideologia e depois, bem depois, a colaboração entre os vizinhos. Num de seus excelentes livros, Fernando Gabeira conta como estava asilado numa embaixada no Chile após a deposição de Allende pelos militares quando viu entrar correndo no pátio, vindo da rua, um homem que perfazia um perfeito zigue-zague para escapar dos tiros dos carabineiros pinochetistas: era seu antigo professor de guerrilha em Cuba. Fidel coalhava o governo Allende de “assessores”, e os EUA bancavam a formação dos militares. Ganharam os militares. Em seguida, formou-se uma aliança de grupos terroristas de esquerda de quase toda a América Latina, respondida pelos militares com um mecanismo de cooperação internacional para dar-lhes combate. Era, sempre, a ideologia antes de tudo.

Já hoje a ideologia operou, e opera, na formação das alianças entre Cuba, Venezuela e os países outros (nós inclusive) que caíram nas mãos dos antigos terroristas. A população, contudo, desta vez foi expulsando pacificamente aos poucos, país após país, os ideólogos do poder. Hoje a Venezuela e Cuba estão isoladas ideologicamente. Nem mesmo o auxílio russo àquela é movido ainda por razões ideológicas, e sim estratégicas. O que temos hoje é algo muito mais saudável, algo aliás preconizado pela Doutrina Social da Igreja: a subsidiariedade – sobre a qual publiquei aqui por estes dias –, o princípio segundo o qual a autoridade vai de baixo para cima. Quando alguém não consegue fazer algo, pede ajuda. O poder que se dá àquele cuja ajuda se requereu é limitado ao necessário para ajudar. É isso, exatamente isso, que o novo presidente putativo venezuelano fez ao condicionar o seu mandato à comunidade internacional. Ele não colocou a Venezuela na órbita de um ou outro dos sistemas ideológicos da Guerra Fria, fazendo dela uma marionete de uma força enormemente superior. Ele apenas reconheceu que precisa de ajuda, e esta ajuda deve vir de quem está próximo. Não é à Austrália ou à Alemanha que ele pediu ajuda, sim aos vizinhos, aos mesmos países que sofrem, ainda que em menor escala, com os distúrbios e a fome chavista que tanto mais afligem a população venezuelana.

Este apoio, por vir de quem está realmente próximo e tem a perder com seu insucesso, é muito mais forte que o apoio ideológico do século passado. Quarenta anos atrás, Guaidó ganharia algumas malas de dinheiro da CIA; hoje ele pode esperar mais, muito mais. Pois estamos todos juntos, somos todos afetados pelo problema de que ele parece ser a solução.

Vale perceber, finalmente, que este é outro sinal, ainda, de uma mudança radical na geopolítica. Os Estados nacionais, já disse e repito, são uma experiência fracassada. Foi graças a estas divisões tão artificiais quanto violentas que foi possível a um pulha como Maduro manter-se no poder por tanto tempo e fazer tanto mal. Afinal, como definido em Vestfália, a religião do rei é a religião do Estado. E a religião do rei Bigode é o satânico culto marxista. Enquanto seus malfeitos ficassem dentro de seu território, ele poderia continuar a cometê-los e qualquer tentativa de contê-lo seria certamente condenada por toda a dita “comunidade internacional”, ciosa de seus poderes sobre seus próprios Estados e temerosa de violações de sua valiosa soberania. Já hoje isso está se desfazendo. As fronteiras estão se borrando, de forma a deixar passar os venezuelanos para cá, os subsaarianos para a Europa, os guatemaltecos para os EUA (com muro ou sem muro), e por aí vai.

Este reconhecimento de Guaidó como presidente por parte de tantos países obedece ainda a uma ritualística própria, não muito diversa, em essência, da que levaria ao reconhecimento deste ou daquele pretendente a um trono real: enquanto este pretendente teria de se comprovar descendente de alguém efetivamente coroado, aquele teve de provar suas “credenciais democráticas” oriundas de uma eleição feita pela Assembleia Nacional, e Maduro as teve rejeitadas devido à roubalheira generalizada da última eleição. Ora, mas Maduro roubou todas as eleições. Esta não é diferente das demais. O que difere é que o mal que ele fez e faz, graças justamente à interdependência dos países da região, começou a apoquentar demasiadamente os vizinhos. E estes tomaram, finalmente, uma atitude que poderia e deveria ter sido tomada muito tempo atrás. As credenciais eleitorais de que disporia Guaidó, mas não Maduro, na prática, são apenas uma formalidade para dar fumaças de legitimidade institucional a algo cuja legitimidade repousa num tripé totalmente diferente, perfeitamente enunciado pelo pretendente em tela: a aceitação por parte da população, a força e o apoio da vizinhança. O povo, as Forças Armadas e a comunidade internacional.

Não sei o que vai acontecer daqui para a frente. Alguma alma caridosa (Brasil inclusive) pode aterrissar um jatinho em Caracas e oferecer ao Maduro uma viagem só de ida para Cuba, para poupar o sangue inocente de seu povo. A Rússia pode enfiar a viola no saco e ir embora, ou brandir um sabre contra os americanos por mais tempo (é pouco provável que eles façam a besteira de chegar às vias de fato, ainda que um acidente sempre possa acontecer. Putin é mau, não é burro). As Forças Armadas venezuelanas podem perceber de que lado o vento está soprando e pendurar Maduro do teto de um posto de gasolina, como se fez com Mussolini e com a pobrezinha da Claretta Petacci. Uma guerra civil pode estourar, com farta quantidade de fuzis russos circulando. Só o que se sabe, todavia, é que a vizinhança entrou na brincadeira, exatamente como acontece quando se descobre que um vizinho estupra criancinhas. O povo venezuelano não está mais sozinho: pelas fronteiras fluidas da pós-modernidade (físicas e virtuais: até Maduro tuíta!), ele uniu-se ao povo de todos os países ao redor na sua dor, e deles (de nós!) terá auxílio para finalmente exorcizar o estaliníssimo Bigode cujos dentes estão há tanto tempo cravados na sua jugular.

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